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A tutela cautelar e a tutela antecipada sob o prisma do princípio da fungibilidade

O princípio da fungibilidade diz respeito à troca ou substituição. É a possibilidade de conhecer um instrumento jurídico proposto erradamente tal qual fosse o adequado, advindo de permissão legal expressa.

3/7/2006


A tutela cautelar e a tutela antecipada sob o prisma do princípio da fungibilidade

André de Souza Silva*

Os princípios são regras de ordem geral que, normalmente decorrem do próprio sistema jurídico, não necessitando estarem previstos em normas legais, para que sejam considerados válidos e eficazes.

É princípio do Estado Democrático de Direito, instituído pela Carta Magna de 1988, o direito e garantia de ter assegurado a análise do Judiciário a toda lesão ou ameaça a direito, evidenciado pelo princípio da segurança judiciária que implica na promoção da prestação jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva.

O legislador deve então empreender formas processuais para garantir a efetiva dinamização dos princípios elencados explícita e implicitamente, promovendo instrumentos processuais próprios para tanto. Essas formas processuais seriam, por via reflexa, as tutelas de urgência.

O princípio da fungibilidade diz respeito à troca ou substituição. É a possibilidade de conhecer um instrumento jurídico proposto erradamente tal qual fosse o adequado, advindo de permissão legal expressa.

A fungibilidade é um princípio processual implícito, decorre do princípio da instrumentalidade das formas e dos atos processuais, como pode ser observado na análise do art. 244 do Código de Processo Civil, in verbis:

“O ato só se considera nulo e sem efeito se, além de inobservância da forma legal, não tiver alcançado a sua finalidade.”

Nesse sentido, a fungibilidade pode ser considerada inovação trazida pela Lei nº. 10.444 (clique aqui), de 7 de maio de 2002, que introduziu uma série de alterações em alguns dispositivos do Código de Processo Civil.

Dentre tais alterações, vislumbra-se a ocorrência de um novo texto em seu artigo 273, mais precisamente no acréscimo de um parágrafo:

Art. 273. § 7º: Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.”

O novo parágrafo do artigo 273 preconiza que se porventura o autor formular, na petição inicial, com base na antecipação de tutela, pedido de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental.

Isto é, nas palavras de NELSON NERY JR. e ROSA MARIA ANDRADE NERY:

“Quando o autor fizer pedido de antecipação de tutela, mas a providência requerida tiver natureza cautelar, não se pode indeferir o pedido de tutela antecipada por ser inadequado. Nesse caso, o juiz poderá adaptar o requerimento e transformá-lo de pedido de tutela antecipada em pedido de cautelar incidental.”1

Percebe-se, portanto, que poderá o magistrado receber o pedido como se fosse cautelar. Porém, importante ressaltar que os requisitos para a obtenção da tutela antecipada são mais rigorosos que os da tutela cautelar, o que leva a conclusão que só poderá ser deferida a medida cautelar, se estiverem presentes os requisitos exigidos, quais sejam: o fumus bonis iuris e o periculum in mora.

Todavia, NELSON NERY JR. e ROSA MARIA ANDRADE NERY asseveram que:

“O autor não será prejudicado por haver feito pedido fora da técnica processual. Caso tenha direito ao adiantamento, é irrelevante que haja interposto cautelar incidente ou haja pedido antecipação de tutela. O juiz deverá aplicar a fungibilidade, nada obstante a norma aparentemente possa indicar faculdade: presentes os requisitos para a tutela de urgência (cautelar ou antecipatória) cabe ao juiz concedê-la.”2

De fato, a alteração revela a necessidade de aproximação das modalidades de tutela sumária, urgente e provisória, a fim de que recebam o mesmo tratamento jurídico.

Para BEDAQUE, “adotou-se, em relação às tutelas de urgência, cautelares ou antecipatórias, o princípio da fungibilidade, segundo o qual pode o juiz conceder a medida mais adequada à situação dos autos, sendo irrelevante eventual equívoco do requerente ao formular o pedido.”3

Já CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO preceitua que:

“É verdadeiramente correta, útil e oportuna a inovação trazida pela segunda Reforma, ditando a fungibilidade entre medidas cautelares e antecipatórias. É correta no plano conceitual, porque não há razão para distinguir tão rigidamente umas de outras. É útil na prática, porque permite superar erros ou divergências quanto à correta qualificação de uma demanda ou de uma medida em uma dessas categorias, ou na outra, o que vem sendo causa de dificuldades e constrangimentos para partes, advogados, juízes. E, metodologicamente, a regra explícita da fungibilidade tem o mérito de sugerir a visão unitária do grande gênero medidas urgentes, que é o caminho aberto para o enriquecimento da teoria das medidas antecipatórias, à luz das inúmeras regras explícitas endereçadas pelo Código de Processo Civil às cautelares.”4

