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Responsabilidade direta de sócios e administradores e a desconsideração da personalidade jurídica no direito do trabalho

A própria definição do conceito de desconsideração da personalidade jurídica acarreta divergências doutrinárias, sendo certo que também a forma de disciplinamento legal do tema não favorece o debate.

28/8/2017

Embora o instituto da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) não seja novidade no direito brasileiro, e já tenha sido introduzido e debatido doutrinariamente desde obras pioneiras de Rubens Requião e seu desenvolvimento posterior por José Lamartine Correa de Oliveira, a verdade é que houve uma significativa demora para sua positivação no direito brasileiro.

Com efeito, é rigorosamente apenas por ocasião do advento do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, que o instituto passa a ser albergado legalmente no direito do Brasileiro, no artigo 28 do Código. Depois disso outras normas se seguiram, como o art. 34 da lei 12529/11, e, naturalmente, sua consagração no art. 50 do Código Civil de 2002.

Ainda que materialmente o instituto já tivesse criado raízes, e fosse largamente utilizado na prática forense e reconhecido e aplicado pela jurisprudência, não há dúvida de que se ressentia da falta de uma normatização processual.

Essa lacuna inegavelmente foi preenchida com o advento do novo Código de Processo Civil em 2015, através de seus artigos 133 a 137, e agora também no processo do trabalho por força da inserção do art. 855-A, na CLT, em razão da reforma trabalhista, disciplinando processualmente o tema.

Para se saber, entretanto, se o incidente é cabível, e, mais do que isso, necessário no caso concreto, é necessário revisitar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

A própria definição do conceito de desconsideração da personalidade jurídica acarreta divergências doutrinárias, sendo certo que também a forma de disciplinamento legal do tema não favorece o debate. Isso porque, a princípio, a finalidade da desconsideração da personalidade jurídica é a de permitir a responsabilização direta dos sócios de uma determinada sociedade, para além de eventual limitação de sua responsabilidade pelas regras societárias, como no caso de uma sociedade limitada. Nesse diapasão, o instituto surge como uma relativização do dogma da separação absoluta da personalidade da sociedade e de seu quadro societário.

Sob esse prisma, a desconsideração da personalidade jurídica, que justificaria a incidência do incidente aliás, ocorreria apenas nas hipóteses em que fosse necessária a responsabilização secundária dos sócios de uma dada sociedade. Todavia, abundam na doutrina entendimentos de que outras modalidades de responsabilização passiva ou ativa de empresas também estariam sujeitas a essa mesma conceituação.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho, por exemplo, entende que a hipótese de reconhecimento legal de grupo econômico, tal como no art. 2º, § 2º, da CLT, seria uma modalidade de desconsideração da personalidade jurídica1.

Esse posicionamento inclusive é compreensível porque o próprio Código Civil, ao versar sobre a desconsideração da personalidade jurídica refere-se, em seus parágrafos, às hipóteses de responsabilização solidária de empresas de grupos societários e consorciados.

Não se pode confundir os institutos, contudo, por mera questão topológica legislativa, até porque não guardam relação entre si quer nos seus requisitos, quer nos seus efeitos.

Isso porque o que o art. 2º, § 2º, da CLT prevê é uma hipótese de responsabilização solidária entre as empresas que participem de um grupo econômico de fato ou de direito, segundo os critérios de identificação que estabelece, e que não guardam qualquer relação quer com as hipóteses ensejadoras da desconsideração da personalidade jurídica, quer com seus efeitos (no caso do dispositivo citado, por exemplo, a responsabilidade é solidária e todas as empresas do grupo podem ser demandas como responsáveis patrimoniais primárias). Além disso, rigorosamente nem sequer implicam a responsabilidade dos sócios ante eventual afastamento da proteção que lhes é conferida pela teoria da pessoa jurídica.

Tem-se, portanto, que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, e o instrumento processual para sua realização devem ser reservados às hipóteses em que se busca, efetivamente, ou a responsabilização dos sócios para além dos limites de suas responsabilidades societárias, ou a investigação por meio de desconsideração inversa com vistas a se identificar eventual responsabilização de outras empresas que estejam sendo utilizadas para fraudar credores da sociedade demanda.

É das hipóteses de desconsideração inversa versadas sobre Daniel A. A. Neves, quando assinala que na hipótese de desconsideração inversa "o sócio figura como devedor e a sociedade empresarial, como responsável patrimonial secundária, quando se constata que o sócio transferiu seu patrimônio pessoal para a sociedade empresarial com o objetivo de frustra a satisfação de seus credores"2.

Observe-se que na hipótese mencionada de desconsideração inversa, o elemento fático subjacente é a prática fraudulenta. E isso leva diretamente a um debate central na questão relativa à desconsideração da personalidade jurídica no qual a doutrina se divide entre aqueles que entendem que a desconsideração da personalidade jurídica seria cabível apenas nos casos de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial de um lado, e de outro lado aqueles que entendem que a mera insuficiência patrimonial já bastaria para a sua incidência.

