Sozinha, agredida, amordaçada. O sonho do primeiro filho quase se tornou um pesadelo para Ana Paula Abreu, 26, jovem moradora de Rio das Pedras. Em 2014, ela foi humilhada, negligenciada e chegou a apanhar do profissional que deveria acolhê-la no momento mais de importante de sua vida. Infelizmente, sua história não é única: um quarto das mães brasileiras já passaram pela experiência da violência obstétrica em consultórios e salas de parto do país.1
Com medo de violência no parto, mãe leva pistola para a maternidade2.
Desde sempre a mulher é violentada (palavra sinônima de constrangida, forçada, obrigada, coagida). Por motivos de ordem religiosa, cultural e outras, a violência contra a mulher vem se manifestando sob forma de subserviência, humilhação, discriminação e já está institucionalizada como uma figura ético-jurídica.
O que fazer, diante de quadro tão avassalador? Mais leis?
A legislação internacional e nacional declaratória da igualdade está perfeita, adequada e acabada, mas não surte efeito, por mais severa a penalidade prevista.
Por isto parece-nos alarmante o significado do dia 25 de novembro, instituído como Dia Internacional da não violência contra a mulher. Idem em relação à breve lei 11.489, de 20 de junho de 2007, que institui o dia 06 de dezembro como o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Seu único artigo institui o dia 6 de dezembro como o Dia Nacional de Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres.
Dentre tantas formas de violência contra a mulher encontra-se a violência obstétrica, aquela perpetrada durante o estado gestacional, no momento do parto, no luto decorrente da perda do bebê em gestação e nas situações de abortamento.
Manifesta-se a violência obstétrica na agressão, ofensa, hostilidade, aspereza, brutalidade, negligência, descaso em relação à gravidez, ao parto, ao pós-parto e à interrupção, espontânea ou provocada, do estado gravídico.
Vitima desta violência é, preponderantemente, a mulher em estado de gravidez, no parto, no pós-parto e nas situações de abortamento. A palavra preponderantemente foi empregada de propósito, pois a violência obstétrica pode atingir, em seu aspecto não material, outras pessoas além da mulher vítima, como o pai, membros da família, pessoas próximas.
A autoria da conduta, também, sob nossa ótica, não se restringe ao pessoal da saúde, tal como referido, sistemática e uniformemente, em dispositivos legais, cartilhas e outros documentos e material de divulgação e prevenção.
Isto porque também existe, a par da violência obstétrica praticada pelo pessoal da saúde, a violência obstétrica institucional e violência obstétrica praticada por pessoas que não pertencem ao pessoal da saúde.
A ampliação do panorama e da perspectiva da violência obstétrica enseja ponderação mais justa e coerente deste lamentável fenômeno e possibilita delineamento mais apropriado da responsabilidade. Também descortina outro prisma, que é a percepção dos profissionais da saúde enquanto vítimas, sobretudo da violência institucional.
A violência contra a mulher não deve ficar adstrita ao único argumento do machismo, tampouco sua autoria ao sexo masculino, devendo ater-se à ação em si.
Pouco se sabe sobre esta modalidade cruel e infame de violência, a começar pela própria mulher, ignorante de que certos procedimentos a que se vê submetida e exposta constituem, na realidade, prática de violência, acobertada sob falsa aparência de procedimentos estritamente técnicos, sem seu prévio esclarecimento, conhecimento ou concordância.
Caracterizam violência obstétrica associada à função dos profissionais da saúde: utilização de técnicas atualmente reprovadas, como a manobra de Kriesteller, que consiste na pressão sobre o abdômen da mulher, feita nos partos normais; episeotomia3 desnecessária; jejum forçado; realização de cesariana sem ou contra a vontade da mulher, exceto nos cuja gravidade a exige, ou quando a mulher, no exercício de sua autonomia, optar pela cirurgia; submeter a mulher a tratamentos dolorosos, dispensáveis e humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem dos pelos pubianos, execução de procedimentos ginecológicos com portas abertas, exame de toque por mais de um profissional, sobretudo em hospitais-escola, procedimentos executados, unicamente, para exercitar estudantes; não aplicar anestesia, quando possível e solicitado pela parturiente; não permitir ou dificultar a presença de acompanhante, que é exigência legal, não observância do sigilo e da confidencialidade e esterilização não consentida.4 O mesmo quanto à não permissão de doula e seu equipamento, para auxiliar a mulher.
