Migalhas de Peso

As garantias constitucionais do processo civil no aniversário dos 30 anos da Constituição Federal

Esse artigo é dedicado ao Migalhas, que, mais uma vez, iluminou a comunidade jurídica brasileira durante todo o ano que se findou.

2/1/2018

Um advogado, logo na manhã de mais um dia de labuta, é intimado de uma sentença proferida contra os interesses de seu cliente. Vai direto para o dispositivo e, insatisfeito, passar a examinar a motivação do ato decisório. Fica ainda mais contrariado, porque, mesmo depois de positivado o princípio constitucional do dever de fundamentação dos atos decisórios, de copiosa literatura a respeito do tema e de jurisprudência pacífica sobre a questão, o juiz teria negligenciado o seu mister, deixando de explicitar a ratio decidendi de forma consistente, convincente e adequada!

A despeito desta situação apenas exemplificativa (mas ainda relativamente frequente, o que é lamentável...), dúvida não pode haver de que a Constituição Federal brasileira implementou grande e elogiável avanço no que se refere à superlativa garantia do devido processo legal!

Neste ano de 2018 são comemoradas três décadas de vigência da Constituição de 1988 – a sétima da nossa história -, elaborada pelo Congresso Constituinte, composto por deputados e senadores eleitos democraticamente em 1986 e empossados em fevereiro de 1987. O trabalho, concluído em um ano e oito meses, permitiu inequívocos progressos em áreas estratégicas da convivência social. As normas previstas no título sob a rubrica Dos Direitos e Garantias Fundamentais, consideradas irrevogáveis, são denominadas cláusulas pétreas (não podem ser alteradas por emendas constitucionais). Entre elas estão a maioria das garantias processuais.

A Constituição, dentre outros relevantes escopos, deve regular e pacificar os conflitos e interesses individuais e coletivos que integram a sociedade. Para isso, estabelece regras que asseguram a prestação jurisdicional revestida de determinadas garantias, que foram sendo cunhadas ao longo do tempo pela experiência extraída de dogmas democráticos, fundamentais para dar consistência à famosa máxima, sábia e perene, do jurista romano Ulpiano (Digesto 1.1.10.1): Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere” (“Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu”).

E isso, simplesmente porque os atos processuais devem ser regidos, realizados e interpretados em estrita simetria com os postulados que asseguram aos litigantes o devido processo legal, contemplados na Constituição Federal de 1988, especialmente em seu art. 5º. Assinale-se que a Carta Republicana em vigor, lei suprema que é, situa-se no ponto culminante da hierarquia das fontes do Direito, contendo os fundamentos institucionais e políticos de toda a legislação ordinária. Em seus textos repousam numerosas regras e institutos atinentes ao processo, qualquer que seja a sua natureza. Ademais, ao lado de seu perfil técnico, deslocado para a vertente constitucional, o Direito Processual vem moldado por duas diferentes exigências: precisão formal e justiça substancial. E nesse conflito dialético entre exigências contrapostas, não obstante dignas de proteção, são inseridas as garantias constitucionais do processo.

Destacada página da história da liberdade, a garantia constitucional do devido processo legal deve ser uma realidade em todo o desenrolar do processo judicial, arbitral ou administrativo, de sorte que ninguém seja privado de seus direitos, a não ser que no procedimento em que este se materializa se constatem todas as formalidades e exigências em lei previstas. A Constituição Federal vigente assegurou, como se sabe, a todos os membros da coletividade um processo que deve se desenrolar publicamente perante uma autoridade competente, com igual tratamento dos sujeitos parciais, para que possam defender os seus direitos em contraditório, com todos os meios inerentes e motivando-se os respectivos provimentos; tudo dentro de um lapso temporal razoável.

Como pressuposto de um processo civil revestido de todas estas prerrogativas, é imprescindível que os titulares de direitos ameaçados ou violados possam submeter as suas respectivas pretensões à apreciação no âmbito de um procedimento no qual lhes sejam asseguradas tais garantias, com absoluta paridade de armas.

O art. 5º da nossa Constituição encerra o princípio da reserva legal, também denominado da inafastabilidade da jurisdição, ao preceituar que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Observa-se que o caput do art. 3º do Código de Processo Civil em vigor reitera essa mesma regra, reservando ao Estado-juiz o monopólio da jurisdição.

