O presente artigo tem por objetivo analisar uma situação que a cada dia se torna mais corriqueira no Brasil: a oferta de bem imóvel já pertencente ao devedor em garantia de empréstimo não relacionado a negócio imobiliário, evidenciando completa distorção dos fins almejados pelo legislador quando institui no Brasil a alienação fiduciária.
Antes de mais nada, recordemos a origem do negócio fiduciário e as razões da sua introdução no nosso ordenamento jurídico. Sabe-se que o instituto foi criado no intuito de fomentar o crédito imobiliário, através da lei 9.514/97, instituidora do Sistema de Financiamento Imobiliário - SFI, editada logo após o Plano Real, numa época de muitas incertezas e dúvidas em relação ao financiamento imobiliário, em que havia um elevado índice de inadimplência habitacional, já que as garantias, até então existentes, em especial a hipoteca, eram consideradas pouco efetivas pelo mercado, em razão da morosidade dos processos judiciais.
Ou seja, o instituto foi criado visando a aquisição de bens imóveis, e não com a finalidade distorcida de se ofertar bem já pertencente ao devedor a fim de garantir empréstimos de outra natureza, como tem prevalecido cada vez mais nas transações bancárias e até mesmo entre os particulares, deixando de lado o uso da hipoteca pelas razões acima apontadas e pela facilidade da retomada do bem para a quitação do crédito concedido, utilizando-se simples ato cartorial para a expropriação do bem e realização de leilão particular.
Em verdade, o que ocorre é o seguinte: ao se constituir a alienação fiduciária a propriedade do imóvel é transferida para o credor, ficando o devedor na simples posse direta do bem por todo o período que durar o financiamento. Uma vez paga a dívida, o devedor volta a ser o proprietário do imóvel. Caso deixe de quitá-la, o próprio Cartório de Registro de Imóvei0s notifica o devedor, de modo a constituí-lo em mora e, persistindo a inadimplência, a propriedade do bem será consolidada em favor do credor, que poderá realizar a venda do imóvel através de leilão particular. Ou seja, todo o trâmite de execução da garantia se dá na esfera extrajudicial, o que a torna mais ágil, barata e mais efetiva que a tradicional hipoteca.
Interessante observarmos que na redação original do atual Código Civil só havia a previsão de alienação fiduciária para bens móveis infungíveis, conforme dispõe o art. 1.361. Entretanto, ao que parece, para não deixar as poderosas instituições financeiras descobertas, é que provavelmente o legislador acabou acrescentado o art. 1.367-B através da lei 13.043 de 13 de novembro de 2014, permitindo a sua utilização também para bem imóvel. Mas mesmo antes desta alteração as instituições bancárias já utilizavam a alienação fiduciária de imóveis para garantir contratos de todo o gênero, contrariando o seu verdadeiro objetivo, qual seja, repita-se, para fomentar a aquisição de bens imóveis, ainda que realizada fora do SFI, por pessoa física ou jurídica.
Em outras palavras: os contratos de mútuos ou de qualquer outra natureza realizados pelas instituições bancárias até novembro de 2014 jamais poderiam ter se embasado no Código Civil porque não havia até então, como já dito, a previsão para tanto. Os bancos estavam utilizando a lei especial que regulamenta o Sistema de Financiamento Imobiliário para embasar todo e qualquer tipo de contrato, razão pela qual começaram a surgir alguns julgados nos Tribunais, em especial no Paraná, reconhecendo que a oferta de bem já pertencente ao devedor em garantia de pagamento de mútuo não relacionado a negócio imobiliário representa verdadeira distorção dos fins por ela visado, levando o legislador a acrescentar o referido artigo no Código Civil a fim de proteger o sistema bancário brasileiro.
Assim surgiu a alienação fiduciária de bens imóveis para garantir contratos de natureza diversa ao do Sistema de Financiamento Imobiliário, estando disciplinada pelo Código Civil a partir de novembro de 2014. Acontece, porém, que diferentemente do que dispõe a lei especial acerca do rito extrajudicial para a retomada da garantia em caso de mora do devedor, nas operações regidas pelo Código Civil o credor fiduciário deverá valer-se das antigas regras aplicáveis à hipoteca para retomar a sua garantia, ou seja, mediante o mesmo processo de execução hipotecária previsto nos artigos 1.419 a 1.430 porque assim determina o art. 1.367 que já disciplinava o uso do instituto para bens móveis infungíveis e manteve-se inalterado pelo legislador, mesmo após o acréscimo do art. 1.367-B.
E neste ponto reside a possível manobra realizada pelas instituições bancárias que utilizam o instituto com fundamento na lei especial, e não no Código Civil, com o objetivo de não se aplicar as disposições relativas à hipoteca, que garante ao devedor o acesso à Justiça, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Este artifício representa evidente fraude à lei imperativa, uma das causas de nulidade absoluta do negócio jurídico, prevista no art. 166, VI do Código Civil. Este instituto visa exatamente resguardar os fins e valores que alberga a regra jurídica a ser aplicada. Neste caso, como já dito, a lei 9.514/97 traz um rigorismo extremo, vez que autoriza a perca da propriedade através da simples notificação cartorial, sem nenhum processo, sem nenhuma defesa, com o objetivo único de facilitar e incentivar o crédito imobiliário. Utilizá-la em situações diversas, violando indiretamente as garantias constitucionais e as regras cogentes do Código Civil, que por sua própria natureza são classificadas como regras de preceito imperativo, ou seja, são de aplicação obrigatória pois independe da vontade das partes que delas não poderão abrir mão, representa inadmissível violação ao ordenamento jurídico.
