1. INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo científico é o de analisar o conteúdo do acórdão do Recurso Extraordinário 636.331/RJ, que, por maioria de votos, entendeu que as Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas aos processos decorrentes de responsabilidade civil nos contratos de transporte aéreo internacional. Contrariou-se, pois, a jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça (STJ),1 que, há tempos, vinha aplicando o Código de Defesa do Consumidor (CDC). No Supremo Tribunal Federal (STF) a matéria tinha sido apreciada, salvo engano, apenas duas vezes. Na primeira oportunidade,2 decidiu-se pela aplicabilidade das convenções internacionais, e, na segunda, do CDC.3
Esse novo entendimento se deu por causa do disposto no art. 178 da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88). No julgamento foi decidido que não haveria prejuízo e/ou retrocesso na proteção do consumidor e, ainda, que não estaria sendo violado o princípio constitucional da reparação integral. A propósito, é preciso destacar que ainda não houve o trânsito em julgado da decisão, haja vista a oposição de embargos de declaração pela consumidora.
A metodologia desse trabalho será a seguinte: no capítulo 2 farei um resumo imparcial do acórdão, não tecendo qualquer comentário pessoal sobre a decisão. No capítulo 3 apresentarei, com todo o respeito, a minha visão sobre os acertos e desacertos, do ponto de vista técnico, desse novo aresto. E, no capítulo 4, debaterei questões bastante práticas e objetivas, envolvendo essa matéria, no dia a dia forense.
2. RESUMO DO ACÓRDÃO DO RE 636.331/RJ
Nesse tópico apresentarei os principais pontos e questões jurídicas do acórdão, sem fazer qualquer juízo pessoal acerca de eventual acerto ou desacerto da decisão. A minha intenção, com isso, é, após uma apresentação totalmente fidedigna e imparcial dos pontos fundamentais do acórdão, poder apresentar as minhas considerações sobre o decisum.
2.1. Voto do min. Gilmar Mendes (relator)
Logo no início já é possível perceber qual é o escopo do julgamento, na visão do relator, como se extrai da seguinte passagem: "[n]a essência, a controvérsia está em definir se o direito do passageiro à indenização pode ser limitado por legislação internacional especial, devidamente incorporada à ordem jurídica brasileira".4
Diante disso, o relator apresenta três aspectos que considera serem os mais relevantes: "(1) o possível conflito entre o princípio constitucional que impõe a defesa do consumidor e a regra do art. 178 da Constituição Federal; (2) a superação da aparente antinomia entre a regra do art. 14 da lei 8.078/90 e as regras dos arts. 22 da Convenção de Varsóvia e da Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional; e (3) o alcance das referidas normas internacionais, no que se refere à natureza jurídica do contrato e do dano causado".5
Uma importante consideração sobre o grau de hierarquia desses tratados internacionais foi tecida pelo relator: "[o]s diplomas normativos internacionais em questão não gozam de estatura normativa supralegal de acordo com a orientação firmada no RE 466.343, uma vez que seu conteúdo não versa sobre a disciplina dos direitos humanos".6
O relator entende que os tratados internacionais devem prevalecer em face do CDC, seja pelo critério cronológico (a última atualização do tratado é do ano de 1998), seja pelo critério da especialidade, pois os tratados disciplinam o transporte aéreo internacional, enquanto que o CDC regula toda a relação de consumo.7
Outras duas relevantes constatações apresentadas pelo relator dizem respeito ao objeto desses tratados internacionais: (i) regulam apenas o transporte aéreo internacional8 e (ii) disciplinam apenas o dano material.9
No tocante às espécies de lides em que deveriam ser aplicados os tratados internacionais em detrimento do CDC, consignou o relator que, "com base nos fundamentos acima alinhavados, penso que é de se concluir pela prevalência da Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil em detrimento do Código de Defesa do Consumidor não apenas na hipótese extravio de bagagem. A mesma razão jurídica impõe afirmar a mesma conclusão também nas demais hipóteses em que haja conflito normativo entre os mesmos diplomas normativos".10
Ao final de seu voto, ele propôs a seguinte tese de repercussão geral: "[é] aplicável o limite indenizatório estabelecido na Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em relação às condenações por dano material decorrente de extravio de bagagem, em voos internacionais".11
2.2. Voto do min. Roberto Barroso
Preliminarmente, é imperioso destacar que o min. Barroso é o relator do recurso extraordinário com agravo 766.618/SP, que possui acórdão próprio e com 128 laudas.
