No decorrer do tempo, foram editadas as seguintes legislações que alteraram o Código de Trânsito Brasileiro (lei 9.503, de 23 de setembro de 1997): (i) lei 11.705/08 ("Lei Seca"); (ii) lei 12.760/12; (iii) lei 13.281/16; e (iv) lei 13.546/17, que acrescentou nova redação aos crimes de homicídio culposo (art. 302, §3º), lesão corporal culposa (art. 303, §2º) e à competição ilegal ou demonstração de perícia em via pública (art. 308, "caput"), além de disciplinar diretrizes para a dosimetria da pena-base (art. 291, §4º).
Em 2014, a lei 12.971 havia alterado o CTB da seguinte forma: (i) inseriu a qualificadora referente à embriaguez no §2º do artigo 302 (homicídio culposo), cominando pena de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quaro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor; e (ii) acrescentou dois parágrafos no artigo 308 (competição ilegal em via pública), tornando a pena qualificada se o agente, a partir do "racha" (dolo), causasse involuntariamente lesão corporal grave (§1º) ou morte (§2º)1.
Porém, a lei 13.281/16 revogou o §2º do artigo 302 do CTB, razão pela qual a conduta de dirigir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão de influência de álcool ou de outra substância psicoativa passou a configurar, em regra, a modalidade prevista no artigo 302, "caput", do CTB2.
Sob essa ótica, algumas questões passaram a ser refletidas na prática forense.
Primeiramente, seria mais razoável, por razões de política criminal, a punição por homicídio culposo (reclusão, de 2 a 4 anos), que propriamente pelo crime de homicídio simples, na forma dolosa (reclusão, de 6 a 20 anos), sob o fundamento de que, em certos casos, seria punir em demasia o condutor a título de dolo, a ponto de ofender o princípio da proporcionalidade, máxime o da proibição de excesso.
Além disso, surgiram controvérsias sobre se o crime de embriaguez ao volante (art. 306, CTB) seria absorvido ou não pelo crime de homicídio culposo em veículo automotor (art. 302, CTB).
Para a primeira corrente, configurar-se-ia concurso de crimes entre a embriaguez ao volante e o homicídio culposo.
Por outro lado, consistiria em conflito aparente de normas, sob o argumento de que o crime de embriaguez ao volante3 seria antefactum impunível do crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, visto que a embriaguez era considerada uma intensificação da violação do dever de cuidado e, portanto, uma fase necessária com o potencial de gerar o resultado morte, tendo em vista o desdobramento natural dos fatos (id quod plerumque accidit)4.
Entendemos, no entanto, que somente seria possível a absorção desde que a embriaguez ao volante fosse o único elemento ensejador da culpa. Isto porque "Sem a embriaguez, não teria havido culpa, e, sem ela, a conduta praticada pelo agente seria um indiferente penal."5. Em caso de concorrência da ebriedade com outras circunstâncias fáticas, caberia o concurso de crimes, pois a ebriedade não seria considerada meio para o homicídio culposo, afastando a possibilidade de aplicação do princípio da consunção6.
E, para outro posicionamento, aplicar-se-ia o princípio da subsidiariedade, posto que os tipos penais se referem à violação de um mesmo bem jurídico (leia-se, a disponibilidade da vida), embora cada qual descreva violação em níveis diferentes. Logo, se de um delito de mera conduta (embriaguez ao volante) sobrevém crime material (homicídio culposo), deve o agente responder pelo último7.
Independentemente da corrente perfilhada, a jurisprudência apresenta um ranço nas decisões envolvendo acidentes de trânsito e embriaguez. Acusa-se, por exemplo, que não foram aplicadas ao longo do tempo, de forma apropriada e minuciosa, as bases teóricas do princípio da consunção, levando ao desenvolvimento de uma exegese desproporcional e assistêmica, incompatível com a teoria do delito e com a responsabilidade subjetiva.
Nessa esteira, a lei 13.546/17 acrescentou uma qualificadora no parágrafo 3º do artigo 302 do CTB, criando figura específica para o homicídio culposo na direção de veículo automotor em razão de o condutor estar sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência8.
Entendemos que a nova previsão legal encontra lastro na vedação da dupla punição pelo mesmo fato (ne bis in idem). É, a priori, uma solução à problemática do concurso de crimes, pois tal não é mais possível entre o homicídio culposo (qualificado pela ebriedade) e a embriaguez ao volante.
Cuida-se de qualificadora que eleva sobremaneira a pena, em razão da particular situação ou condição do autor do delito, configurando culpa temerária ou crime hiperculposo, porquanto maior a intensidade de violação do dever objetivo de cuidado e das normas elementares de trânsito.