Isso significa que a ninguém é dado renunciar à defesa de seus direitos diante de uma potencial lesão futura! Daí por que desponta nulo e ineficaz qualquer pactum de non petendo, estipulado como cláusula de negócio jurídico, pelo qual os contratantes se comprometem a não recorrer ao Poder Judiciário caso surja algum litígio entre eles.

Com a promulgação da Constituição em 1988 e dos inúmeros textos legais que lhe seguiram (por exemplo: Código de Defesa do Consumidor, reforma da Lei de Ação Civil Pública, etc.), infundiu-se em cada brasileiro um verdadeiro “espírito de cidadania”. Os cidadãos passaram a ser senhores de seus respectivos direitos, com a expectativa de verem cumpridas as garantias que lhes foram então asseguradas.

O princípio constitucional do contraditório – e o seu desdobramento na garantia do direito de defesa – corresponde a um postulado considerado eterno. Realmente, nenhuma restrição de direitos pode ser admitida sem que se propicie à pessoa interessada a produção de ampla defesa, e, consequentemente, esta só poderá efetivar-se em sua plenitude com o estabelecimento da participação ativa e contraditória dos sujeitos parciais em todos os atos e termos do processo.

É que, aliás, ampliando, explicitamente, tradicional regra de nosso ordenamento jurídico, a garantia do contraditório foi elevada ao plano constitucional, no Brasil, pela Constituição de 1946 e reiterada na atual Carta Magna no inciso LV do art. 5º: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O processo judicial, arbitral ou administrativo, como instituição eminentemente dialética, em qualquer de suas vertentes, encontra-se sob a égide do princípio do contraditório. Não se faz possível conceber um processo unilateral, no qual atue somente uma parte, visando à obtenção de vantagem em detrimento do adversário, sem que se lhe conceda oportunidade para apresentar as suas razões. Se não deduzi-las, a despeito de ter sido convocado, sofrerá os ônus da inatividade, situação que lhe poderá ser prejudicial. O contraditório, ademais, deve igualmente ser observado no desenvolvimento do processo, para que ambos os protagonistas, em franca colaboração com o juiz, possam efetivamente participar e influir no provimento final.

Acrescente-se que, garantindo aos sujeitos parciais uma equivalência nas respectivas posições, por eles assumidas, o princípio do contraditório sedimenta-se na possibilidade de atuação não em momentos episódicos, mas em todo o iter procedimental, numa sequência de atuações, estratégias e reações, que tornam efetiva a ampla defesa, evitando-se indesejada “decisão-surpresa”.

O princípio do contraditório, diante da regra constitucional supra transcrita, recebeu tratamento específico no novo Código de Processo Civil. Na verdade, o objetivo precípuo da Comissão de Juristas que elaborou o respectivo Anteprojeto veio revelado na própria exposição de motivos, ao ser enfatizado, com todas as letras, que: “A necessidade de que fique evidente a harmonia da lei ordinária em relação à Constituição Federal da República fez com que se incluíssem no Código, expressamente, princípios constitucionais, na sua versão processual”.

No novo diploma processual, muitas regras foram concebidas para dar concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que preveem um procedimento, com contraditório e produção de provas, prévio à decisão que desconsidera da pessoa jurídica.

O art. 10 do Código de Processo Civil contém regra no sentido de que o fato de o juiz estar diante de matéria de ordem pública não dispensa a obediência ao princípio do contraditório.

Outro consectário da garantia do devido processo legal firma-se no denominado princípio da isonomia processual, determinante do tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo durante todos os atos e termos do respectivo procedimento. Decorre ele, sem dúvida, do enunciado do art. 5º, e seu inciso I, da Constituição Federal, ao expressar, de modo enfático, e até repetitivo, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Nem podia ser diferente, até porque o processo civil jamais atingiria plenamente sua finalidade de compor as controvérsias se os litigantes não fossem tratados com igualdade em todo o seu desenrolar. Em suma, assegurando-se a todos os jurisdicionados, indistintamente, a proteção de seus direitos subjetivos materiais, pelos órgãos dotados de jurisdição, por meio do processo, subsiste, também no âmbito da ação, o regramento da isonomia processual, fazendo as partes que nele atuam merecerem igual tratamento, ou seja, as mesmas chances, autêntica paridade de armas (Waffengleichheit).