Esse ministro, inicialmente, reitera a necessidade de se observar os três critérios para se dirimir antinomia entre o CDC e os já referidos tratados internacionais, quais sejam, hierarquia, cronológico e especialização. Deixa claro, assim, que em todos os três os tratados preponderam sobre o CDC.12
O ministro lembra que o recurso extraordinário só pode ser interposto por causa do art. 178 da CF/88, e que "a teleologia da norma constitucional é perfeitamente legítima: ela se volta ao interesse de se uniformizarem as regras no transporte aéreo internacional – o que, em última análise, traz não só isonomia entre todos os consumidores desse serviço, como também impõe ao Brasil o respeito aos compromissos internacionais que tenha assumido".13
Quanto ao inciso XXXII do art. 5º da CF/88, que dispõe que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor", o ministro salientou se trata daquilo que a doutrina costuma chamar de princípio institutivo, isto é, uma norma voltada para o legislador. Sendo assim, diante do que dispõe o art. 178 da CF/88, aduz o ministro que, "[d]entro do que me parece ser a melhor forma de se interpretar o Direito, deve-se ler as disposições normativas à luz dos princípios constitucionais. Mas quando uma regra constitucional estatuir em sentido diverso ao indicado por um princípio constitucional, deve-se aplicar a regra, a opção claramente manifestada pelo constituinte – o que me parece que também esse seria o caso aqui, se nós considerássemos que existiria, no art. 5º, XXXII, uma proteção mais ampla do consumidor".15
Prosseguindo essa discussão, assevera o ministro que "se nós constatássemos que a Convenção de Varsóvia deixa o consumidor inteiramente desguarnecido, aí, sim, eu acho que seria o caso de se pronunciar a inconstitucionalidade da Convenção, ou do decreto que internalizou a Convenção. Mas esse definitivamente não me parece ser o caso, até porque, ministro Gilmar, nós estamos aqui lidando com transporte aéreo; nós não estamos lidando com um consumidor hipossuficiente, que precise de uma exacerbação da proteção do Estado".16
O ministro, então, conclui da seguinte maneira o seu voto: "por essas considerações, baseandome sobretudo na circunstância de que me parece inequívoca a opção do constituinte pela prevalência da Convenção Internacional nesta matéria, essa é a conclusão que eu adoto. Esse raciocínio não se confunde com a eventual ideia, que alguém poderia ter, de que se deveria proteger mais ou menos o consumidor, porque aqui nós estamos definindo qual é o estatuto jurídico que se aplica: a Convenção ou Código do Consumidor. Parece-me que, por interpretação constitucional, é claramente hipótese de se aplicar a convenção".17
Ao final, ele apresenta uma sugestão de tese de repercussão geral: "[p]or força do art. 178 da Constituição, em caso de conflito, as normas das convenções que regem o transporte aéreo internacional prevalecem sobre o Código de Defesa do Consumidor".18
2.3. Os dois primeiros debates envolvendo alguns ministros do STF
Após o voto do min. Gilmar Mendes,19 bem como depois do voto do min. Luis Roberto Barroso,20 houve indagação expressa e direta, por parte do min. Marco Aurélio, sobre eventual aplicabilidade dos tratados internacionais aos danos morais decorrentes da relação jurídica em contrato de transporte aéreo internacional, inclusive com intervenções do min. Ricardo Lewandowski. A conclusão a que esses quatro ministros chegaram foi a de que esses tratados internacionais só se aplicam aos danos materiais, ou seja, não há um limite ou teto para os valores decorrentes das compensações por danos morais.
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1 Nesse sentido: STJ, 4ª T., AgInt no AREsp n. 874.427/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.04/10/16, DJe 07/10/16; STJ, 3ª T., AgRg no AREsp 607.388/RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 16/06/2016, DJe 23/06/2016.
2 Cf. STF, 2ª T., RE n. 297.901/RN, Rel. Min. Ellen Gracie, j. j. 07/03/2006, DJ 31/03/06, p. 38.
3 Cf. STF, 1ª T., RE 351.750/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para o acórdão Min. Carlos Britto, j. 17/03/09, DJe 25/09/09.
4 Página 10 do acórdão.
5 Página 12 do acórdão.
6 Página 13 do acórdão.
7 Cf. as páginas 13 a 15 do acórdão.
8 Cf. "Dois aspectos devem ficar sobremaneira claros neste debate. O primeiro é que as disposições previstas nos acordos internacionais aqui referidos aplicam-se exclusivamente ao transporte aéreo internacional de pessoas, bagagens ou carga. A expressão 'transporte internacional' é definida no art. 1º da Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, nos seguintes termos: [...]. A disposição deixa claro o âmbito de aplicação da Convenção, que não alcança os contratos de transporte nacional de pessoas e estão, por conseguinte, excluídos da incidência da norma do art. 22" (página 16 do acórdão).
9 Cf. "O segundo aspecto a destacar é que a limitação imposta pelos acordos internacionais alcança tão somente a indenização por dano material, e não a reparação por dano moral. A exclusão justifica-se, porque a disposição do art. 22 não faz qualquer referência à reparação por dano moral, e também porque a imposição de limites quantitativos preestabelecidos não parece condizente com a própria natureza do bem jurídico tutelado, nos casos de reparação por dano moral. Corrobora a interpretação da inaplicabilidade do limite do quantum indenizatório às hipóteses de dano moral a previsão do art. 22, que permite o passageiro realizar 'declaração especial' do valor da bagagem, como forma de eludir a aplicação do limite legal. Afinal, se pode o passageiro afastar o valor limite presumido pela Convenção mediante informação do valor real dos pertences que compõem a bagagem, então não há dúvidas de que o limite imposto pela Convenção diz respeito unicamente à importância desses mesmos pertences e não a qualquer outro interesse ou bem, mormente os de natureza intangível" (páginas 16 e 17 do acórdão).
10 Página 17 do acórdão.
11 Página 17 do acórdão.
12 Páginas 19 e 20 do acórdão.
13 Página 20 do acórdão.
14 Página 20 do acórdão.
15 Páginas 21 e 22 do acórdão.
16 Páginas 22 e 23 do acórdão.
17 Página 23 do acórdão.
18 Página 23 do acórdão.
19 Cf. página 18 do acórdão.
20 Cf. páginas 24 a 26 do acórdão.
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*Leonardo de Faria Beraldo é advogado do Colégio Registral Imobiliário do Estado de Minas Gerais – CORI/MG. Mestre em Direito Privado. Especialista em Processo Civil. Professor em cursos de graduação e pós-graduação de Processo Civil, Arbitragem e Direito Civil. Membro do Conselho Deliberativo da CAMARB – Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil. Autor de diversos livros e artigos científicos.