I. Introdução
O presente artigo buscará abordar as principais questões que envolvem as chamadas cláusulas escalonadas, tema este de crescente importância no atual momento de incentivo aos métodos alternativos de solução de conflitos.
Após objetiva apresentação de sua origem e conceito, o autor pretende enfrentar as problemáticas identificadas com a aplicação prática das cláusulas escalonadas. A análise dessa matéria será realizada, em grande parte, com base na doutrina e jurisprudência estrangeiras, sobretudo dos tribunais arbitrais internacionais responsáveis por dirimir conflitos envolvendo matéria de direito comercial.
Por óbvio, não há aqui a pretensão de esgotar a matéria, o que exigiria um trabalho muito mais aprofundado diante da complexidade que envolve os diferentes tipos e todas as nuances das cláusulas multi-etapas. Como dito, pontuaremos apenas os principais aspectos e questões mais controvertidas.
Citando alguns casos concretos, serão abordadas as controvérsias que envolvem a validade e obrigatoriedade da mediação como condição prévia ao início do procedimento arbitral, bem como os requisitos necessários para implementação dessa condição. Logo em seguida, serão discutidas as possíveis consequências decorrentes do descumprimento dessa etapa inicial, tendo em vista a controvérsia relacionada à natureza do inadimplemento.
Como se verá, grande parte desses debates decorrem da própria redação conferida pelas partes contratantes às cláusulas escalonadas, contendo muitas vezes expressões indeterminadas, o que acaba dificultando o trabalho de interpretação da disposição contratual.
Após a análise dos principais pontos, buscaremos importar essas discussões para o contexto brasileiro, apontando as principais mudanças legislativas sobre a matéria.
II. Conceito e origem das cláusulas escalonadas
Como já se adiantou, não pretendemos apresentar uma abordagem exauriente do tema. Nada obstante, é interessante perquirir o contexto histórico no qual estão inseridas as cláusulas escalonadas e, de maneira mais ampla, os próprios métodos alternativos de solução dos conflitos.
Os chamados meios adequados de solução de conflitos não são uma novidade no mundo jurídico. Pelo contrário, o forte incentivo à utilização dessas alternativas ao acionamento do Poder Judiciário pôde ser vista nos Estados Unidos da América, ao menos, desde a década de 70.
Nesse sentido, o Professor Humberto Dalla observa que
"em um congresso realizado no ano de 1976, Frank Sander, professor da Faculdade de Direito de Harvard, sugeriu a adoção daquilo que batizou de multi-door courthouse. A proposta indicava que, quando o jurisdicionado se dirigisse ao Estado para se servir do instrumento de solução de conflitos disponibilizado, não encontrasse somente a jurisdição, mas outras ‘portas’, com outros mecanismos disponíveis, como a mediação, a conciliação e a arbitragem".1
Esse congresso ficou conhecido como a "Pound Conference" de 1976 e o conjunto de técnicas de solução extrajudicial de conflitos foi chamado, pelos norte-americanos, de Alternative Dispute Resolutions (ADR).
No Brasil, contudo, esse movimento é muito mais recente. A primeira lei que verdadeiramente regulamentou a arbitragem2, por exemplo, foi promulgada em 1996 e seus primeiros anos de vigência foram marcados por inúmeros questionamentos, especialmente no que tange à suposta violação aos princípios do acesso à justiça e da inafastabilidade da jurisdição. Somente em 2001, no julgamento da SE 52063, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do compromisso arbitral e, por conseguinte, da lei 9.307/96.
De acordo com o ministro Sepúlveda Pertence, relator do caso, "o que a Constituição não permite à lei é vedar o acesso ao Judiciário da lide que uma das partes lhe quisesse submeter, forçando-a a trilhar a via alternativa da arbitragem. O compromisso arbitral, contudo, funda-se no consentimento dos interessados e só pode ter por objeto a solução de conflitos sobre direitos disponíveis, ou seja, de direitos a respeito dos quais podem as partes transigir".
Os métodos autocompositivos, por sua vez, passaram a receber maior atenção ainda mais recentemente. Além de mais adequadas para determinados tipos de litígios, a mediação e a conciliação são atualmente vistas como potencial solução para o alarmante número de demandas que aportam no judiciário brasileiro, funcionando como um verdadeiro "filtro de litigiosidade".