Com efeito, impondo-se à legislação ordinária amoldar suas normas às preceituações constitucionais, nela não pode haver lugar para o estabelecimento de discriminações ou privilégios, quaisquer que sejam, isto é, de desigualdades entre iguais.

Por esta razão é que não se pode cogitar de exceção ou exceções ao mencionado princípio constitucional, embora largamente disseminadas na velha legislação, como, por exemplo, a ampliação do prazo em quádruplo e em dobro, respectivamente, para a Fazenda Pública oferecer contestação ou recorrer; e o reexame necessário das sentenças proferidas contra a União, o Estado e o Município. Aliás, não só estas como igualmente outras regras correlatas, revestidas de incontornável inconstitucionalidade, ao favorecerem também a Fazenda Pública e o Ministério Público em determinadas situações processuais de conotação nitidamente patrimonial, que infringem o princípio maior, alusivo à igualdade de todos perante a lei.

Como já tive oportunidade de asseverar, o atual Código de Processo Civil, a propósito deste aspecto criticável, perdeu a oportunidade de dizimar os apontados privilégios, ao manter a “remessa necessária” (art. 496), e estabelecer, como regra, o prazo em dobro para o Ministério Público (art. 180); para a União, Estados, Distrito Federal, Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público (art. 183); para a Defensoria Pública, as entidades e os escritórios de prática jurídica das faculdades de Direito, legalmente reconhecidas (art. 186 e § 3º). No que se refere à delicada questão dos honorários advocatícios, quando a Fazenda Pública é parte, o novo Código, no art. 85, § 3º, traça critérios para a fixação da verba honorária, que evidenciam a valorização e o reconhecimento do exercício profissional do advogado.

As garantias da publicidade e do dever de motivação estão consagradas, pela moderna doutrina processual, na esfera dos direitos fundamentais, como pressupostos do direito de defesa e da imparcialidade e independência do juiz.

A publicidade do processo constitui um imperativo de conotação política, introduzido, nos textos constitucionais contemporâneos, pela ideologia liberal, como verdadeiro instrumento de controle da atividade dos órgãos jurisdicionais.

A garantia em tela justifica-se na exigência política de evitar a desconfiança popular na administração da justiça, até porque a publicidade consiste num mecanismo apto a controlar a falibilidade humana dos juízes.

Considere-se, por outro lado, que, ao lado da publicidade, é absolutamente imprescindível que o pronunciamento da justiça, destinado a assegurar a inteireza da ordem jurídica, realmente se funde na lei; e é preciso que esse fundamento se manifeste, para que se possa saber se o império da lei foi na verdade assegurado.

Tendo-se presente a dimensão de seu significado jurídico-político, desponta, na atualidade, a necessidade de controle (extraprocessual) “generalizado” e “difuso” sobre o modus operandi do juiz no tocante à administração da justiça.

Daí por que, a exemplo da publicidade dos atos processuais, o dever de motivação dos atos decisórios vem catalogado entre as garantias estabelecidas nas Constituições democráticas com a primordial finalidade de assegurar a transparência das relações dos jurisdicionados perante o poder estatal e, em particular, nas circunstâncias em que é exigida a prestação jurisdicional.

A garantia da motivação representa a derradeira manifestação do contraditório, no sentido de que o dever imposto ao juiz de enunciar os fundamentos de seu convencimento traduz-se no de considerar os resultados do efetivo debate judicial.

Embora as respectivas garantias da publicidade e do dever de motivação não tenham sido inseridas no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais, o legislador constituinte brasileiro as situou nas disposições gerais atinentes ao Poder Judiciário: art. 93, inciso IX: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

Seja como for, ambas, com efeito, foram contempladas na Constituição Federal em vigor, como autênticas garantias processuais.

No que concerne à garantia da publicidade, verifica-se, de logo, que o novo Código de Processo Civil, além de se manter fiel aos dogmas clássicos do processo liberal, assegurando, como regra, a publicidade absoluta ou externa, mostra considerável aperfeiçoamento em relação à antiga legislação.