Na aplicação da lei, como se sabe, deve-se levar em consideração os fins e valores por ela visados, exigindo do aplicador uma coerência do sistema jurídico. Esta é a razão de ser do instituto da fraude à lei imperativa, e por isso não se pode admitir como lícita a prática de um ato, autorizado por uma regra, quando, na situação fática, venha a permitir que se viole a regra imperativa, cujo reconhecimento se dá através de critério meramente objetivo pois não se trata de vício de consentimento, como é a simulação, pouco importando a vontade das partes. Bastando para o seu reconhecimento a indicação do uso indevido de uma norma violadora de outra norma, sendo esta de caráter imperativo. No caso em exame, as instituições bancárias utilizam indevidamente a lei 9.514/97 para fraudar as garantias constitucionais e o próprio Código Civil que garante ao devedor hipotecário e também ao fiduciante em operação não abrangida pelo SFI, o acesso à Justiça e o exercício do contraditório e da ampla defesa através de processo judicial, conforme determina o art. 1.367.
E mais! As instituições bancárias acabam fraudando também, por via oblíqua, os preceitos imperativos que fundamentam a República Federativa do Brasil, quais sejam, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), o direito à moradia e a proteção da família (art. 226, CF). Tal digressão é muito importante e vejamos a sutileza desta fraude: a impenhorabilidade do bem de família encontra-se disciplinada pela lei 8.009/90 que traz uma exceção, qual seja, o financiamento destinado à construção ou aquisição do próprio imóvel familiar, permitindo a sua penhorabilidade quando é dado em garantia hipotecária. Em regra, os bancos realizam contratos de mútuo e inserem cláusula de alienação fiduciária recebendo em garantia imóveis já pertencentes ao núcleo familiar, fazendo parecer crer que ele foi adquirido através daquela operação, utilizando a lei do SFI para fraudar a regra imperativa que protege a família, como se a situação se encaixasse na exceção prevista na lei, resultando na perda do imóvel familiar através de simples procedimento administrativo.
Ora, permitir este absurdo é o mesmo que dizer que o Poder Judiciário – guardião precípuo do ordenamento jurídico, não poderá penhorar bem de família, mas por outro lado, instituições financeiras estariam autorizadas a criar manobras por meio das quais, um bem de família garantirá um contrato de mútuo, autorizando-se excutir extrajudicialmente este imóvel em caso de inadimplência.
A este respeito, rogamos os ensinamentos do Ministro Luiz Edson Fachin, com amparo em sua obra "O Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo", atentando que a proteção ao bem de família deriva de um interesse público superior, inclusive social, na perspectiva da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, de modo que não deve ser tolerada renúncia ou qualquer espécie de transação judicial ou extrajudicial com tal garantia que é norma imperativa (jus cogens). E mais, a lei 8.009/90, busca proteger prioritariamente não a propriedade em si, mas o direito fundamental da pessoa humana à moradia. Ao tornar este bem impenhorável a lei estabelece um princípio de ordem pública, que visa garantir a preservação do direito à moradia em detrimento da garantia patrimonial que estes mesmos bens oferecem aos credores. Uma vez que mencionada lei não busca resguardar o devedor, mas sim sua família, assegurando-lhe uma vida digna, em conformidade com o que reza a Constituição Federal, a garantia legal não pode ser afastada, sendo irrenunciável (norma imperativa), conforme vem decidindo o Colendo STJ em reiterados julgados, principalmente quando a questão se apresenta em contratos que guardam a natureza jurídica de contrato de adesão, como são as cédulas de crédito bancário, na medida em que suas cláusulas são impostas pela instituição financeira de forma unilateral, não abrindo qualquer margem de negociação das tratativas com relação aos consumidores, cuja intepretação, conforme reza os artigos. 423 e 424 do Código Civil, deve ser pro aderente, bem como reputam-se nulas as cláusulas de renúncia antecipada ao aderente a direito resultante da natureza do negócio.
Mas não é só, verifica-se que a previsão contratual de alienação fiduciária do imóvel familiar ofende também toda a sistemática do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, revelando obrigação extremamente iníqua e abusiva, acarretando sua nulidade, consoante o art. 51, IV, da lei 8.078/90. Importa ressaltar ainda, que a doutrina moderna tem sustentado a mitigação da pacta sunt servanda, diante da função social dos contratos (art. 421 e art. 2.035, parágrafo único, Código Civil), e da boa-fé (art. 422, CC e art. 4º, III, e art. 51, IV, da lei 8.078/90).
Em resumo: não deve prevalecer a disposição contratual – como a alienação fiduciária de bem de família, na hipótese em que tal negócio jurídico, eivado de interesses meramente financeiros, violem lei imperativa, a dignidade da pessoa humana, o direito fundamental à moradia, e, ainda, todo o ordenamento jurídico lastreado na boa-fé objetiva.
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