Um importante passo para o desenvolvimento dessas ferramentas em nosso país veio com a resolução 125/10, do Conselho Nacional de Justiça, que "dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e da' outras providências".
Alguns anos depois, foi promulgado o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), que representou notável estímulo aos métodos consensuais de resolução de litígios ao ponto de incluí-los no Capítulo dedicado às "Normas Fundamentais do Processo Civil" (art. 3º, §§2º e 3º, do CPC/15). Concomitantemente, foi finalmente aprovada a lei 13.140/15, conhecida como "Marco Lega"” da mediação no Brasil.
Essa brevíssima retrospectiva mostra-se importante na medida em que as cláusulas escalonadas não se distanciam dos métodos alternativos de solução de conflitos. Na verdade, são ferramentas contratuais que utilizam esses próprios meios adequados de maneira conjugada e, por isso, possuem uma trajetória histórica muito assemelhada.
As cláusulas escalonadas, dentre outras variações, são também denominadas de cláusulas combinadas ou multi-etapas (em inglês: multi-tiered step clauses). Como os próprios nomes sugerem, tratam-se de disposições contratuais que estabelecem procedimentos a serem cumpridos pelas partes quando do surgimento de um litígio e antes de eventual instauração da arbitragem. Surgindo uma controvérsia, as partes contratantes devem primeiro se submeter às tratativas descritas na cláusula e, caso o consenso não seja obtido, recorrem então ao procedimento arbitral.
Nesse sentido, é bastante esclarecedora a definição apresentada por Alexander Jolles, advogado suíço especializado em commercial litigation e árbitro da Câmara de Comércio Internacional (CCI):
"Multi-tier arbitration clauses are clauses in contracts which provide for distinct stages, involving separate procedures, for dealing with and seeking to resolve disputes. Such clauses typically provide for certain steps and efforts to be taken by the parties prior to commencing arbitration. These initial steps are aimed at finding an amicable settlement of disputes in order to avoid arbitration or litigation. Typically, the initial tiers of such clauses provide for a duty to enter into negotiations, sometimes requiring the attendance of top management representatives, and/or a duty to participate in conciliation or mediation processes. The last tier of such clauses provides for the adjucatory process (arbitration), which is intended to be conducted only if the efforts taken in the initial iers have failed".4
O conceito apresentado acima, vale dizer, é bastante abrangente, de onde podemos extrair que os procedimentos iniciais que podem ser estabelecidos entre as partes não se resumem à conciliação ou mediação. Gary Born5 cita, por exemplo, a previsão de submissão à decisão não vinculante de algum engenheiro, arquiteto ou profissional especializado na matéria controvertida ou o esgotamento dos meios locais, no caso de conflitos internacionais.
Esse amplo leque de procedimentos pré-arbitrais é um indicativo de que as cláusulas escalonadas estão contidas em uma classificação ramificada em gêneros e espécies. No vértice dessa classificação, encontramos as chamadas cláusulas híbridas, as quais estabelecem a utilização, pelas partes, de duas jurisdições distintas. Dentro desse conceito, estão inseridas as cláusulas escalonadas, que, por sua vez, se dividem de acordo o procedimento inicial que deve ser implementado antes da arbitragem. Se tal procedimento for a mediação, por exemplo, a cláusula contratual será denominada "med-arb", a qual ainda se ramifica em duas possibilidades: uma em que o mesmo terceiro exerce o papel de mediador e árbitro; e outra em que as etapas são comandadas por terceiros distintos.
Nesse ponto, é importante mencionar, desde já, que o presente artigo tratará com maior atenção das cláusulas med-arb em que os procedimentos são conduzidos por terceiros distintos, uma vez que são muito mais comuns em nosso país. Sobre o tema, Selma Ferreira Lemes6 observa que os países orientais, como a China, são mais propensos a aceitar que uma mesma pessoa desempenhe os papeis de mediador e árbitro.
Os países ocidentais, por outro lado, possuem mais cuidado e reticência, havendo normas que impedem expressamente esta situação, salvo manifestação em contrário das partes. Cite-se, a título exemplificativo, o art. 10, do Regulamento de Mediação da CCI, o art. 19, do Regulamento de Conciliação da UNCITRAL e, no Brasil, o art. 7º, da Lei de Mediação7.