Fora da esfera trabalhista há poucas dúvidas no sentido de que a doutrina e a jurisprudência majoritária se inclinam em favor da ideia de que a desconsideração seria cabível apenas nos casos de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial. Nesse sentido a lição de Fábio Ulhoa Coelho,

Pressuposto inafastável da despersonalização episódica da pessoa jurídica, no entanto, é a ocorrência da fraude por meio da separação patrimonial. Não é suficiente a simples insolvência do ente coletivo, hipótese em que, não tendo havido fraude na utilização da separação patrimonial, as regras de limitação da responsabilidade dos sócios terão ampla vigência. A desconsideração é instrumento de coibição do mau uso da pessoa jurídica; pressupõe, portanto, o mau uso. O credor da sociedade que pretende a sua desconsideração deverá fazer prova da fraude perpetrada, caso contrário suportará o dano da insolvência da devedora. Se a autonomia patrimonial não foi utilizada indevidamente, não há fundamento para a sua desconsideração3.

No mesmo sentido o acompanha o Ministro Carlos Alberto Menezes de Direito, ao manifestar entendimento no sentido de que seu cabimento estaria restrito às hipóteses em que "houver a configuração de abuso ou de manipulação fraudulenta do princípio da separação patrimonial entre a sociedade e seus membros. O que se quer é evitar a manipulação da autonomia patrimonial da sociedade como meio de impedir, fraudulentamente, o resgate de obrigação assumida nos termos da lei"4.

Até a década de 90 tal entendimento não apenas era majoritário como fartamente dominante, surpreendendo, contudo, que precisamente o primeiro diploma normativo a positivar o instituto, o Código de Defesa do Consumidor, tenha adotado não apenas entendimento mais abrangente, como ampliado de forma impactante a esfera do que seriam as hipóteses de cabimento da desconsideração da personalidade jurídica em seu art. 28, abrangendo desde infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Não surpreende que tal disposição tenha sido alvo de severas críticas por parte da doutrina comercialista e civilista. Como expõe Marcelo Bertoldi:

A crítica que se faz ao supracitado art. 28 do CDC diz respeito às hipóteses ensejadoras do superamento da autonomia da pessoa jurídica. Se por um lado, correta a referência legal quanto ao abuso de direito, que corresponde com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, as referências feitas ao excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência e má administração, por tratarem-se de cláusulas que permitem a responsabilização direta do administrador ou sócio sem a necessidade da desconsideração da pessoa jurídica, não teria sentido constar do texto legal, não se tratando de hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, mas sim de responsabilização direta do causador do eventual dano5.

Essa ampliação, contudo, foi rapidamente aceita e absorvida em especial pela doutrina e jurisprudência trabalhistas, ciosas particularmente de que outros créditos menos privilegiados que o crédito trabalhista passasse a ter elementos mais eficazes de execução creditícia do que o próprio direito do trabalho.

Arion Sayão Romita defende inclusive que no direito do trabalho deveria ser estipulado como regra a ideia de que os sócios de sociedades limitadas respondem subsidiariamente (e solidariamente entre si) pelas dívidas trabalhistas da sociedade, enquanto da mesma forma os dirigentes das sociedades anônimas deveriam fazê-lo quando for insuficiente o patrimônio da empresa para arcar com as dívidas da sociedade6.

Maurício Godinho Delgado perfilha do entendimento da desconsideração da personalidade jurídicas por mera frustração patrimonial, calcada em um "princípio da despersonalização do empregador"7.

Uma diferenciação que acaba passando desapercebida no debate entre estes extremos, contudo, e que é pontuada na crítica de Bertoldi é a distinção entre hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica por fraude, e as hipóteses de responsabilização direta dos sócios ou gestores por ato ilícito. Isso porque, embora os efeitos práticos do reconhecimento tanto de uma quanto de outra possam ser similares, seu fundamento e seus reflexos processuais não o são.

A distinção entre as hipóteses de ato ilícito e de fraude ou abuso de direito que poderiam, estas duas últimas, implicar a desconsideração da personalidade jurídica é preciosamente assinalada por Rodrigues Filho:

Fraude à lei, tecnicamente, deve ser vista sob o prisma específico da manobra indireta que tangencia o preceito legal proibitivo ou imperativo, independentemente de objetivar o prejuízo alheio, embora leve, de alguma forma, ao proveito próprio ou de terceiros8.

Se uma determinada pessoa não possui qualquer poder de gestão dentro da empresa, não há sentido em se falar em responsabilidade da mesma por atos de gestão dentro do empreendimento.

