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A influência do neoconstitucionalismo na Constituição Federal de 1988 e a constitucionalização do Direito Civil no Brasil

Este artigo tem por objetivo analisar o direito constitucional moderno, novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo, que influenciou substancialmente todo o ordenamento jurídico brasileiro.

3/1/2018

Introdução

O novo direito constitucional, direito constitucional moderno ou neoconstitucionalismo, foi o responsável pela criação de um novo modelo de direito constitucional, que colocou a Constituição em posição de destaque em vários países europeus, redefinindo o seu papel e o papel do direito constitucional, em relação às demais normas previstas em seus ordenamentos jurídicos.

Ao juntar ideias de constitucionalismo e de democracia, surgiu uma nova forma de governança e de organização político-jurídica, também conhecida nos dias de hoje como "Estado Democrático de Direito", onde a dignidade da pessoa humana passou a ser o seu fundamento maior.

A norma constitucional passou a ter status de norma jurídica, com caráter vinculativo e efetividade máxima, para que direitos fundamentais e garantias individuais antes não observadas, ganhassem uma proteção maior e permitisse a criação de mecanismos que viabilizassem a sua aplicação.

No Brasil, a modernização e a transformação do direito constitucional, se deu com o advento da Constituição Federal de 1988, que, após um longo período de ditadura militar, surgiu num contexto de busca pela defesa e pela realização dos direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade, nas mais diferentes áreas, colocando o texto constitucional como um verdadeiro garantidor desses direitos e acima das demais leis. O Direito Civil, por exemplo, sofreu uma verdadeira "constitucionalização", uma mudança de paradigma cuja interpretação e aplicação de suas normas, de natureza privada, passaram a ser feitas em consonância com a Constituição Federal, observando seus limites, suas permissões, seus princípios e seus fundamentos de direito público.

Assim, o objetivo deste artigo é demonstrar como essa nova tendência do direito constitucional moderno afetou a nossa Constituição, de modo a promover uma verdadeira releitura de todo ordenamento jurídico pátrio, com base na Constituição, e, para isso, abordaremos assuntos relevantes, como o marco histórico do neoconstitucionalismo e a sua influência na Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoas humana, a supremacia da Constituição, assim como a evolução do Direito Civil e a sua adequação à nova realidade do direito constitucional no Brasil, dentre outros assuntos relevantes que serão abordados no decorrer desta apresentação.

Desejamos a todos uma boa leitura!

1 – Da transformação e da modernização do Direito Constitucional no Brasil

Historicamente, o novo direito constitucional, direito constitucional moderno ou neoconstitucionalismo, se desenvolveu na Europa, após a segunda Guerra Mundial. Esse novo modelo de direito constitucional colocou a Constituição em posição de destaque em vários países europeus, redefinindo seu papel e o papel do direito constitucional, em relação às demais normas previstas no ordenamento jurídico destes países, ao juntar ideias de constitucionalismo e de democracia, criando, assim, uma nova forma de governança e de organização político-jurídica, também conhecida como "Estado Democrático de Direito".

O Tribunal Constitucional Alemão, por exemplo, criado em 1951, sob o novo contexto da Constituição Alemã de 1949, na ocasião, trouxe uma grande produção teórica e jurisprudencial acerca deste novo conceito de direito constitucional, gerando um avanço científico para os países cuja tradição jurídica era romano-germânica, "Civil Law" (a lei por si só já é suficiente e plenamente aplicável, limitando qualquer interpretação do juiz no seu processo de aplicação aos casos concretos), diante da aproximação, ainda que discreta, ao sistema anglo-saxônico, "Common Law", fundado no sistema de precedentes, com muita força nos Estados Unidos, onde o direito se desenvolveu basicamente na jurisprudência, nas decisões tomadas pelos tribunais norte-americanos ao caso concreto, e não pelos atos do Poder Legislativo ou Executivo.

É bem verdade que, antes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supremacia do Poder Legislativo, fundado na doutrina inglesa de soberania do Parlamento e na concepção francesa da lei como expressão da vontade geral, porém, foi no final da década de 1940, que a nova tendência do direito constitucional ganhou força, inspirado na experiência norte-americana, onde o principal fundamento era o da supremacia da constituição, cujo modelo envolvia a constitucionalização dos direitos fundamentais, que, de certa forma, eram protegidos e imunizados em relação aos outros direitos, e a sua proteção passou a caber ao Judiciário.