Esclarecida essa divisão, é válido destacar a origem e o motivo pelo qual foram pensadas as cláusulas escalonadas. Megan Elizabeth Telford8, grande estudiosa do tema, afirma que os primeiros relatos de utilização, ainda incipiente, das cláusulas mistas remontam aos anos de 1940, nos Estados Unidos. Imaginava-se, naquela época, a participação de um terceiro neutro que auxiliava as partes nas negociações iniciais e, caso frustradas, esse mesmo terceiro impunha sua decisão.
No entanto, considerável parcela dos operadores do direito da época criticavam essa ideia, ao argumento de que os métodos de mediação e arbitragem são completamente distintos e incompatíveis. Afirmava-se, ainda, que seria anti-ética a condução de ambas as etapas pelo mesmo terceiro imparcial.
Sem prejuízo dessas primeiras aparições, as cláusulas escalonadas começaram a ser realmente colocadas em prática a partir da década de 70, também nos Estados Unidos, sendo o advogado e árbitro Sam Kangel usualmente apontado como o responsável pelo desenvolvimento desse instituto. Em 1978, Wisconsin se tornou o primeiro estado norte-americano a utilizar formalmente a cláusula med-arb como forma de solução alternativa aos conflitos. O sucesso obtido na solução de disputas, sobretudo comerciais, fez com que essa ferramenta ganhasse força nos EUA e se expandisse para o Canadá, onde também passou a ser frequentemente utilizada.
Interessante observar que o desenvolvimento desse novo tipo de resolução de litígios acompanhou o progresso das próprias relações sociais. Com a multiplicação dos conflitos e aparecimento de questões mais complexas na sociedade moderna, mostrou-se necessária a atualização dos métodos de solução até então disponíveis. A cláusula med-arb, portanto, não é um mecanismo completamente inédito, mas apenas uma versão mais moderna dos meios alternativos, de forma a adequá-los aos novos tipos de conflitos. Até porque, nas palavras de John Blankenship9 , o processo deve ser confeccionado para se adaptar aos litígios e não a disputa que deve se adaptar ao procedimento pré-existente.
Nessa mesma linha, é válido destacar as considerações apresentadas por Ervey Sergio Cuéllar Tijerina, em sua tese de doutorado na Universitat Pompeu Fabra de Barcelona:
"Dicha actualización consiste, en fusionar procesos med-arb, como el objeto de estudio de esta investigación (mediación y arbitraje vinculados) y obtener mejores resultados, que la utilización aislada de cada mecanismo. Recordemos que no se trata de una innovación, sino de una adecuación e implementación a las necesidades actuales" 10
Justamente por ter origem na evolução das relações sociais e nos tipos de conflitos a ela inerentes, Selma Ferreira Lemes observa que, na prática, "estas cláusulas estão presentes, com certa frequência, em contratos de longa duração e complexidade, tais como os contratos de infraestrutura, os contratos denominados `chave na mão`, contratos nas áreas de energia, gás e petróleo, em que o inadimplemento contratual repercute em cadeia nas demais contratações e subcontratações, sendo de todo oportuno prevê-las e estipulá-las".11
Com o intuito de atualizar e adequar as formas de solução aos novos conflitos, as cláusulas "med-arb" reúnem, efetivamente, as qualidades da mediação e da arbitragem. Por meio de um único procedimento pré-estabelecido de forma gradativa, as partes conseguem dirimir o litígio sob confidencialidade, com custos reduzidos, maior celeridade e eficiência.
Isso sem contar a notória legitimidade que permeará a decisão obtida ao final do procedimento. Se a solução for encontrada na etapa inicial de mediação, as partes terão certa tranquilidade em aceitá-la, haja vista que a decisão terá sido construída pelos próprios envolvidos e buscando atender aos seus próprios interesses. Por outro lado, ainda que tenham de se submeter ao procedimento arbitral, as partes terão maior facilidade em se contentar com a solução final, uma vez que a decisão que lhes será adjudicada, além de possuir força vinculativa, terá sido emanada de um árbitro ou grupo de árbitros especializado no tema debatido.
