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Desconsideração da personalidade jurídica de sociedades anônimas pela aplicação do art. 50 do Código Civil

Em que pese as diversas formas e dispositivos legais que abordam a desconsideração da personalidade jurídica, e os diversos tipos de sociedades que podem ser afetadas, o presente trabalho focará na aplicação do art. 50 do Código Civil perante a sociedade anônima, a qual possui determinadas características que podem trazer dificuldades na aplicação desta lei, podendo trazer inclusive dúvidas quanto ao seu cabimento.

28/11/2017

I – Introdução

O instituto processual da desconsideração da personalidade jurídica tem sido uma importante ferramenta para os casos em que a personalidade jurídica é utilizada de forma abusiva, com o fim de prejudicar o direito alheio.

No caso, não é novidade as situações em que o manto da personalidade jurídica é utilizado por pessoas físicas e jurídicas com o intuito de se protegerem de forma fraudulenta de obrigações contraídas, sendo por essa razão a desconsideração da personalidade jurídica prevista em diversos diplomas legais do ordenamento jurídico brasileiro.

Tal tema vem ganhando cada vez mais importância, tendo sido inclusive recentemente positivada no atual Código de Processo Civil de 2015, com o intuito de criar um procedimento específico e detalhado para a aplicação do referido instituto.

Contudo, em que pese as diversas formas e dispositivos legais que abordam a desconsideração da personalidade jurídica, e os diversos tipos de sociedades que podem ser afetadas, o presente trabalho focará na aplicação do art. 50 do Código Civil perante a sociedade anônima, a qual possui determinadas características que podem trazer dificuldades na aplicação desta lei, podendo trazer inclusive dúvidas quanto ao seu cabimento.

Assim, conforme se verá a seguir, o instituto da personalidade jurídica pode sim ser aplicável às sociedades anônimas, mesmo diante das diferentes espécies existentes desse tipo societário, devendo sem dúvidas estar atento o aplicador do direito a determinadas características e especificidades deste tipo de sociedade comercial, sendo este, portanto, o objetivo do presente texto.

II – Breve resumo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica

Não há dúvidas de que a criação da personalidade jurídica foi de grande importância para o desenvolvimento da atividade empresarial, pois possibilitou às sociedades empresárias adquirir direitos e obrigações em seu próprio nome, desfrutando assim de patrimônio próprio distinto de seus sócios, diminuindo assim os riscos da atividade comercial.

Ocorre que, em muitos casos, o "véu" da personalidade jurídica é utilizado de forma abusiva por empresas e empresários como forma a dificultar o cumprimento de certas obrigações assumidas pela sociedade, como por exemplo facilitando a blindagem patrimonial, quando devedores se aproveitam deste instituto para dificultar o acesso de credores ao seu patrimônio.

Foi em razão desse uso abusivo da proteção da personalidade jurídica que foi analisada pela primeira vez no direito anglo-saxão, dentro do sistema da Common Law, a possibilidade de desconsiderá-la, para que com isso os sócios sejam responsabilizados com o seu patrimônio pessoal pelas obrigações assumidas pela sociedade, sendo essa possibilidade posteriormente difundido para vários outros países.

Conforme se pode notar, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica visa evitar que a aludida personalidade seja um instrumento de fraude ou abuso de direito. Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho afirma que1:

"(...) em determinadas situações, ao se prestigiar o princípio da autonomia da pessoa jurídica, o ilícito perpetrado pelo sócio permanece oculto, resguardado pela licitude da conduta da sociedade empresária. Somente se revela a irregularidade se o juiz, nessas situações (quer dizer, especificamente no julgamento do caso), não respeitar esse princípio, desconsiderá-lo".

Antes de ser normatizado no Brasil, esse instituto era aplicado pela jurisprudência de seus tribunais, sendo somente tipificada em lei pela primeira vez no Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90), mais precisamente em seu art. 28, o qual visa proteger o consumidor contra o abuso de direito de um fornecedor no uso da sua personalidade jurídica, quando ela for um empecilho ao ressarcimento dos danos causados em uma relação consumerista.