Esclareça-se que publicidade absoluta ou externa é aquela que autoriza o acesso, na realização dos respectivos atos processuais, não só das partes, mas ainda do público em geral; publicidade restrita ou interna, pelo contrário, é aquela na qual alguns ou todos os atos se realizam apenas perante as pessoas diretamente interessadas e seus respectivos procuradores judiciais, ou, ainda, somente com a presença destes.

Em primeiro lugar, como norma de caráter geral, praticamente repetindo o mandamento constitucional, dispõe o art. 11 do Código de Processo Civil que: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

A exceção vem preconizada no respectivo parágrafo único. Coerente com tal enunciado, o art. 189 preceitua que: “Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: I - em que o exija o interesse público ou social; II – que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo. § 1º - O direito de consultar os autos de processo que tramite em segredo de justiça e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e aos seus procuradores. § 2º - O terceiro que demonstrar interesse jurídico pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bem como de inventário e partilha resultante de divórcio ou separação”.

Cabem aqui, pois, algumas observações. Nota-se que, assim como o parágrafo único do art. 11 do diploma processual, o art. 189 continua utilizando a anacrônica expressão “segredo de justiça”, em vez daquela muito mais técnica, qual seja “regime de publicidade restrita”.

Ademais, o interesse a preservar, muitas vezes, não é apenas de conotação “pública”, mas, sim, “privada” (como, por exemplo, casos de erro médico, nos quais a prova produzida pode vulnerar a dignidade da pessoa envolvida), ou seja, de um ou de ambos os litigantes, devendo o juiz, norteado pelo inciso X do art. 5º da CF, valer-se do princípio da proporcionalidade, para determinar a publicidade restrita na tramitação do respectivo processo. Observe-se que a própria Constituição Federal autoriza a publicidade restrita para proteger a intimidade das partes: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Andou bem o legislador ordinário, ao zelar, de forma expressa, pela garantia constitucional da privacidade/intimidade de informações respeitantes às partes ou mesmo a terceiros. Mas isso não basta. Há também outros dados, que, embora não preservados pela mencionada garantia, quando revelados, em muitas circunstâncias, acarretam inequívoco prejuízo a um dos litigantes. Refiro-me, em particular, às ações concorrenciais, que têm por objeto dados atinentes à propriedade intelectual, ao segredo industrial, ao cadastro de clientes, etc. Estas informações, igualmente, merecem ser objeto de prova produzida em “regime de publicidade restrita”.

Acrescente-se, outrossim, que no capítulo Da Audiência de Instrução e Julgamento, o art. 368 do novo Código, de forma incisiva (e até redundante), reza que: “A audiência será pública, ressalvadas as exceções legais”.

Já, por outro lado, quanto ao dever de motivação, partindo-se da regra geral anteriormente transcrita, fácil é concluir que, em princípio, o novo Código de Processo Civil, norteado, ainda uma vez, pelo mandamento constitucional, não admite pronunciamento judicial, de natureza decisória, despida de adequada fundamentação.

E, desse modo, preceitua que o modelo ideal de sentença deve conter, entre os seus requisitos formais, “os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito”.

Reproduzindo, portanto, a revogada legislação, o atual Código impõe o dever de motivação como pressuposto de validade dos atos decisórios (art. 11 c.c. art. 489, inciso II).

É de se entender que as decisões interlocutórias, as sentenças terminativas (isto é, “sem resolução do mérito”), e, ainda, as decisões monocráticas que admitem ou negam seguimento a recurso comportam fundamentação mais singela, sem embargo da excepcional possibilidade de o juiz ou tribunal deparar-se com situação que imponha motivação complexa.

As sentenças e os acórdãos definitivos (isto é, “com resolução do mérito”) devem preencher, rigorosamente, a moldura traçada no referido art. 489, ou seja, conter, no plano estrutural, os elementos essenciais neste exigidos.

De resto, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial generalizado, a falta de exteriorização da ratio decidendi do pronunciamento judicial acarreta a sua invalidade. E nulas, do mesmo modo, restarão as decisões administrativas dos tribunais, sempre que não fundamentadas, aplicando-se-lhes a cominação de nulidade.