Além dessa conjugação de características, Ervey Sergio Cuéllar Tijerina aponta como um importante elemento para o sucesso das cláusulas "med-arb" o fato de que as partes se sentem receosas em perder o controle sobre a decisão da disputa caso o procedimento de mediação não seja exitoso:
"La estrategia más seductora de este mecanismo mixto, es la continua amenaza de la aparición de un arbitraje ante el fracaso de la mediación tradicional. Desde que las partes está conscientes que su inhabilidad para resolver la disputa, traerá como consecuencia inmediata una resolución impuesta por un tercero ajeno, y posiblemente un resultado desfavorable a sus interés, propiciando un incentivo mayor para alcanzar un acuerdo negociado". 12
Nesse contexto, Megan Elizabeth Telford13 afirma que tal constatação foi extraída de um estudo empírico realizado no ano de 1995, o qual identificou que, havendo previsão contratual de cláusula "med-arb", as partes se sentem substancialmente mais motivadas a resolver sua disputa, pois sabem que, se não for obtido o consenso, um terceiro neutro poderá adjudicar a decisão e, com isso, perderão o controle da solução final.
Essa moderna forma alternativa de resolução de conflitos vem sendo cada vez mais utilizada, sobretudo, como dito, nas relações comerciais internacionais. A crescente aplicação prática, de outro lado, vem deixando em evidência algumas dúvidas relacionadas, por exemplo, à validade e obrigatoriedade dos procedimentos pré-arbitrais, aos requisitos necessários para o esgotamento da etapa inicial, às consequências e efeitos do descumprimento da cláusula e também à própria competência para resolver essas questões.
- Clique aqui para conferir a íntegra do texto.
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1 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. HALE, Durval. CABRAL, Tri'cia. [organizadores]. O Marco Legal da Mediação no Brasil, São Paulo: Atlas, 2015, p. 42
2 A arbitragem tem previsão no Brasil desde a época do Império, já que a Constituição de 1824, em seu art. 160, estabelecia que as partes podiam nomear juízes–árbitros para solucionar litígios cíveis e que suas decisões seriam executadas sem recurso, caso fosse assim convencionado. No entanto, a arbitragem passou por idas e vindas, sendo certo que algumas constituições fizeram menção expressa ao instituto (1934 e 1988) e outras não trataram do tema (1895, 1937, 1946 e 1967). Apesar da existência de leis infraconstitucionais anteriores, como o decreto 737 de 1850 e os Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973, a arbitragem somente foi extensamente regulamentada com a lei 9.307/96.
3 SE 5206 AgR, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 12/12/01, DJ 30-04-04 PP-00029 EMENT VOL-02149-06 PP-00958
4 JOLLES, Alexander. "Consequences of Multi-tier Arbitration Clauses: Issues of Enforcement", 72 ARBITRATION 4 (2006), p. 329.
5 BORN, Gary; Šekic, Marija. "Pre-Arbitration Procedural Requirements: 'A Dismal Swamp' in "Practising Virtue: International Arbitration", Published to Oxford Scholarship Online: January 2016, p. 229.
6 LEMES, Selma Ferreira. "Cláusula escalonada ou combinada: mediação, conciliação e arbitragem", in Arbitragem Internacional, UNIDROIT, CISG, e Direito Brasileiro FINKELSTEIN, Cláudio, VITA, Jonathan B., CASADO FILHO, Napoleão. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p.6/7.
7 Art. 7º: "O mediador não poderá atuar como árbitro nem funcionar como testemunha em processos judiciais ou arbitrais pertinentes a conflito em que tenha atuado como mediador".
8 TELFORD, Megan Elizabeth. "Med-arb: a viable dispute resolution alternative. Current issues series", IRC Press, 2000
9 in PAPPAS, Brian. "Med-Arb and the legalization of alternative dispute resolution" (E.U.A.: Harvard Negotiation L. Rev, 2015), p. 190
10 TIJERINA, Ervey Sergio Cuellar. “La Cláusula med-arb en la actualidade: mediación y arbitraje vinculados”, TESI DOCTORAL UPF/15, p. 90/91.
11 LEMES, Selma Ferreira. Op. Cit., p. 2
12 TIJERINA, Op. Cit., p. 118/119.
13 "A 1995 study, one of the few examining med-arb, found that parties were substantially better motivated to settle their dispute under med-arb because they knew that the third party could eventually arbitrate and wanted to avoid loss of control over their destinies". TELFORD, Op. Cit., p. 3.
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*Rodrigo Cunha Mello Salomão é mestrando em Direito Processual e advogado.