A partir daí, inúmeros países europeus vieram a adotar um modelo próprio de controle de constitucionalidade das normas, fundado no princípio da supremacia da Constituição, associado à criação de tribunais constitucionais, como foi o caso da Alemanha (1951), Itália (1956), Turquia (1961), Grécia (1975), Espanha (1978), Portugal (1982), dentre muitos outros.

Esse avanço normativo, somado à necessidade de superação de um passado recente dos horrores e atrocidades ocorridos na Europa pós-guerra, exigiram uma nova postura de aplicação e de interpretação do direito constitucional, ficando evidente que o velho constitucionalismo europeu, caracterizado basicamente pela adoração à lei e ao legislador, era incapaz de evitar o surgimento de regimes autoritários responsáveis por diversas violações a direitos fundamentais e a outros direitos.

Uma das mudanças de paradigma mais importantes ocorridas ao longo do século XX, sem sombra de dúvidas, foi a atribuição do status de norma jurídica à norma constitucional, sendo que hoje, com a evolução do direito constitucional, podemos dizer que o neoconstitucionalismo, é fundamentalmente marcado por quatro premissas básicas, são elas:

1 – trazer a Constituição para o centro do Direito, como ponto de partida para todos os outros ramos do Direito, formando um ordenamento jurídico com um contexto constitucional.

2 – atribuir força normativa real, efetiva, para a constituição, atingindo inclusive as relações privadas infraconstitucionais, ou seja, o texto constitucional atinge todas as leis complementares, ordinárias, decretos, medidas provisória, regulamentos, regimentos, portarias, circulares, dentre outros atos normativos, de toda e qualquer natureza.

3 – reinterpretar a própria constituição e extrair dela todos os seus valores fundamentais, de modo que esses valores sejam rigidamente mantidos e alterados somente quando houver mudança da própria sociedade que essa Constituição rege.

4 – tornar todo ordenamento jurídico atrelado à nova interpretação, utilizando todas as normas conforme o previsto na Constituição.

No Brasil, a modernização e a transformação do direito constitucional, ocorreram em razão da discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação em 5/10/88, da Constituição Federal, onde, após um longo período de ditadura militar (de 1964 a 1985), marcado pela censura e pela restrição de direitos fundamentais, o Brasil veio a se democratizar e a se reconstitucionalizar.

A "Constituição Cidadã", assim apelidada pelo então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses de Guimarães, surgiu num contexto de busca pela defesa e pela realização dos direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade, nas mais diferentes áreas, colocando o texto constitucional como um verdadeiro garantidor desses direitos, de modo que, já no preâmbulo da Carta Constitucional, ficou muito claro que o Brasil passou de um Estado opressor, ditatorial, para um Estado Democrático de Direito, garantidor e protetor de direitos fundamentais, senão vejamos:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL".

O Brasil, ao tornar-se um Estado Democrático de Direito, passou a respeitar e a preservar as liberdades civis, os direitos humanos, os direitos fundamentais e as garantias individuais, através do estabelecimento de um sistema de proteção jurídica, norteado por vários mecanismos que garantem a efetivação e a concretização desses direitos, com vistas ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça social, seguindo, assim, a tendência do constitucionalismo contemporâneo, ao incorporar, expressamente, no seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana como valor supremo, definindo-o como fundamento da República, conforme prevê o art. 1º, III, senão vejamos:

"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana".

Pietro Alarcón de Jesús, por exemplo, ensina que: "A tendência dos ensinamentos constitucionais é no sentido de reconhecer e valorizar o ser humano como a base e o topo do direito" (ALARCÓN. Pietro de Jesús Lora. Patrimônio Genético Humano: e Sua Proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004).

O princípio da dignidade da pessoa humana, também previsto em vários Tratados Internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica, assinado em 22/11/69, ratificado e promulgado no Brasil através do decreto 678/92, dentre outros, é a força motriz, o princípio fundamental e reitor do Estado Brasileiro.

Assim, a premissa do estudo da Constituição, fundada no novo direito constitucional, passou a ser o reconhecimento de sua supremacia, de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições e da imperatividade de seus mandamentos.