O atual diploma processual, por outra ótica, prevê original e importante regra no § 1º do art. 489. Atento, ainda uma vez, à Constituição Federal, determinativo do dever de motivação, de forma até pedagógica, estabelece os vícios mais comuns que comprometem a higidez do ato decisório.

A experiência, contudo, tem demonstrado que inúmeros atos decisórios ainda hoje são cassados pelos tribunais por infringirem o dever de fundamentação. Na verdade, se de fato o referido dispositivo processual for observado com rigor, verifica-se facilmente que inúmeros provimentos judiciais, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, serão formalmente “reprovados”, porque, como a praxe evidencia, reportam-se ou simplesmente transcrevem a ementa de precedentes, à guisa de fundamentação!

Pelo que representa em termos de respeito ao devido processo legal, afinal, a garantia do acesso à justiça só poderá ser considerada atendida se, ao fim, as alegações das partes forem levadas em consideração pelos juízes; e, ainda, pela inestimável contribuição proveniente de pronunciamentos judiciais mais justos, porque mais próximos às peculiaridades de cada caso concreto.

Saliente-se outrossim que a redação original de nossa Constituição Federal como é notório, inseriu, no inciso LIV do art. 5º, uma cláusula geral, assegurando, explicitamente, a garantia do due process of law: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. E, ainda, para que ficasse estreme de dúvidas, além dessa preceituação genérica, já suficiente para alcançar o fim por ela colimado, previu, em vários incisos do citado art. 5º e, ainda, no art. 93, inciso IX, incorrendo em manifesta redundância (porém louvável...), inúmeros corolários da garantia constitucional do devido processo legal.

Não havia, contudo, qualquer disposição acerca do direito à tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável... A teor do § 2º do mesmo art. 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Oportuno, nesse passo, lembrar que o nosso país é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, que adquiriu eficácia internacional em 18 de julho de 1978.

O Congresso Nacional aprovou o seu texto, sendo que, em seguida, o nosso governo brasileiro depositou a respectiva Carta de Adesão à apontada Convenção. Assim, o Pacto de San José foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro.

Desse modo, apesar de a garantia do devido processo legal pressupor o rápido desfecho do litígio, o direito à duração razoável já estava contemplado, em nosso sistema jurídico, mesmo antes da alteração constitucional de 2004, dada a evidente compatibilidade de regramentos, em particular, pelo art. 8º, 1, do referido Pacto de San José: “Toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável”.

Visando a espancar qualquer dúvida e afinando- se com as modernas tendências do Direito Processual, o legislador pátrio acabou inserindo o inciso LXXVIII no art. 5º da Constituição Federal, com a seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Seguindo orientação mundial, o texto constitucional brasileiro passou então a contemplar a garantia do processo, judicial e administrativo, sem dilações indevidas. Assegurou, ainda, a implementação de meios que garantam a economia e a celeridade processual.

Duas observações se impõem: em primeiro lugar, dada a profunda diversidade da performance da justiça nos vários quadrantes do Brasil, a aferição do “prazo razoável” será absolutamente diferenciada de Estado para Estado, seja no âmbito da Justiça Estadual, seja no dos Tribunais Federais. De um modo geral, pela inarredável falta constante de recursos materiais destinados ao Poder Judiciário, a justiça no Brasil é lenta.

Ademais, sem embargo da carência de dados estatísticos, pela exigência de metas imposta pelo Conselho Nacional de Justiça, não há dúvida de que, nas Cortes estaduais, tem ocorrido inegável encurtamento do tempo para julgamentos dos recursos e das ações originárias. O Tribunal de Justiça de São Paulo é exemplo marcante: dificilmente as respectivas câmaras têm julgado com atraso!

Lembro, por outro lado, o famoso art. 6º, 1, da Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em Roma, em 1950, que tem a seguinte redação: “Toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial instituído por lei, que decidirá sobre seus direitos e obrigações civis ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal contra ela dirigida”.

