Mais do que fazer uma análise científica ou descritiva dos avanços da tecnologia como tenho feito nos textos que escrevo sobre direito e tecnologia, nesta oportunidade, pretendo provocar o leitor com algumas ideias a respeito da utilização da tecnologia no Poder Judiciário. Se você está se perguntando se a minha ideia é sugerir que os juízes sejam substituídos por computadores, saiba que você está certo e que é isso o que eu defendo.
Segundo o levantamento apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça no fim do ano de 20151, o Brasil atingiu a marca de 100 milhões de processos em tramitação na Justiça. Grande parte dos litígios brasileiros envolvem agentes que constantemente atuam nos processos judiciais (os grandes litigantes), em demandas cujos objetos são judicializados com uma frequência alta (as demandas repetitivas).
Ou seja, o Judiciário está infestado de milhões de demandas idênticas, em que apenas as partes são trocadas e modificadas. Uma enormidade – talvez até a maioria – de demandas judiciais terão destino e tratamento semelhante ao final de todo o devido processo legal. O tratamento dessas demandas não pode ser o mesmo tratamento das demandas diferenciadas e estratégicas ou daquelas que demandam instrução probatória.
Vivemos em um universo jurídico em que existem várias portas abertas para a solução de controvérsias. Cada tipo de controvérsia tem uma porta e uma saída mais adequada para a sua própria resolução. Nos parece que o Judiciário, tal qual moldado nos dias hoje, não é o sistema mais adequado para resolver os problemas relacionados aos casos de massa.
Algumas das plataformas digitais mencionadas nos textos anteriores podem indicar qual seria o sistema adequado para a solução dos casos de massa (o SemProcesso2, por exemplo), como plataformas digitais de mediação pela internet e a solução administrativa dos problemas. Em se tratando de litígios de volume, certamente, as soluções autocompositivas têm maior eficiência e satisfação entre as partes.
Todavia, tendo em vista que não é possível resolver todos os milhões de problemas existentes de forma amigável, é preciso repensar a estrutura e os procedimentos para a solução dos processos repetitivos. Propõe-se, portanto, o desenvolvimento de instrumentos tecnológicos aptos a automatizar os atos judiciários, de modo a consolidar uma segunda fase do processo eletrônico, que poderá também ser aplicada em todos os tipos de processos e que trará efeitos positivos principalmente nos casos repetitivos.
A atividade humana é praticamente desnecessária em todos os atos de impulsão processual. Tal qual o JBM Advogados (ou a nova ferramenta da Tikal Tech), que automatizou todos os seus procedimentos, o Poder Judiciário pode fazer o mesmo com sua atividade administrativa. As juntadas de petições podem ser automáticas, assim como a expedição de mandados, guias de levantamento, certidões de objeto e pé. Também pode ser automática a remessa dos autos à conclusão após a juntada de uma petição, a intimação de um perito via e-mail, a indicação de uma decisão judicial para publicação no Diário Oficial, a certificação de decurso de prazo, a conferência do pagamento de custas judiciais, o agendamento de audiências etc. Em suma, todos os procedimentos administrativos processuais podem ser substituídos por um software (e é bem capaz que sejam melhor executados dessa forma).
Além disso, por meio do processo eletrônico, o Poder Judiciário, como entidade, tem meios para catalogar, de forma sistemática, todas as informações referentes aos processos, do objeto das demandas às suas decisões, de modo a criar um Big Data judicial, tal qual os escritórios de advocacia já fazem com as ações judiciais que administram para seus clientes.
Ou seja, se os escritórios de advocacia conseguem, através de sua expertise e experiência antepassada, prever o desfecho de uma demanda com base nas decisões anteriormente proferidas sobre determinada matéria, em um determinado local e um determinado período de tempo específico, o Poder Judiciário pode fazer o mesmo, obtendo dados estatísticos sobre as demandas que tramitam no Brasil, o que auxiliaria os juízes na elaboração de suas decisões, de acordo com a jurisprudência dominante sobre um tema.
Para que esse mecanismo possa funcionar a contento, é necessário que o mecanismo de catálogo de ações (e suas respectivas informações) seja aprimorado de forma detalhada, utilizando, para tal fim, a inteligência artificial. Uma sugestão para este aprimoramento é obrigar que tal detalhamento seja efetuado pelo advogado quando do ajuizamento das ações via certificado digital.
Além disso, o sistema de processo eletrônico deve ser unificado em todo o Brasil, conforme já sugeriu o Conselho Nacional de Justiça. Deve existir apenas uma base de dados em todos os tribunais e órgãos jurisdicionais. Somente de tal maneira poderá ser construído um Big Data que absorverá informações fidedignas do Poder Judiciário do Brasil.