A modernização do Direito Constitucional no Brasil, portanto, é resultado da afirmação dos direitos fundamentais como ponto central da proteção da dignidade da pessoa humana, consubstanciada na ideia de que a Constituição Federal, em uma República Federativa, diante da sua supremacia, por estar acima de qualquer lei ou ato normativo, é o local adequado para positivar normas assecuratórias dessas pretensões, com máxima efetividade e força vinculativa perante as demais normas abaixo do texto constitucional.

É o texto constitucional, norteado por diversos princípios e normas de ordem pública, quem traz os direitos fundamentais e as garantias individuais de cada cidadão, garantias estas, protegidas como "cláusula pétrea", inclusive, conforme dispõe o art. 60, § 4º, IV, ou seja, não podem ser abolidas por lei e nem por emenda constitucional, mas somente com o advento de uma nova Constituição.

Uma das garantias individuais mais importantes que merece destaque é a do art. 5º, XXXV, que consagra o Princípio da Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional, onde, "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça de direito".

Trata-se de princípio de Direito Processual Público subjetivo, também cunhado como Princípio da Ação ou Acesso à Justiça, de modo que a Constituição garante a necessária tutela estatal aos conflitos ocorrentes na vida em sociedade, na qual qualquer pessoa pode se valer do Poder Judiciário quando se deparar com uma lesão ou, até mesmo, uma ameaça de lesão a direito seu ou de terceiro.

Aliás, o Brasil adotou o sistema de jurisdição única, onde somente o Poder Judiciário pode, de forma definitiva, declarar o direito diante de um caso concreto, quando provocado por alguém que se veja diante de uma pretensão resistida, ou seja, de um conflito de interesses, onde, de um lado, busca-se a reparação de um direito próprio ou de outrem que supostamente foi ameaçado ou violado, e do outro, alguém tentando provar, com amparo da ampla defesa e contraditório, também como uma garantia constitucional, que não violou ou ameaçou direito algum.

Alexandre de Moraes, hoje ministro do STF, em importante obra, escrita há 20 anos, já havia esclarecido: "O Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue". (MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos arts. 1º à 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas S.A., 1998, p. 197).

Forçoso dizer inclusive, que essa inafastabilidade do controle jurisdicional, é garantia inerente ao próprio rol de direitos humanos, considerados internacionalmente como imperativos do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), por exemplo, no seu artigo 10, afirma: "Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com eqüidade, por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações, ou para o exame de qualquer acusação contra ela dirigida, em matéria penal".

Já a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), em seu artigo 6º, inciso I, garante que "Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada eqüitativa e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial instituído por lei, que decidirá sobre seus direitos e obrigações civis ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigido contra ela".

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), no art. 14, inciso I, também dispõem que: "Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais. Toda a pessoa terá direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal independente e imparcial, instituído por lei, no tocante a qualquer acusação de caráter penal contra ela formulada ou para a determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil".

E, como não poderia deixar de ser, a já citada Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos (1969), conhecida como "Pacto de San José da Costa Rica", estabeleceu no artigo 8º, I, que: "Toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei anterior, na defesa de qualquer acusação penal contra ela formulada, ou para a determinação de seus direitos e obrigações de ordem civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza".

Assim, a previsão deste princípio nestes importantes Diplomas Internacionais, revela, de forma clara e precisa, a necessidade de garantir a proteção dos direitos fundamentais pelo acesso universal ao Poder Judiciário, o poder da República responsável constitucionalmente por controlar todos os atos que causam ou possam vir a causar lesões ou ameaças a direitos.

No sistema jurídico infraconstitucional não é diferente, a garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional vem disposta no Código de Processo Civil, onde o artigo 3º deixa muito claro que: "Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito".

Reconhece-se, portanto, diante da nova realidade do direito constitucional, que o controle jurisdicional não deve sofrer limitações de qualquer natureza em função da classe de direitos afirmados, da qualidade dos sujeitos titulares ou mesmo pela inexistência de disposição normativa expressa sobre a matéria, por ser princípio reitor do Estado Democrático de Direito e por ser uma garantia individual de todo cidadão, prevista como cláusula pétrea pela CF/88 e essa garantia também foi inserida por influência direta do neoconstitucionalismo.