Da mesma forma é importante observar que a violência obstétrica pode ser praticada também por mulher contra a mulher, como ocorreu na denúncia de estudante de Medicina, após participar do parto de uma menina de dezesseis anos, extremamente violento, praticado por sua professora: chorei de raiva e frustração no quarto dos internos. Cala a boca, gritou a obstetra. E subiu na paciente também.[8]
Também é violência obstétrica a desconsideração do luto pela perda de um filho, que atinge o pai e familiares ou outras pessoas com vínculos afetivos, sequer abrindo a possibilidade vivenciar o luto, seja atendendo o desejo de ver e estar com o bebê morto, vesti-lo, acariciá-lo, tomar dele uma lembrança, como um tufo de cabelos. Nas situações de perda que podem ser previstas, também é cruel que a mulher esteja numa ala de maternidade, vendo a vida bradar e ser celebrada!
A violência obstétrica acontece, e com muita frequência, na comunicação, com a parturiente por intermédio de palavras e frases chulas, grosseiras, ofensivas, como: na hora de fazer gostou, agora vai ver o que é bom, na agressão física, como tapas, chutes, nas ameaças as mais diversas imagináveis e inimagináveis!
Cometem violência obstétrica não só o pessoal da área da saúde, no atendimento à gestante, à mulher em situação de abortamento ou na hora do parto, outros como atendentes administrativos, motoristas de ambulância e até acompanhantes.
A utilização do termo institucional, como tipo de violência obstétrica não tem, aqui, o sentido de nascimento realizado em instituições de saúde, cujos procedimentos impessoais, mecanizados e agressivos contrapõem-se ao parto como evento natural, historicamente realizado na casa, entre paredes e restrito à família e às mulheres, pessoas fraternas e conhecidas da parturiente.
A violência obstétrica institucional decorre de falhas, omissivas ou ativas, oriundas de instituições públicas, privadas e, também, do Estado, este, sobretudo, pelos parcos recursos disponibilizados à saúde, pelas ações deficitárias e pela negligência, falta ou má prestação de serviços, de gestão e de controle.
De fato, a formatação administrativa de sujeição dos agentes de saúde a uma estrutura hierárquica rígida, autoritária, controladora, avessa ao reconhecimento de direitos e fomentadora de desnecessários níveis hierárquicos, que impedem acesso ou recurso aos superiores, inclusive quanto à fechada e descendente circulação da comunicação, do descaso em relação aos aspectos humanísticos, faz dos próprios funcionários vítimas desta estrutura que, além de dominadora, é ineficiente e ineficaz.
As instituições de saúde adotam várias formas de opressão, enxergada por Bownie5 no gerenciamento autocrático, no turnos de trabalho pouco razoáveis, nas demissões e "enxugamentos", nas reduções dos benefícios trabalhistas, nas condições precárias de trabalho e segurança reduzida, o que gera uma cultura de trabalho que tolera e estimula a violência organizacional – aquela em que as instituições permitem um clima de abuso físico, verbal e a presença de práticas não éticas contra seus clientes/pacientes.
Também as peregrinações por diversos serviços na busca de atendimento, as longas esperas, a falta de higiene, de material, de profissionais capacitados configuram violência institucional.
A violência institucional, consequentemente, atinge não somente a mulher em estado gestacional, de parto, pós-parto e em situação de abortamento, como sua família e os profissionais da área da saúde envolvidos, sujeitos a stress e grande desconforto.
Há movimentos em relação à divulgação e esclarecimento sobre a violência obstétrica, e as leis existentes não são de cunho nacional, o que cria situações divergentes no momento de sua aplicação e não satisfaz a necessidade ingente de eleger este tipo mais terrível de violência contra a mulher, como tipo penal qualificado, cuja competência é da União.
A título de observações finais quero deixar meu posicionamento sobre a violência, verdadeira pandemia que assola todas as mulheres deste planeta que atende por Terra.
Especialmente as mais carentes, as mais jovens, as mais fragilizadas em razão de raça, de cor, as mais carentes de educação, de condições materiais, todas afetadas pelo simples fato de sua condição feminina.
Aí se clama por uma boa lei de cunho nacional e punitivo, que não temos, necessária e desejada.
Mas apenas e somente a lei não é a solução. Identicamente, apenas educar via campanhas e noções nas escolas não basta.
A mudança de uma mentalidade ancestral e odiosa exige mais: que os pais, as mães, os educadores, todos, enfim, sempre e para sempre arredem esta desigualdade da condição feminina e esta violência gratuita e enraizada.
Porque sim, é possível mudar uma mentalidade!
Mãos à obra!
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1 Jornal "O Estado de São Paulo", edição de 10/08/17.
2 Jornal "O Estado de São Paulo", edição de 10/08/17.
3 Corte feito entre a vagina e o ânus durante o parto normal, para facilitar a passagem da cabeça da cabeça do bebê.
4 Lei 11.108, de 7 de abril de 2005 que, alterou a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS–.
[8] Jornal O Estado de São Paulo, 26/02./16, Rita Lisauskas.
5 Bowie 2012
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*Livia Maria Armentano Koenigstein Zago integra a Rede de Educação Permanente em Bioética – RedBioética UNESCO, como docente em Bioética.