Competência da Justiça Militar da União – A lei 13.491/17, com vigência a partir de 16 de outubro de 2017, promoveu relevante alteração no art. 9º, § 2º, do Código Penal Militar, ao dispor que os delitos ''dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União''. Esse dispositivo não abrange todo e qualquer delito contra a vida perpetrado por componentes das Forças Armadas, mas somente aqueles praticados no seguinte contexto: ''I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; ''II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou ''III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal ...''. Interessante observar que a lei incide não apenas quando o militar estiver em situação de confronto, tão comuns, ultimamente, nas comunidades cariocas, mas também em ''operação de paz''. Apenas para exemplificar, ao tempo em que o Exército brasileiro, em missão de paz da ONU, atuava no Haiti (intervenção que se findou em outubro de 2017), um crime ali praticado seria da competência da Justiça Militar, ainda que a missão não tivesse nenhum caráter beligerante.
Forças armadas – Cumpre destacar, de plano, que estão abrangidos pela alteração os crimes dolosos contra a vida cometidos por integrantes das Forças Armadas, assim considerados, na dicção do art. 142 da Constituição, os membros da Marinha, Exército e Aeronáutica. Queremos dizer, com isso, que os crimes perpetrados por policiais militares estaduais, continuam sendo de competência da Justiça Militar comum, pelo Júri, nos termos do § 4º, do art. 125 da Carta, in verbis: ''Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil ...''. Insistimos: cometido um crime por um miliciano estadual, competente para o julgamento será a Justiça Militar estadual, a menos que a vítima seja civil, quando, então, a competência será da justiça comum, por meio do Júri, na dicção da norma constitucional.
Ratio legis – O objetivo claro da alteração foi inspirado nas recentes intervenções das Forças Armadas nas comunidades do Rio de Janeiro e, segundo o Ministro da Defesa Raul Jungmann, em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, ''o julgamento do militar pela Justiça comum ou pelo Júri tem o risco do desconhecimento das peculiaridades de suas atividades e atos no exercício da missão'' (Medida corrige erro de origem, 28/10/17, p. 2). A causar estranheza reside o fato de que, se em uma operação nos morros cariocas um membro das Forças Armadas cometer um homicídio ele será julgado pela Justiça Militar da União. Já se o mesmo delito for perpetrado por um policial militar, contra um civil, a competência será estadual, do Júri.
Inconstitucionalidade? – Conquanto se possa formular alguma crítica (como, v.g., afirmar-se não tratar-se de função típica das Forças Armadas atuar no policiamento das comunidades cariocas), não vislumbramos nenhuma inconstitucionalidade na alteração em exame, destacando que a competência do Júri, para os crimes dolosos contra a vida, não se constitui em uma regra absoluta. Basta lembrar, a título de exemplo, que se um promotor de justiça ou um juiz estadual cometem um crime de doloso contra a vida, serão julgados pelos respectivos Tribunais de Justiça, por conta do chamado foro por prerrogativa de função, em regra cuja constitucionalidade, pelo menos até agora, continua preservada. Mas não é só: o art. 124 da Constituição, ao dispor sobre a competência da Justiça Militar, afirma, com todas as letras, que a ela ''compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei'' (grifamos). Ora, a lei 13.491/17, ao alterar o art. 9º, inc. II, do Código Penal Militar, ampliou o conceito de crime militar, para as hipóteses ali elencadas, atendendo, assim, a parte final do preceito constitucional que – insistimos – atribui à lei ordinária a definição dessa espécie de crime.
Outros crimes – Não apenas os crimes dolosos contra a vida, praticados nas condições acima apontadas, passam a ser da competência da Justiça Militar. Com efeito, a nova redação do inc. II, do art. 9º, do Código Penal Militar estendeu tal competência para os crimes previstos no Código Penal e em legislação penal extravagante, quando praticados nas condições elencadas nas alíneas ''a'' usque ''e'', do mencionado dispositivo (basicamente os crimes praticados por militares quando em serviço). De sorte que, antes da alteração, eram considerados ''crimes militares'' apenas aqueles previstos no Código Penal Militar. Com a ampliação, por exemplo, um crime de ''fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança ''(previsto no Código Penal – art. 351), ou de abuso de autoridade (previsto em legislação extravagante - lei 4898/65), passam a ser de competência da Justiça Militar Estadual. Fácil identificar a evidente falta de estrutura da justiça castrense para receber tamanha quantidade de processos, impressão que já é sentida na Justiça Militar do Estado de São Paulo.
Súmulas superadas - A partir de tal conclusão, posicionamentos cristalizados em súmulas de tribunais superiores restarão superados. Assim, a Súmula 172 do Superior Tribunal de Justiça, do seguinte teor: ''Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço''. Claro: se o inc. II, do art. 9º do Código Penal Militar, com sua nova redação, faz referência à legislação penal lato sensu, decerto que abrange o crime de abuso de autoridade, cuja competência para julgamento, nos termos do enunciado da súmula, não mais será da Justiça Comum, mas da Justiça Militar Estadual. Também a Súmula n. 75, ainda do Tribunal da Cidadania, que tem o seguinte enunciado: ''Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal”. Com a legislação novel, a competência passa para a Justiça Militar Estadual. O mesmo raciocínio vale para a Súmula n. 6, do STJ, in verbis: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem Policiais Militares em situação de atividade''.