A constitucionalização do Direito e seus mecanismos de atuação prática influenciam diretamente os poderes do Estado, na medida em que, diante da supremacia da Constituição, impõem deveres negativos e positivos ao legislador quando da criação das leis, ao administrador quando as executa, e ao julgador quando resolve os conflitos de interesses, causados pela lei, para que respeitem e observem os limites e os fins estabelecidos pela Constituição. Essa constitucionalização é, portanto, característica essencial da própria jurisdição constitucional, surgindo, a partir daí, diferentes técnicas e possibilidades interpretativas fundadas na supremacia da Constituição, nas quais podemos citar:

a possibilidade de revogação das normas infraconstitucionais anteriores à Constituição (ou à emenda constitucional), quando com ela incompatíveis;

a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis;

a declaração da inconstitucionalidade por omissão, com a consequente convocação à atuação do legislador;

a interpretação conforme a Constituição, que pode envolver desde a leitura da norma infraconstitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores e fins constitucionais a ela subjacentes até a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, consistente na exclusão de uma determinada interpretação possível da norma, geralmente a mais óbvia, e a afirmação de uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição.

2 – Da Constitucionalização do Direito Civil no Brasil

O Direito Civil é o ramo do Direito que rege as relações jurídicas entre particulares, através de normas que regulam, na ordem privada, os bens, as pessoas, os direitos e as obrigações, o patrimônio, a sucessão hereditária, ou seja, regula todas as relações concernentes às pessoas enquanto membros da sociedade.

Nosso primeiro Código Civil foi o de 1916, concebido originalmente por Clóvis Beviláqua e influenciado anos depois por Rui Barbosa. O segundo surgiu em 1969, totalmente reformulado. E o terceiro, que está em vigência, é o de 2002, cuja base, segundo o seu idealizador, Miguel Reale, é norteada por três princípios fundamentais, são eles:

Eticidade: A codificação atual preocupou-se principalmente com a ética e a boa-fé, sobretudo com a boa-fé objetiva, aquela que existe no plano da conduta de lealdade dos participantes negociais;

Socialidade: surge em contraposição à ideologia individualista e patrimonialista do sistema de 1916, buscando preservar o sentido de coletividade, muitas vezes em detrimento de interesses individuais. Todos os institutos civis têm função social, caso do contrato e da propriedade;

Operabilidade: compreende a concessão de maiores poderes interpretativos ao magistrado, por um sistema de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, aplicando, no caso concreto, as efetivas necessidades de aplicação da tutela jurisdicional.

Esse sistema regulatório, organizado pelo Código Civil de 2002 e por tantas outras leis, regido por um regime jurídico de direito privado, não pode, contudo, se sobrepor às normas e aos princípios constitucionais de ordem pública.

Importante mencionar, que as relações entre o direito constitucional e o direito civil atravessaram, nos últimos dois séculos, três fases distintas, que vai da indiferença à convivência intensa, sendo que o ponto de partida dessa trajetória foi a Revolução Francesa, que, após um longo período de regime absolutista onde o rei era soberano e acima dele só existia a vontade de Deus, deu a cada um destes ramos do Direito o seu objeto de trabalho: ao direito constitucional, uma Constituição escrita, promulgada em 1791 e ao direito civil, o Código Civil napoleônico, de 1804.

Antigamente, direito civil e direito constitucional não se integravam e nem se comunicavam entre si, ocasionando, em razão disso, um processo de aproximação lento e progressivo.

Num primeiro momento, bem no início do constitucionalismo moderno, na Europa, a Constituição era vista como uma Carta Política, que regia apenas as relações entre o Estado e o cidadão, ao passo que o Código Civil era o documento jurídico que cuidava essencialmente das relações entre particulares. O Código Napoleônico, por exemplo, realizava de forma coerente o ideal burguês de proteção da propriedade e da liberdade de contratar, dando segurança jurídica aos protagonistas do novo regime liberal: o contratante e o proprietário, em contraponto ao regime absolutista, onde não havia essa "liberdade de contratação".

Em um segundo período, houve uma verdadeira publicização do direito privado, norteado pela liberdade individual, pela igualdade formal entre as pessoas e pela garantia absoluta do direito de propriedade, e, ao logo do século XX, com o advento do Estado Social e com a percepção crítica da desigualdade material entre os indivíduos, o direito civil começou a superar o individualismo acentuado, deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade.

