A pátria sem chuteiras
Adauto Suannes*
Que teria o futebol de épico?
Segundo o relato de Eduardo Galeano, “en el fútbol, como en casi todo lo demás, los prime-ros fueron los chinos”. Há mais de cinco mil anos já se jogava com la pelota na China, havendo inscrições que mostram chineses da dinastia Ming jogando como se tivessem nos pés uma bola Adidas2. Da China, assim como o macarrão e a pólvora, veio o futebol para a Europa e, graças aos legionários romanos, o esporte chegou às ilhas britânicas, que lhe deu as primeiras regras, basica-mente as mesmas que temos até hoje. Verdade é que no começo ele era um jogo envolvendo núme-ro ilimitado de jogadores, sem qualquer limite de tempo. Cidade contra cidade. As partidas demo-ravam vários dias, estendendo-se por léguas, não sendo raro a ocorrência de mortes, o que levou os reis britânicos a proibir tal prática, como Eduardo III que, em 1349, incluiu o futebol entre os jogos estúpidos y de ninguna utilidad, indo assim além da mera crítica que vários lustros antes a ele fizera Eduardo II3.
Passemos, porém, ao século XX, quando aquele esporte chegou ao novo mundo, trazido por marinheiros ingleses. “En plena expansión imperial, el fútbol era un producto de exportación tan típicamente británico como los tejidos de Manchester, los ferrocarriles, los préstamos de la banca Barings o la doctrina del libre comercio” ironiza Galeano4. No Brasil, tornou-se, segundo o mesmo autor, um esporte da elite, o que fez certo articulista da revista Sports, editada no Rio de Janeiro, queixar-se, no início daquele século, de sua democratização: “Los que tenemos una posición en la sociedad estamos obligados a jugar con obreros, con chofer. La prática del deporte se está con-virtiendo en un suplício, un sacrifício, nunca una diversión”5.
Muitos campeonatos depois, ocorreu <_st13a_personname w:st="on" productid="em São Paulo">em São Paulo uma disputa entre torcidas de futebol, ao fim da qual, tal como tantos séculos antes na Inglaterra, sobraram feridos e um cadáver. Em razão disso o governo do Estado promoveu, em 1996, um amplo debate sobre o tema, que redundou num livro, no qual profissionais das mais diversas especialidades desfilaram seus comentários sobre o assunto.
O jornalista Alberto Helena Jr., por exemplo, observa ali que “se há quatro décadas e meia estivesse em vigência a atual determinação dos juízes de menores de São Paulo, segundo a qual a garotada só pode entrar num estádio de futebol acompanhada do pai ou tutor, munida de documentação legal comprobatória, eu não teria visto jogar nem Leônidas, nem Bauer, nem Cláudio, Luisinho e Baltazar, Lima ou Canhotinho, Oberdã e Zizinho, Jair Rosa Pinto e sequer acompanharia os primeis passos do menino-rei Pelé”6. Seu colega Juca Kfouri preferiu um discurso irado, ao fim do qual se penitencia, em seu conhecido estilo. “Nenhuma novidade, nada original. Impressões, apenas, de um simples mortal, pleno de rimas, parco em soluções”, disse ele, modestamente7.
Já o psiquiatra Paulo Gaudêncio discorreu sobre duas vertentes “complementares e não ‘antagônicas’: a injustiça social e a função pedagógica do medo”8. Nancy Cardia, membro do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, faz ali um amplo relato sobre estudos realizados na Inglaterra a respeito do fenômeno dos hoolligans, tirando interessantes conclusões, que busca aplicar ao nosso país. Aqui prefiro deter-me naquilo que ela chama de identidade social dos jovens, que implica uma separação rígida entre os membros dos diversos grupos a que eles pertencem. “Essa diferenciação rígida é o primeiro passo para a desumanização do outro e para que o outro se transforme no inimigo”. O inimigo ameaça nossa integridade física, a mera presença dele sugere a impossibilidade de convivência. A separação entre “nós” e “eles” se transforma em “eles ou nós’”, conclui ela9. A torcida “adversária” se torna, assim, torcida “inimiga”, eis sua conclusão.
