É indiscutível que todo e qualquer instituto jurídico, para que possa ser validamente invocado e utilizado, deve guardar relação de conformidade com a Constituição Federal.
O enunciado acima não expressa nada mais do que o óbvio. Entretanto, nos dias que correm, o Brasil é um país em que o óbvio deve ser dito e enfatizado, e, assim mesmo, com sério risco de que seja solenemente ignorado.
À partida, anote-se que o Código de Processo Penal, diploma legal onde prevista a figura da condução coercitiva, remonta à primeira metade do século passado, tendo surgido por meio de um decreto-lei, em período ditatorial estadonovista, e tendo por inspiradora a legislação processual penal italiana, produzida em plena Era Mussolini. Portanto, não se perca de vista o contexto histórico em que concebida essa figura jurídica.
Aliás, passando os olhos na Exposição de Motivos do vigente Código de Processo Penal, lê-se que o instituto em estudo tem por objetivo autorizar ''que o acusado, no caso em que não caiba a prisão preventiva, seja forçadamente conduzido à presença da autoridade, quando, regularmente intimado para ato que, sem ele, não possa realizar-se, deixa de comparecer sem motivo justo''. Ainda no mesmo texto, seu subscritor, o então Ministro da Justiça, Francisco Campos, jurista de reconhecida inclinação autoritária, exaltava as vantagens da adoção da condução coercitiva, a qual poderia ser aplicada em face do réu que desobedecesse à autoridade e deixasse de comparecer a ato no qual sua presença seria necessária ao esclarecimento de pontos da acusação ou da defesa.
Resta claro que a condução coercitiva foi gestada com o claro propósito de ser utilizada como meio de produção de prova. E o acusado foi visto como a fonte dessa produção probatória.
Veja-se como está prevista no art. 260, caput, do Código de Processo Penal, a figura da ''condução coercitiva'':
Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
O texto legal não deixa dúvidas: o sentido de o acusado ser conduzido à força à presença da autoridade pública é para a finalidade de ser interrogado ou para ato de reconhecimento ou outro ato investigatório.
A Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso LXIII, acolheu o princípio nemo tenetur se detegere, o qual significa que ninguém será obrigado a produzir prova contra si próprio:
O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
Em verdade, bem mais do que o simples ''direito ao silêncio'', tal preceito constitucional institui, no direito brasileiro, o direito à não-autoincriminação. Em outras palavras, toda pessoa investigada ou acusada da prática de infração penal tem o direito a uma postura passiva, não podendo ser forçadamente submetida a qualquer ato de produção de prova, sem que isso lhe resulte em qualquer prejuízo jurídico.
Na mesma linha, o Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no direito brasileiro por força do decreto 678/92, no seu art. 8º, 2, g, estabelece que todo cidadão terá o direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.
Quanto ao alcance dessa garantia fundamental dos cidadãos, o Supremo Tribunal Federal de há muito já decidiu: ''Dispenso-me da custosa demonstração do óbvio e que ao indiciado não cabe o ônus de colaborar de qualquer modo com a apuração dos fatos que o possam incriminar - que é todo dos organismos estatais da repressão - e que, ao contrário, o que lhe assegura a Constituição é o direito ao silêncio, quando não à própria mentira (STF, HC 79.781/SP, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 18.04.2000)''.
Portanto, na atividade persecutória extrajudicial (investigação realizada pela Polícia, Ministério Público, Comissões Parlamentares de Inquérito e etc.) ou judicial, o Estado não pode tratar o investigado ou acusado como um objeto, que possa, contra sua vontade, ser submetido a ato tendente a apurar ou esclarecer infração penal.
Em outras palavras, incumbe ao Estado a apuração das infrações penais e, para tanto, não deve esperar a colaboração da pessoa investigada, menos ainda sujeitá-la coercitivamente a qualquer ato do qual resulte ou possa resultar em produção de prova que a incrimine.