Foi, sem dúvida, a partir da edição desse diploma legal supranacional que o direito ao processo sem dilações indevidas passou a ser concebido como um direito subjetivo constitucional, de caráter autônomo, de todos os membros da coletividade (incluídas as pessoas jurídicas) à tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável, decorrente da proibição do non liquet, vale dizer, do dever que têm os agentes do Poder Judiciário de julgar as causas com estrita observância das normas de Direito Positivo.

Efetivou-se, outrossim, ao longo do tempo, a necessária exegese da abrangência do supratranscrito dispositivo, tendo-se, unanimemente, como dilações indevidas, os atrasos ou delongas que se produzem no processo por inobservância dos prazos estabelecidos, por injustificados prolongamentos das “etapas mortas” que separam a realização de um ato processual de outro, sem subordinação a um lapso temporal previamente fixado e, sempre, sem que aludidas dilações dependam da vontade das partes ou de seus mandatários.

Todavia, torna-se impossível fixar a priori uma norma específica, determinante da violação à garantia da tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável. E, por isso, consoante orientação jurisprudencial da Corte Europeia dos Direitos do Homem, consolidada em 1987, no famoso caso Capuano, três critérios, segundo as circunstâncias de cada caso concreto, devem ser levados em consideração para ser apreciado o limite temporal razoável de duração de um determinado processo. Por via de consequência, somente será possível verificar a ocorrência de uma indevida dilação processual a partir da análise: a) da complexidade do assunto; b) do comportamento dos litigantes e de seus procuradores; e c) da atuação do órgão jurisdicional.

Esse expressivo precedente impôs condenação ao Estado italiano, fixando-a numa indenização pelo dano moral “derivante do estado de prolongada ansiedade pelo êxito da demanda”, experimentado por uma litigante nos tribunais daquele país.

O reconhecimento de tais critérios, que exigem uma análise casuísta, bem revela que as dilações indevidas não decorrem do simples descumprimento dos prazos processuais prefixados.

É necessário, pois, que a morosidade, para ser reputada realmente inaceitável, decorra do comportamento doloso de um dos litigantes, ou, ainda, da inércia, pura e simples, do órgão jurisdicional encarregado de dirigir as diversas etapas do processo. É claro que a pletora de causas ou o excesso de trabalho não podem ser considerados, neste particular, justificativa plausível para a lentidão da tutela jurisdicional.

De aduzir-se, por outro lado, que, após a consagração, no plano constitucional, do direito fundamental à duração razoável do processo, o princípio da economia processual, de natureza precipuamente técnica, transformou-se em postulado político.

E isso, certamente porque a supratranscrita norma constitucional (inc. LXXVIII) não assegura apenas e tão somente a prerrogativa de um processo sem dilações indevidas, mas, na verdade, ainda contempla a inserção de meios técnicos e materiais que “garantam a celeridade de sua tramitação”.

Verifica-se, por outro lado, que, apesar de intuitiva, a regra do art. 4º novo Código de Processo Civil não deixa margem a dúvida, uma vez que celeridade processual estende-se igualmente à fase de cumprimento de sentença e, por certo, inclui também o processo de execução, vale dizer, toda a “atividade satisfativa” em prol da parte vencedora.

Ademais, entre os poderes do juiz, a lei processual brasileira preceitua, no art. 139, II, que lhe incumbe: “velar pela duração razoável do processo”.

Contudo, importa asseverar que a introdução de mecanismos aptos a assegurar a duração razoável do processo não deve, em qualquer situação, vulnerar o princípio fundamental do devido processo legal.

Verifica-se, em conclusão, que, de uma forma ou de outra, nestes 30 anos de vigência, a Constituição Federal contribuiu em muito para que viesse sedimentada, ainda que no plano teórico, a concepção de um processo justo.

Na verdade, o ideário constitucional, no que se refere às garantias processuais das partes litigantes, ostenta uma matriz democrática, afinada com as novas tendências da ciência processual, possibilitando, tanto quanto possível, que o cidadão tenha acesso aos tribunais, podendo apresentar suas razões, em contraditório e em igualdade de condições com o seu adversário, assegurando-se-lhe a tramitação de um processo revestido de publicidade, dentro de um prazo razoável, sendo, a final, proferida uma sentença devidamente motivada.

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*José Rogério Cruz e Tucci é professor titular e diretor da Faculdade de Direito da USP.


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