Eu, como participante ativo daquele colóquio, detive-me na tentativa de distinguir entre violência e agressividade, não deixando, porém, de recordar serem as disputas esportivas instrumentos de sublimação da agressividade. A “identidade social”, de que falou Nancy Cardia (nenhum de nós conhecia previamente o trabalho que seria apresentado pelos demais participantes) foi por mim abordado como “identidade tribal”, ao equiparar um jogo de futebol a uma guerra entre tribos. “Quando uma tribo pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária." Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso. Hoje, graças ao avanço da civilização - pelo menos é assim que se costuma referir à passagem da Humanidade dos estágios anteriores para o atual -, não mais temos guerra de tribos (hipoteticamente falando, caro leitor, pois não sou tão ingênuo assim). Mas o homem conserva em si a natural agressividade, a necessidade de conquista, a força que o empurra para a luta. Que fazer com essa força? Sublimá-la.
Na mesma linha seguida por Cardia, observei: “O que acontece nas disputas coletivas é precisamente isso: cada tribo veste um uniforme que distingue seus componentes dos componentes do outro time. Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem trazida pelo árbitro: a bola. E se isso não é bastante para convencer meu prezado leitor, responda: por que motivo, ao fim de uma disputa, o vencedor ganha uma taça? Trata-se, ainda uma vez, de uma cerimônia simbólica: originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na luta”10.
Essa teatralização da guerra, quadrianualmente a nível mundial, é inquestionável, o que se demonstra pelos gastos monumentais com a sua organização, para impedir que a encenação desça do palco à platéia. A mesma professora Cardia, naquele oportuno estudo, nos informa que “no final da copa européia de 1988, na Alemanha, foram gastos 11,5 milhões de libras esterlinas com o policiamento e foram arrecadados 14 milhões de libras esterlinas com a venda dos ingressos”, segundo informam os pesquisadores ingleses por ela citados11. Ainda não temos em mãos relação semelhante no que diz com a atual copa mundial que se realiza na Alemanha, mas não será surpresa se o resultado financeiro guardar a mesma e pífia proporção.
Quando se fala em epopéia, se está, evidentemente, falando nos heróis ensejadores desses registros épicos. E o herói é alguém que se dispõe a dar a vida por algo maior do que ele12. E a palavra pátria, como sabemos, indica a terra de nossos antepassados, o solus patrium. Nélson Rodrigues certamente não tinha em mente noções sociológicas ao descrever uma seleção de futebol, naquele seu estilo épico, de que fala Armando Nogueira, como “a pátria de chuteiras”. Mas isso nos mostra claramente que um campeonato envolvendo seleções de países diversos, de tribos diversas, de pátrias diversas está mais para uma guerra do que para um convescote, como diria o mesmo Nélson, com seus heróis e seus canalhas. A função do herói é reunir os indivíduos que compõem uma nação, a fim de que ela atue como um todo, diz Campbell13. Por que isso? “Because it has to have constellating images to pull together all these tendencies to separation, to pull them together into some intention”, diz ele14. O herói é esse elemento catalisador, que, não raro, paga com a vida sua nobre missão. A glória de Canaã nem sempre está reservada ao herói que conduz seu povo até ela.
Nas crônicas rodriguianas temos a descrição de batalhas campais, como aquela que se encerra com loas ao escrete (era assim que se denominava um time de futebol naquela época), nacional brasileiro, que se havia sagrado campeão mundial no México: “Amigos, glória eterna aos tricampeões mundiais. Graças a esse escrete, o brasileiro não tem mais vergonha de ser patriota. So-mos 90 milhões de brasileiros de esporas e penacho, como os Dragões de Pedro Américo”15.
Pois tudo isso ficou dito para chegarmos a essa incrível alternativa que nos desafia em todas as copas do mundo: ou torcer para a seleção nacional ou dever ser encarcerado numa torre de Londres, a pão e água, pela impudicícia da falta de patriotismo, para imitarmos pobremente o estilo de nosso dramaturgo maior.