Trata-se de crime de dano, tendo como elementar diferenciadora do artigo 121 do Código Penal, o fato de o agente praticar o delito, culposamente, na condução de veículo automotor e em estado de embriaguez. Possui dupla objetividade jurídica: (i) de um lado, tutela-se a incolumidade pública (segurança viária); e (ii) de modo secundário, a vida dos condutores.
Ademais, a pena privativa de liberdade de reclusão pode ser cumprida em regime inicialmente fechado. Difere-se da pena prevista para o homicídio culposo do "caput" do artigo 302, que é de detenção e, via de consequência, de regime inicial semiaberto. Há, nesse viés, uma diferença qualitativa entre as penas do "caput" e do §3º.
Sem embargo, uma das principais mudanças trazidas pelo novel legislativo diz respeito à diferença quantitativa da pena, que passou a ser de cinco a oito anos. Essa alteração legislativa guarda harmonia com a proporcionalidade, tendo em vista que a sanção penal prevista no "caput" (detenção, de 2 a 4 anos) se tornou proporcional em relação à pena cominada à qualificadora do §3º (reclusão, de 5 a 8 anos).
Também se aplica à modalidade a sanção administrativa que suspende ou proíbe o motorista de obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Contudo, revela-se desproporcional a nova reprimenda se comparada com a do homicídio doloso (art. 121, CP), cuja sanção mínima é de 6 anos.
Ademais, a previsão legal da ebriedade como culpa (arts. 302, §3º, e 303, §2º) supera, em grande parte, as controvérsias sobre o dolo eventual e a culpa consciente. A tendência é a de que, na prática, ganhará força a tese da culpa consciente, já que disciplinada na forma qualificada do homicídio culposo em estado de embriaguez, reduzindo a margem de reconhecimento do dolo eventual.
Essa previsão parece seguir a jurisprudência no Brasil em crimes de trânsito.
No início, o Supremo Tribunal Federal firmara o entendimento de que configurava dolo eventual o homicídio praticado na direção de veículo automotor, caracterizando homicídio simples. Aplicava-se a "actio libera in causa" não só para a embriaguez completa preordenada, mas também para a incompleta – o que contrariava a essência dessa teoria, já que destinada, em verdade, somente para a embriaguez completa.
Atualmente, não é incomum o entendimento dos tribunais pátrios de que, com relação ao elemento volitivo, há dolo eventual quando o agente conduz o veículo automotor em estado de embriaguez ou emulativo, sobrevindo o falecimento da vítima.
Em que pese esse entendimento, apontam-se críticas a respeito, pois a análise do elemento subjetivo do agente não deve se restringir a condições específicas e isoladas do caso concreto, como no caso de considerar tão somente a ebriedade.
Ao longo do tempo, o Pretório Excelso refinou seu posicionamento, sob o argumento de que configura, em regra, culpa consciente o homicídio praticado na direção de veículo automotor em estado de embriaguez.
Registra-se o voto do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, em 2011, sob o fundamento de que, na morte culposa na direção de automotor, prevalece que a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual, razão pela qual há que se falar de culpa, em especial de culpa consciente9.
Acrescenta-se que, conforme decisão da sexta turma do Superior Tribunal de Justiça proferida em dezembro de 2017, no julgamento do REsp 1.689.173, a embriaguez do condutor do veículo não é suficiente para caracterizar dolo eventual, cabendo, na análise do caso concreto, a desclassificação do crime de homicídio doloso para o delito de homicídio culposo.
Segundo o voto do relator, ministro Schietti, a prática forense tem seguido uma perigosa tendência ao determinar a responsabilidade penal em acidentes de trânsito envolvendo embriaguez ao volante e excesso de velocidade. Isto porque, segundo o relator, o entendimento automático e mecanizado de que deve ser imputado ao condutor o dolo eventual tem gerado, na maioria dos casos, uma insólita e famigerada interpretação de institutos que compõem a teoria do crime, forçando uma conclusão desajustada à realidade dos fatos.
E, seguindo a dinâmica da jurisprudência, em casos de dúvida entre culpa consciente e dolo eventual, recomenda-se a aplicação do in dúbio pro reo. Porém, há casos em que, no júri, se impôs a pronúncia do réu, com base no in dubio pro societate, haja vista que, ainda que tênues as linhas entre dolo eventual e culpa consciente, pesaram indícios de que o réu, mesmo que avistando crianças à sua frente, imprimiu velocidade arriscada em seu veículo10.
De todo caso, a Suprema Corte já firmou o entendimento de que, em caráter excepcional, é possível a configuração de dolo eventual, caso em que restará aperfeiçoado o crime de homicídio doloso simples11.
À guisa de uma política criminal simbólica e emergencial, o Direito Penal de Trânsito é um "caminho sem volta" no Brasil, pois, além da sinuosa jurisprudência, há a persistência da edição de diversas legislações que ainda não propiciaram uma resposta criminal eficaz e coerente para a repressão das infrações no tráfego viário12.