A condução coercitiva como ferramenta de investigação é ainda fruto de uma época em que se tinha a confissão como a ''rainha das provas''. Tudo era feito para obter-se a confissão do investigado. Tudo mesmo. Atualmente, isso é absolutamente injustificável. Os órgãos incumbidos da persecução penal têm à sua disposição uma variedade de instrumentos investigatórios, tais como interceptação telefônica, quebra de sigilos bancário, telefônico, telemático e fiscal, infiltração de agentes policiais, ação controlada, captação ambiental, além daqueles meios ordinariamente previstos no Código de Processo Penal.
Veja-se que até mesmo a doutrina tradicional tem concordado que, por força do direito constitucional à não-autoincriminação (art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal), o interrogatório do acusado é essencialmente meio de defesa. Quer dizer, se é meio de defesa, o investigado ou réu pode muito bem, a seu próprio critério, abrir mão de comparecer ao ato.
É que se o indiciado ou réu não pode ser compelido a falar sobre os fatos de que é investigado ou acusado, qual o sentido de levá-lo, à força, até diante de uma autoridade pública investida de poderes investigatórios?
A resposta emerge óbvia: não faz o menor sentido, porquanto o instituto da condução coercitiva, como previsto no art. 260, caput, do Código de Processo Penal, não foi recepcionado pela Constituição da República, estando, portanto, revogado.
Ora, se a autoridade investigante já identificou o acusado como suspeito da prática de um delito, já havendo formal ato de indiciamento, pode – e deve – intimá-lo para ato de interrogatório, ao qual o investigado não tem a obrigação de comparecer.
Com efeito, se já se tratar de processo criminal, a consequência jurídica para o não comparecimento do réu ao ato de interrogatório, desde que regulamente intimado, será aquela prevista no art. 367 do Código de Processo Penal, ou seja, o feito seguirá mesmo com sua ausência, não se podendo extrair, do seu não comparecimento, qualquer presunção contra si.
Não faltará quem argumente com base na necessidade de esclarecer crimes, buscando salvaguardar a possibilidade de condução coercitiva.
Esse argumento ad terrorem abre um enorme guarda-chuva, sob o qual cabe quase tudo. Aliás, sempre que se invocam os supostos bons propósitos dos fins, busca-se legitimação para a livre adoção de quaisquer meios.
A História bem demonstra a necessidade de que toda atividade estatal, principalmente aquela da qual possa resultar restrição à liberdade individual, deve desenvolver-se com obediência a limites, por melhores que sejam seus propósitos. Já se disse que o poder tende ao abuso e, por isso mesmo, deve conhecer balizas limitadoras. Nessa linha, é a lição sempre atual de Ruy Barbosa: ''Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar contornos definidos e inequívocos à condição que o limita.''
Um conhecido italiano de Florença, Nicolau Maquiavel, já assinalava há alguns séculos, no Capítulo XVIII de sua célebre obra O Príncipe: ''...Nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo...''.
Ainda que se queira criar um estado de histeria coletiva, criando no vulgo um estado de viva excitação do espírito, de maneira a que este, na lição maquiavélica, com seu aplauso irrefletido e acrítico, legitime a adoção de quaisquer medidas no combate à criminalidade, a racionalidade deve se sobrepor.
A apuração de crimes, por mais violentos ou repugnantes que sejam, não deve desbordar da pauta constitucional. Reconhecer limites à atividade investigatória estatal não se confunde com frouxidão na apuração de ilícitos penais. É apenas a afirmação de uma postura civilizatória.
O Estado que trate de ser competente, adotando medidas investigatórias inteligentes e eficazes na investigação dos crimes. O acusado tem o pleno e indiscutível direito a uma autodefesa passiva.
Se o crime é a torpe ausência de limites, o Estado não pode imitá-lo em sua torpeza.
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*Rodrigo Vieira é promotor de Justiça em Santa Maria/RS.