E que esperar, então, dos guerreiros convocados para essa epopéia? Nada menos do que sangue, suor e lágrimas, como diria uma crônica futebolística assinada por Sir Winston Churchill. Sangue e suor para alcançar a vitória sobre seus inimigos; lágrimas para lamentar a derrota que, certa-mente, será a companheira final de uma das tribos em luta.
E foi exatamente isso o que se viu quando os lutadores ebúrneos reconheceram a vitória dos colonizadores: os guerreiros de ébano, sentados no gramado germânico, arrancando os cabelos e quase a rasgar o fardamento, não se vexaram por homenagear os vencedores com as lágrimas mais recônditas que tinham para oferecer a eles, únicos e líquidos lauréis possíveis de ser ali ofertados. E os colonizadores, ditos fleugmáticos, não despejaram, eles também, sua cota de sofrimento liquefeito no mesmíssimo gramado? E ali estava o David Beckham, qual um loiro Gunga Din, a pensar as feridas dos seus comandados e acudi-los para que não desidratassem. E se o leitor prestou atenção no movimento dos lábios dele, conseguiu ler, inobstante o leve sotaque espanhol, o que o bravo capitão dizia a um de seus até então comandados:
“Não chores, meu filho,
não chores que a vida
é luta renhida,
viver é lutar.
A vida é combate,
que aos fracos abate
e aos bravos, aos fortes
só pode exaltar”.
Já o escrete nacional, esse do auverde pendão de minha terra, ficou a nos dever sangue, suor e, principalmente, lágrimas.
Pois se os primitivos africanos tanto quanto os inventores do futebol moderno não se envergonharam de banhar o rosto e a camisa com as lágrimas sentidas que a vitória adversária merecia, que tipo de orgulho infantil foi esse que deu a nossos heróis a postura de meros coadjuvantes, que abandonam o palco antes de ouvir os aplausos dados ao vencedor e a merecida vaia dada aos que perderam com tamanha indignidade? O que se viu após o jogo foram rostos limpos, secos como a alma dos pecadores mais convictos, olhos brilhantes de plena satisfação e um sintomático sorriso nos lábios. Um sorriso! Como a dizer “nós já sabíamos que não chegaríamos lá!”. Ou para agradecer a nobreza do adversário, que se recusou a humilhá-los em mais essa Waterloo reversa.
Prefiro acreditar que essas lágrimas, que um orgulho absurdamente infantil não tornou públicas, tenham sido derramadas sim. Não ali, como era próprio do ritual bélico, mas no silêncio de cada quarto. “Not in the bright moment of his tribe’s victory, but in the silence of his personal des-pair”, como se poderia dizer, apropriando-se mais uma vez da lição de Campbell17.
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1Armando Nogueira, na apresentação de À Sombra das Chuteiras Imortais, de Nélson Rodrigues, Editora Companhia das Letras, 1993
2El Fútbol a Sol y Sombra, Editora Catálogos, 2005, p. 25
3Galeano, ob. cit., p. 26
4Ob. cit., p. 31
5Galeano, ob. cit., p. 34
6A Violência no Esporte, editado pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, IMESP, 1996, p. 33
7Ob. cit., p. 64
8Ob. cit., p. 91
9Ob. cit., p. 84
10Ob. cit., p. 29
11Ob. cit., p. 87
12“A hero is someone who has given his or her life to something bigger than oneself” (Joseph Campbell, The Power of Myth, Broadway Books, 1988, p. 123
13“The nation has to have an intention somehow to operate as a single power” (ob. cit., p. 134)
14Id., ib.
15Nélson Rodrigues, À Sobra das Chuteiras Imortais, p. 193
16Ob. cit., p. 52
17Joseph Campbell, The Hero with a Thousand Faces, <_st13a_city w:st="on"><_st13a_place w:st="on">Fontana Press, 1993, p. 391
*Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família
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