Ao catalogar as informações referentes aos casos que tramitam perante o Poder Judiciário, será possível monitorar todos os casos que versem sobre o mesmo assunto e saber, em termos quantitativos precisos, qual é a probabilidade de procedência e ou de improcedência de uma pretensão.
Nas bancas de advocacia automatizadas, com base em uma minuta padrão pré-definida, o software de gestão consegue elaborar automaticamente todo o tipo de petição judicial, com a indicação mais atualizada possível de julgados. Com a implantação do fluxo ininterrupto eletrônico e automático dos processos judiciais, a produção/elaboração de despachos, decisões e sentenças também pode ser realizada de forma automática, com base em modelos e estruturas pré-estabelecidas pelo Juiz ou por quem quer que seja, mediante o cumprimento e o exercício do devido processo legal.
Talvez este seja o sistema mais adequado para julgar os casos repetitivos (mais eficiente, inclusive, que o sistema de precedentes recém incluído no Novo Código de Processo Civil), uma vez que em virtude da integração da base de dados do Poder Judiciário, as decisões serão produzidas e proferidas com precisão estatística e sempre estarão atualizadas de acordo com a jurisprudência mais moderna sobre o assunto.
É importante destacar que o sistema ora proposto não pretende retirar do Juiz o direito e o dever de resolver a controvérsia. O Juiz, nos casos repetitivos, ao invés de elaborar a decisão de próprio punho, desde o início, receberá em suas mãos a decisão produzida pelo software de automação do Judiciário e analisará o seu conteúdo, podendo ajustar, discordar ou não daquilo que for produzido pelo computador. O próprio sistema deverá conter as decisões divergentes, indicando quais são os precedentes contrários existentes.
No caso em que o Juiz entender que deve discordar da decisão produzida pelo sistema, ele deverá fundamentar os motivos pelo qual entende ser o caso de divergir da opinião jurisprudencial dominante. Neste caso, a sugestão é que seja inserida um alerta para que o sistema monitore a evolução da tese divergente nos Tribunais Superiores para, se o caso for, adaptar as decisões padrões de acordo com o entendimento que vier a ser manifestado pelas instâncias máximas do Judiciário.
Além disso, o próprio sistema deve ser estruturado para identificar eventuais desvios de atos e de conteúdos padrões, ocasião em que a automação das decisões será descontinuada e transferida para o trâmite convencional que hoje conhecemos.
É importante destacar que esta ideia de automação da produção das decisões judiciais deve ser aplicada exclusivamente para os casos em que há discussão puramente de direito e de teses jurídicas, em que não há a necessidade de instrução probatória.
Advoga em favor da automação do Poder Judiciário o fato de que os investimentos e o orçamento do Judiciário não têm surtido os efeitos necessários para dar conta da alta litigiosidade em nosso país. O Poder Judiciário do Brasil é um dos Judiciários mais caros do mundo. Luciano da Ros no texto "O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória"3, apresenta dados e informações sobre o quanto o Brasil tem desembolsado para fazer sua Justiça funcionar.
Em linhas gerais, de acordo com o estudo de Luciano da Ros, o Brasil desembolsa 1,30% de seu PIB com o Poder Judiciário (dados de 2014). De todo o valor gasto com o Poder Judiciário, 89% dos gastos se destina ao pagamento de pessoal4. Sabe-se, outrossim, que o Poder Judiciário brasileiro está totalmente atolado e abarrotado.
Ao analisar tais dados, só se pode concluir uma coisa: investir em pessoas não resolveu o Problema do Poder Judiciário.
Sugere-se, de tal forma, que o orçamento do Judiciário seja direcionado para o desenvolvimento de softwares que façam o trabalho burocrático dos serventuários da justiça, concentrando os esforços humanos no julgamento das disputas apresentadas ao Judiciário, contratando mais Juízes e assessores mais técnicos para auxiliar os magistrados.
Sei que tais sugestões podem causar um certo desconforto na maioria das pessoas que hoje vivenciam o mundo jurídico, todavia, o presente texto é um pontapé de partida para uma verdadeira (e necessária!) revolução no Poder Judiciário.
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1 Relatório Justiça em números
2 Sem Processo.
3 O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória.
4 A exemplo do que ocorre na maioria dos países, a maior fatia das despesas com o Poder Judiciário no Brasil se destina ao pagamento de pessoal. Por aqui, este percentual chega a aproximadamente 89% dos gastos, atendo-se a cerca de 70% em média nos países europeus (cf. CNJ 2014, 32; CEPEJ 2014, 35). DA ROS, Luciano. O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória. In: (Clique aqui)
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*Giovani Ravagnani é graduado em Direito. Mestrando em Direito Processual Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e da Associação Brasileira de Legaltechs e Lawtechs (AB2L). Professor da Rede LFG de Ensino.