Em seguida foi abordada pela Lei Antitruste de 8.884/94, em seu art. 18, onde prevê a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade que vier a cometer crimes contra a ordem econômica, quando ocorrer abuso de direito, infração à lei ou aos contratos e estatutos sociais, dentre outros casos no âmbito de atuação da citada lei.

Foi ainda prevista pela Lei de Crimes Ambientais de 9.605/98, a ser aplicada quando a personalidade jurídica for um empecilho para o ressarcimento dos danos ambientais causados por meio da atividade empresarial.

Contudo, foi somente com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 que esse instituto foi devidamente tipificado para a aplicação para todas as demais relações civis, tendo como fundamento para a sua aplicação o abuso no uso da personalidade jurídica, o qual estaria caracterizado pela confusão patrimonial ou desvio de finalidade, podendo nestes casos as obrigações da pessoa jurídica ser estendida para as pessoas dos sócios, conforme determina o seu art. 50, a seguir destacado:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Com o decorrer da aplicação prática de tal dispositivo legal, foi reconhecida na jurisprudência a possibilidade de ser realizar o caminho inverso ao contido na letra da lei, ou seja, através do sócio atingir o patrimônio de sua sociedade, na chamada desconsideração inversa.

Com relação ao seu efeito prático, é válido ressaltar que o objetivo de tal dispositivo legal não é extinguir a existência da pessoa jurídica, mas sim fazer com que seus sócios sejam também responsáveis por determinadas obrigações da pessoa jurídica, cuja personalidade foi utilizada de forma abusiva.

Nesse sentido, ensina Fábio Ulhoa Coelho: "A aplicação da teoria da desconsideração não implica a anulação ou desfazimento do ato constitutivo da sociedade empresária, mas apenas a sua ineficácia episódica"2.

Há ainda a lei 12.843/13, conhecida como Lei Anticorrupção, a qual prevê em seu art. 14 a desconsideração da personalidade jurídica sempre que esta for utilizada para encobrir ou dissimular a prática dos crimes previstos na aludida lei, sendo estendidos aos sócios e administradores da sociedade os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica.

Por fim, o último diploma legal a tratar da desconsideração da personalidade jurídica, foi a lei 13.105/15, a qual regula o Novo Código de Processo Civil, onde foi trazida pela primeira vez a criação de um procedimento específico para que seja declarada a desconsideração da personalidade jurídica, garantindo assim o contraditório em favor das pessoas a serem atingidas pela desconsideração.

No entanto, o presente trabalho manterá o seu foco na aplicação do art. 50 do Código Civil para as sociedades anônimas, tendo em vista as características peculiares que este tipo societário possui, e quais as suas consequências frente à aplicação do aludido instituto.

Ocorre que, em regra, tal procedimento já vem sendo facilmente aplicado em face de sociedades limitadas, seja a princípio por ser a forma societária mais difundida no Brasil, seja ainda em razão do fato de que seus sócios possuem cotas sociais as quais estão restritas à sua responsabilidade, sendo eles facilmente identificáveis, sendo todos eles atingidos em regra pela desconsideração quando ela é cabível.

Já as sociedades anônimas, sejam elas de capital aberto ou fechado, possuem determinadas características que podem trazer dúvidas quanto à efetiva aplicação deste instituto, sendo necessário assim uma análise mais aprofundada sobre essa questão.

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1
COELHO, Fábio Ulhoa; Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa – 19ª ed. – São Paulo/SP: Saraiva, 2015. Fls. 55.

2 COELHO, Fábio Ulhoa; Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa – 19ª ed. – São Paulo/SP: Saraiva, 2015. Fls. 64.
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*Fábio Matias Gonçalves é advogado do escritório CMMM – Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.

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