Baseado na solidariedade social e na função social de instituições, como a propriedade e o contrato, o Estado começou a interferir nas relações entre particulares, mediante a criação e implementação de normas de ordem pública, destinadas, acima de tudo, à proteção do lado mais fraco da relação jurídica, também conhecido como hipossuficiente, como é o caso do consumidor, do locatário e do empregado, por exemplo.

Por fim, a terceira fase da constitucionalização do direito civil, se deu pela passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, passando a atuar como um filtro de valores fundamentais pelo qual o direito civil deve se submeter.

Existem regras específicas na Constituição, impondo, por exemplo, o fim da supremacia do marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos havidos dentro ou fora do casamento, a função social da propriedade, a igualdade, a solidariedade social, a razoabilidade, dentre outras.

Por sua vez, após a segunda grande guerra, o princípio da dignidade da pessoa humana na nova dogmática jurídica, ganhou um peso enorme e deu início a reconstrução dos direitos humanos, que passou a constar em diversos documentos internacionais e na grande maioria das Constituições democráticas, inserido, inclusive, na CF/88, como um dos fundamentos da República (art. 1º, III), como já demonstrado.

O princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental, passou a impor limites e atuações positivas ao Estado, no atendimento das necessidades vitais básicas, promovendo uma verdadeira "despatrimonialização" e uma "repersonalização" do direito civil, fundado no reconhecimento e no desenvolvimento dos direitos da personalidade.

No Brasil, a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas ainda é motivo de debate na doutrina e na jurisprudência, existem duas correntes a respeito, a primeira preconiza a eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, mediante atuação do legislador infraconstitucional e atribuição de sentido às cláusulas abertas, já a segunda, que entendemos se a mais adequada, defende a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, mediante um critério de ponderação entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da autonomia da vontade, de um lado, e o direito fundamental discutido, do outro lado.

Para esse entendimento doutrinário e jurisprudencial, que melhor se amolda com a realidade jurídica e constitucional do Brasil, devem ser levados em consideração os elementos e as situações do caso concreto, tomando por base a igualdade ou a desigualdade material entre as partes, a concreta injustiça ou falta de razoabilidade do critério adotado, a preferência para valores existenciais sobre os patrimoniais e o risco de violação da pessoa humana.

Assim, o avanço progressivo do processo de constitucionalização e de modernização do direito civil, no Brasil, afetou consideravelmente a jurisprudência e a doutrina civilista, que, por via de consequência, foi a responsável, de certa forma, pela aproximação do direito civil aos preceitos fundamentais descritos na Constituição, seguindo a tendência do neoconstitucionalismo mundial, fundado no princípio da supremacia da constituição e da força vinculativa de suas normas.

Desta forma, o novo Código Civil de 2002, não podia deixar de atentar para esse fato essencial, em contraposição ao Código Civil de 1916 que era fundado exclusivamente no Direito Privado, pois a antiga Constituição de 1891, vigente à época, não cuidava da problemática social. Por exemplo, o NCC fez questão de dedicar um capítulo inteiro aos "direitos da personalidade", que não eram previstos no diploma anterior, dispondo no art. 11 que tais direitos são "intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária".

Porém, não é feita uma enumeração, ainda que exemplificativa, dos direitos da personalidade, que são todos aqueles que constituem elementos componentes intangíveis da pessoa, de conformidade com as conquistas do processo histórico-cultural que assinala o progresso da sociedade civil, em constante correlação complementar com a instituição estatal.

Essa busca pela complementaridade, portanto, serve de base para a aproximação e a crescente convergência do Direito Público com o Direito Privado, visto que ambos compõem o processo dialético da positividade jurídica através da história, observando as necessidades e os valores que caracterizam cada sociedade, sendo a pessoa humana e a sua proteção o princípio básico de todo ordenamento jurídico, especialmente do direito civil.

Por derradeiro, é esse sentido de complementaridade que explica o duplo processo de "privatização do Direito Público", como, por exemplo, o § 1º, do Art. 173, da CF/88, que impõe a certas empresas públicas o regime jurídico de direito privado, e, de "constitucionalização do Direito Civil", como faz o art. 226 também da Constituição, quando trata da organização da família.