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1 A partir dessa alteração legislativa, a prática forense teve que encarar a problemática do concurso de crimes nas seguintes situações: (i) entre o homicídio culposo e a embriaguez ao volante; e (ii) entre o §2º do artigo 302 e o §2º do artigo 308 do CTB.
2 "Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas: detenção, de 2 a 4 anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. §1º. No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 à metade, se o agente: I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; III – deixar de prestar socorro quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros.".
3 A partir da lei 11.705/08, cuja redação foi mantida pela lei 12.760/12, prevalece que a embriaguez ao volante, outrora classificada como delito de perigo concreto, tornou-se crime de perigo abstrato, consumando-se com a conduta de o agente conduzir o veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou qualquer outra substância de efeito análogo (art. 306, “caput”), cuja constatação far-se-á (§1º): (i) por concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou (ii) sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. A objetividade jurídica é a incolumidade pública, ou seja, a segurança do tráfego viário, cuja proteção se destina a bens jurídicos supraindividuais.
4 A aplicação da consunção se condiciona às circunstâncias do caso concreto, não possuindo uma fórmula abstrata e genérica para todos os casos, ao contrário do que ocorre com o princípio da especialidade. Acusa-se, com a devida vênia, que a jurisprudência não tem aplicado a consunção de forma proporcional nos delitos de trânsito. Por exemplo, há casos em que, embora excepcionais, o crime menos grave absorve o mais grave. Para Freitas: "São esses os fundamentos que justificam, em determinadas circunstâncias, que o delito de embriaguez ao volante, para o qual a lei cominou pena de detenção de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, seja absorvido pela lesão corporal culposa de trânsito, crime para o qual a lei cominou pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. É o típico caso em que o crime de perigo (embriaguez ao volante) foi apenado de forma mais severa que o delito de dano (lesão corporal culposa). De toda sorte, se houver excessiva desproporcionalidade entre o crime menos grave (absorvente) e o crime mais grave (absorvido), não haverá como aplicar a consunção." (FREITAS, Roberto da Silva. Homicídio culposo de trânsito, embriaguez ao volante e princípio da consunção. In: Revista do Ministério Público do Distrito Federal, Brasília, n. 9, p. 267-316, 2015, p. 285).
5 FREITAS, Roberto da Silva. Homicídio culposo de trânsito, embriaguez ao volante e princípio da consunção, p. 304.
6 Para Freitas: "Para ser fiel aos postulados teóricos do princípio da consunção, a embriaguez ao volante só restará absorvida pelo homicídio culposo de trânsito se aquela situação (embriaguez) for o único elemento ensejador da culpa, elemento normativo imprescindível à caracterização do tipo penal do art. 302 da lei 9.503/97. Com efeito, sendo a condução do veículo automotor sob a influência de álcool o fator a desencadear a situação de culpa e não sendo possível cindir a embriaguez da culpa necessária à consumação do homicídio, é inviável imputar ao agente a responsabilidade pelas duas condutas." (FREITAS, Roberto da Silva, p. 285).
7 Cf. BEM, Leonardo Schmitt de. Direito penal de trânsito. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 190 e ss.. Entendemos, com a devida vênia, que não é cabível a aplicação do princípio da subsidiariedade, posto que os tipos penais da embriaguez ao volante e do homicídio culposo não protegem o mesmo bem jurídico em níveis, etapas e graus de violação diferentes.
8 De acordo com a nova previsão, basta que, para a configuração do homicídio culposo, o condutor esteja sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, ou seja, basta a demonstração de que ingeriu a substância. Já na lesão corporal culposa praticada na direção de veículo automotor em estado de embriaguez (art. 303, §2º), exige-se que o agente conduza o veículo com "capacidade psicomotora alterada". Contudo, entendemos que essas diferenças são prescindíveis, pois a resolução do Contran 432/13 disciplina um único procedimento para apuração da embriaguez.
9 STF, HC 107.801/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Julgado em: 06/09/2011.
10 FUKASSAWA, Fernando. Crimes de trânsito. 3. ed. São Paulo: Associação Paulista do Ministério Público, 2015, p. 156.
11 STF, Segunda Turma, HC 115352/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Julgado em: 16/04/13.
12 A propósito do tema, cf. obra a ser lançada: VALENTE, Victor Augusto Estevam. Direito penal: fundamentos preliminares e parte geral (arts. 1º a 120). V. I. Coleção Concursos Públicos. Salvador: Juspodivm, 2018.
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*Victor Augusto Estevam Valente é professor em Direito Penal da PUC-Campinas. Coordenador do Curso de Especialização de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da PUC-Campinas. Advogado.