Processos em curso - Debate que certamente se estabelecerá consiste em averiguar a competência para as ações penais que se encontrem em andamento. É dizer: em curso um processo envolvendo um militar, iniciado antes da vigência da lei em exame, deve ele prosseguir perante o juiz de origem, da Justiça comum ou, ao revés, cumpre sua imediata remessa à Justiça castrense? Inclinamo-nos neste último sentido. Não se ignora, é verdade, a regra que impõe a chamada ''perpetuatio juridicionis'', pela qual a competência se firma, definitivamente, quando do registro ou distribuição da ação, não mais podendo ser modificada, segundo o art. 43 do Código de Processo Civil (com aplicação ao processo penal nos termos do art. 3º do CPP). Sucede que deste mesmo dispositivo consta uma ressalva, a admitir exceção do princípio da ''perpetuatio juridicionis'', que ocorre quando as mudanças ''alterarem a competência absoluta'' . Ora, na hipótese vertente, a competência é absoluta, por se cuidar da matéria (racione materiae), e, como tal, se enquadra na exceção prevista no art. 43 do CPC.
A propósito, quando o legislador pretendeu manter a competência inicial ele o declarou expressamente. É o que ocorreu com a lei 9.099/95, que criou os chamados Juizados Especiais Criminais, que, em seu art. 90, ressalvou com todas as letras que ''as disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada''.
Ressalte-se, por derradeiro, que por se cuidar de incompetência absoluta, na qual prevalece o interesse público, dispensa-se, para seu reconhecimento, a provocação do interessado, como ensina José Frederico Marques, a se conferir: ''Conclui-se, portanto, que a incompetência relativa deve ser arguida através de exceção, e não pode ser declarada de ofício; e que a incompetência absoluta pode ser aduzida em petitio simplex, em qualquer fase do processo, sendo que o juiz deve declará-la de ofício. [...] Claro que só o réu pode argüir a incompetência relativa. Mas, a absoluta, qualquer das partes pode levantar'' (Manual de Direito Processo Civil. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 76).
Em suma, entendemos que, a partir da vigência da lei em comento, os processos em curso (em 1º ou 2º grau), devem ser remetidos à Justiça Militar (de 1º ou 2º grau), preservados, por óbvio, os atos decisórios e instrutórios praticados anteriormente, ao tempo em que a competência era da Justiça comum.
Lei 9.099/95 e os crimes militares - É sabido que o art. 90-A, da lei 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, veda a aplicação de suas medidas despenalizadoras à Justiça Militar. No mesmo teor é o enunciado da Súmula n. 09, do Superior Tribunal Militar, a se conferir: ''A lei 9.099, de 26/09/95, que dispõe sobre os Juízos Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências, não se aplica à Justiça Militar da União''. Trata-se de disposição que não escapou à crítica doutrinária, valendo lembrar a indagação de Denílson Feitosa, para quem ''poderia a lei 9.099/95 tratar diferentemente o réu do processo penal militar relativamente ao réu do processo penal comum ?'' E completa: ''do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, é necessário se determinar o elemento diferencial entre o réu do processo penal comum e o réu do processo penal militar que justifique o tratamento desigual entre eles.'' (Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. Niterói: Impetus, 2008, p. 246). Sucede que as peculiaridades da vida castrense, mencionadas acima, justificariam essa espécie de vedação, já tendo o Supremo Tribunal já confirmado a inaplicabilidade dos benefícios da lei 9.099/95 ao militares, após a vigência da lei 8.939/99, que alterou a redação original da lei dos juizados (STF HC 80.173).
Partindo, assim, dessa premissa, confirmada pela mais alta Corte do país, no sentido da não aplicação dos favores legais da lei dos juizados aos crimes militares, formulamos a seguinte hipótese: suponha-se que um policial militar, em serviço, cometa um crime de abuso de autoridade, cuja competência era da Justiça comum, até antes da alteração em análise e que admitia a transação penal, por tratar-se de infração penal de menor potencial ofensivo, na dicção do art. 61 da lei 9.099/95. Perpetrado o crime antes da entrada em vigor da lei 13.491, de 13 de outubro de 2017 (publicada no diário oficial em 16 de outubro), e com a consequente remessa dos autos à Justiça Militar, fará o agente jus ao benefício da transação penal? Nossa resposta é positiva. Ora, é conhecido o princípio constitucional, consubstanciado no art. 5º, inc. XL da Carta, pelo qual ''a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu''. Ao se negar ao réu, em nosso exemplo, a possibilidade de transação penal, estar-se-ia admitindo que a lei mais gravosa (“lex gravior”), alcançasse fatos pretéritos. Estes, com efeito, merecem continuar sendo regidos pela anterior, mais benéfica ao agente (''lex mitior''). Nem se argumente que, por se cuidar de matéria processual e em face do contido no art. 2º, do Código de Processo Penal, sua aplicação é imediata, não havendo que se cogitar de retroação. É que, embora de cunho processual, a disposição possui também nítido caráter penal, posto que a transação penal, uma vez homologada, configura causa extintiva da punibilidade. Daí concluirmos que, remetidos os autos à Justiça Militar, mas tendo o delito sido perpetrado antes da entrada em vigor da lei 13.491/17, em nosso exemplo, deve ser proposta a transação penal ao agente, sem embargo da vedação contida no art. 90-A da lei dos juizados especiais. Tal raciocínio se estende às demais medidas despenalizadoras da lei 9.099/95, a saber a possibilidade de conciliação e a suspensão condicional do processo, bem como à necessidade de representação para os crimes de lesões corporais leves e lesões corporais culposas.
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*Ronaldo Batista Pinto é promotor de Justiça no estado de São Paulo e mestre em Direito.