Frise-se que o advento do § 7º possibilitou a redução de processos cautelares autônomos. Desse modo, fica eliminada a exigência de ação, processo e procedimentos autônomos para as cautelares conservativas e nominadas, eis que agora é possível, pela fungibilidade, deferir-se a cautelar em lugar da antecipação requerida no próprio processo cognitivo.

Importante esclarecer que fungibilidade não significa que o juiz possa exceder os limites da própria demanda, haja vista que, nos termos de BEDAQUE, “se entre o pronunciamento final e o pedido inicial deve haver congruência, correlação, não se admite a antecipação de efeitos não contidos na pretensão deduzida pelo autor a título de tutela definitiva.”5

Não obstante, cumpre esclarecer que a redação do novo § 7º do art. 273 não parece ser tão clara, a medida que a impressão que fica é que somente autorizaria o juiz a receber como cautelar uma demanda proposta com o título de antecipação, e não o contrário.

Entretanto, embora o legislador refira-se somente à possibilidade de substituição da tutela antecipada pela cautelar, a fungibilidade pode ocorrer nas duas direções, sendo totalmente possível conceder tutela antecipada em lugar de cautelar.

Isto quer dizer que o juiz pode adequar à própria medida, podendo deferir aquela mais apta a afastar o risco de inutilidade da tutela final.

CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO ensina, com proficiência, que “não há fungibilidade em mão única de direção.” E conclui “que o novo dispositivo autoriza o juiz, amplamente, a receber qualquer pedido de tutela urgente, enquadrando-o na categoria que atender adequada, ainda que o demandante haja errado ao qualificar o que é cautelar como antecipação, ou o que é antecipação, como cautelar.”6

Corroborando seus argumentos, assim consideram NELSON NERY JR. e ROSA MARIA ANDRADE NERY, ipsis litteris:

“A recíproca é verdadeira. Caso o autor ajuíze ação cautelar incidental, mas o juiz verifique ser caso de tutela antecipada, deverá transformar o pedido cautelar em pedido de tutela antecipada. Isso ocorre, por exemplo, quando a cautelar tem natureza satisfativa.. Dado que os requisitos da tutela antecipada são mais rígidos que os da cautelar, ao receber o pedido cautelar como antecipação de tutela, o juiz deve dar oportunidade ao requerente para que se adapte o seu requerimento, inclusive para que possa demonstrar e comprovar a existência dos requisitos legais para a obtenção da tutela antecipada. A cautelar só deverá ser indeferida se não puder ser adaptada ao pedido de tutela antecipada ou se o autor se negar a proceder a adaptação.”7

Desse modo, vislumbra-se claramente que a regra da fungibilidade, advinda coma introdução do § 7º, vem mitigar a exegese estritamente formalista que se verifica na prática, posto que jamais se aconselha que a forma sacrifique o direito do jurisdicionado.8

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Bibliografia:

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência (tentativa de sistematização). 3ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2003;

_________, Código de Processo Civil Interpretado – coordenador Antonio Carlos Marcato, 1º vol., São Paulo, Atlas, 2004;

CRUZ E TUCCI, José Rogério. Lineamento da Nova Reforma do CPC, 2ª ed., São Paulo, RT, 2002;

DINAMARCO, Candido Rangel. A Nova Era do Processo Civil. 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2003;

NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. Adendo. 6ª ed., São Paulo, RT, 2002.

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1Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. Adendo, p. 16

2Ibid., p. 16

3José Roberto dos Santos Bedaque, Código de Processo Civil Interpretadocoordenador Antonio Carlos Marcato, p. 807/808

4Cândido Rangel Dinamarco, A Nova Era do Processo Civil, p.60

5José Roberto dos Santos Bedaque, Código de Processo Civil Interpretado – coordenador Antonio Carlos Marcato, p. 808

6Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. Adendo, p. 16

7José Rogério Cruz e Tucci, Lineamento da Nova Reforma do CPC, p. 43

8Cândido Rangel Dinamarco, Nova Era do Processo Civil, p.61

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*Advogado do escritório De Vivo, Whitaker e Castro Advogados

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