Seguindo esse duplo processo, logo no art. 1º, IV, da Constituição, a "livre iniciativa" também é tratada como um dos fundamentos da República, da mesma forma que, de acordo com o art. 37, o exercício do poder pela administração pública deve obedecer invariavelmente aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e essa dupla exigência, por sua vez, repercute no Código Civil, quando art. 421 consagra, por exemplo, a "liberdade contratual", mas condicionada pela "função social do contrato" e pela "boa-fé" por parte dos contratantes.

Assim, a constitucionalização do direito civil, também conhecida como "direito civil constitucional", nada mais é do que a obrigatoriedade de uma releitura dos institutos de direito civil conforme a Constituição Federal e a nova tendência do direito constitucional, que passou a ser figura central, após o fim da 2ª Guerra Mundial, principalmente nos países que adotam a democracia como regime político.

Não é que a norma civil deixou de ser ou perdeu a sua natureza de direito privado, na verdade, não só o direito civil, mas todos os outros ramos do direito, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, passaram a ser interpretados e adequados conforme as suas disposições, que sob o aspecto da hierarquia das normas, está acima de todas as demais leis ou atos normativos, seguindo com isso, a nova tendência e a sistemática do direito constitucional moderno.

3 – Considerações Finais

O neoconstitucionalismo, desenvolvido no período após a 2ª Grande Guerra, mudou substancialmente a visão e a aplicação do direito constitucional nos países que adotam a Democracia como forma de organização política, e colocou a Constituição em posição de destaque dentro do ordenamento jurídico vidente, fazendo valer a sua supremacia e a força vinculativa de suas normas em relação às demais normas.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 no Brasil, o Direito Civil sofreu uma verdadeira releitura constitucional, uma "constitucionalização", pois se antes a Constituição tinha um viés norteado por regulamentar apenas a vida privada sob uma visão patrimonialista, após a Carta Magna de 1988, este viés sofreu uma nova interpretação, uma alteração na sua aplicação, para poder também regular o homem dentro da sociedade, seguindo a tendência do direito constitucional moderno, onde a dignidade da pessoa humana, positivada também em vários Diplomas Internacionais, passou a ser o centro do nosso Estado Democrático de Direito.

A chamada "Constituição Cidadã", elaborada de acordo com essa evolução do direito constitucional, foi a responsável pela implementação e pela positivação de uma gama de direitos fundamentais e de garantias individuais do cidadão, regulamentando normas e meios utilizados para um fim maior,

No nosso sistema normativo, a Constituição fica no topo e o restante das leis e atos normativos se submete a seus princípios e normas, de modo que quando tratamos o direito provado com uma visão constitucional, além de respeitar o princípio da hierarquia das normas, elevamos o direito civil a outro patamar, utilizando-o como instrumento hábil a atender totalmente os inúmeros conflitos existentes na vida em sociedade, equilibrando suas vontades e necessidades, regulando, inclusive, as relações entre os particulares e o Estado.

Muito provavelmente, a Constituição Federal de 1988 seja o mais amplo elenco de direitos fundamentais e garantias individuais do constitucionalismo mundial, sendo a constitucionalização do Direito Civil algo muito maior do que um mero mecanismo de imposição de limites externos à atividade privada, é, na verdade, uma verdadeira releitura de antigos institutos fundamentais do Direito Civil, em razão da sua reformulação interna de conteúdo, com essa nova valoração determinada pelos preceitos fundamentais e vinculativos da nossa Constituição, influenciada frontal e substancialmente pelo neoconstitucionalismo.

O Código Civil de 2002 se adequou a essa nova realidade do direito constitucional e em suas diretrizes trouxe alguns valores considerados fundamentais como a socialidade, a eticidade e a operabilidade, priorizando o bem-estar social, o coletivo sobre o particular, vale dizer, os institutos de direito civil passaram a ter função social, como no caso do contrato e da propriedade, e todos estes direitos também foram inseridos no texto constitucional para que fossem amplamente garantidos e protegidos.

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*Stéfano Di Cônsolo Carlucci é advogado, consultor jurídico, defensor da Sexta Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP, presidente da Comissão de Integração Regional da OAB/SP – subseção Lapa.

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