Prevalece na doutrina o entendimento de que quando os atos dos sócios violam diretamente o direito de terceiros ocorrem os fenômenos que ensejam a responsabilidade por ato próprio ou, mais especificamente, hipóteses de responsabilidade civil, que incluem situações de comportamento doloso ou culposo de dirigentes da sociedade, violadoras de disposições de lei, que não justificam propriamente a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, mas a mera e direta responsabilização dos sócios9.

As hipóteses são distintas porquanto a desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvida precisamente para atacar as situações em que, a princípio, nenhum ato ilícito flagrante poderia ser atribuído ao sócio ou administrador, mas este se escondia atrás do véu societário para práticas de abuso de direito, fraudes, ou simples ruína por má gestão. Nunca houve necessidade de desconsideração da personalidade jurídica por atos ilícitos praticados pelos sócios e administradores porque tampouco havia dúvida nesse aspecto de que quando o ato pudesse ser imputado diretamente a um deles, o mesmo responderia diretamente em caráter individual, ou solidariamente com a sociedade, pelos prejuízos causados.

Não seria necessário, nesse caso, ir sequer além das regras gerais de responsabilidade civil, mas muito antes da própria consagração legislativa da desconsideração da personalidade jurídicas as hipóteses de desconsideração direta dos administradores já eram admitidas legalmente, como se infere, por exemplo, da lei das Sociedades Anônimas de 1974 em seu art. 158.

Em tais circunstâncias a responsabilidade é direta e individual, e uma vez constatada a prática do ato ilícito por violação de lei ou estatuto, especialmente em se tratando de deveres legais específicos, a própria defesa do administrados (e, por analogia, também os sócios que atuam de forma ilícita) é virtualmente impossível, como alerta Hendel Sobrosa Machado, porque não há margem de discricionariedade para o seu cumprimento10.

É consabido que a esmagadora maioria das hipóteses de “desconsideração da personalidade jurídica”, em especial no direito e no processo do trabalho, nada mais se referem do que hipóteses de atos ilícitos praticados diretamente pelos gestores e sócios das sociedades, dominando amplamente o cenário, por exemplo, as situações de dissolução irregular da empresa, em que o empregador simplesmente some, ou, mesmo que encontrado, não se verificam quaisquer vestígios do estabelecimento ou bens de qualquer outra forma vinculados à figura do empregador societário. Observe-se a esse respeito a súmula 435 do STJ: Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.

Note-se que no caso do entendimento sumulado do STJ não apenas a dissolução irregular permite o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente (art. 175, III, do CTN, aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho por força do art. 889, da CLT), como inclusive presume a dissolução irregular pelo simples fato da empresa deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, evidenciando postura ainda mais contundente do que a que se verifica de regra no processo do trabalho, em que mesmo quando não se localiza a endereço no domicílio fiscal ainda se enveredam diversos esforços para a localização da mesma antes de se declarar a dissolução irregular.

Fora dessa hipótese, na rotina trabalhista, o que sobram são as hipóteses de falência, recuperação judicial e algumas situações em que a sociedade continua em atividade e se apresenta de forma insolvente. Rigorosamente falando, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica estaria reservado a estas situações, já que nas demais a responsabilidade poderia ser atribuída diretamente ao sócio ou gestor.

O máximo que se poderia opor, em especial nos casos de cessação irregular das atividades da sociedade por parte de seus sócios ou gestores, no caso de responsabilidade direta, além da negativa do ato, naturalmente, é o de que o poder de gestão ou controle não recaía sobre parte dos gestores formais ou, de forma ainda mais categórica, os sócios minoritários11, situações em que efetivamente o incidente poderia se justificar para comprovação de eventual coparticipação em ato fraudulento.

Dito isto, é compreensível contudo que mesmo nessas circunstâncias de responsabilidade direta dos sócios ou gestores a parte autora ou exequente opte pela adoção do incidente de desconsideração porquanto será a via mais segura processual, haja vista que caso se entenda posteriormente que a hipótese não era de responsabilização direta fatalmente a inclusão do sócio ou gestor na demanda será nula em razão de cerceamento de direito de defesa, implicando manifesto atraso processual até que se regularize o processamento de sua inclusão no polo passivo.

O objetivo da presente contribuição foi o de especificar a diferenciação entre as figuras, contudo, além de destacar que esta distinção é aplicável ao direito do trabalho e também pode servir de orientação determinante a respeito da necessidade de adoção, ou não, nos casos concretos, do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para fins de redirecionamento da execução trabalhista.

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1 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo. São Paulo: Malheiros, 2016. P. 80

2 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil. 2a ed. São Paulo: Método. 2015. P. 143

3 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 14a ed. São Paulo: Saraiva, 2003. P. 126-127

4 DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Estudos de direito público e privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. P. 109

5 BERTOLDI, Marcelo. Curso avançado de direito comercial. Vol. 1. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 166.

6 ROMITA, Arion Sayão. Direito do trabalho: temas em aberto. São Paulo: LTr, 1998. P. 763-764

7 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 8ª ed. São Paulo: LTr, 2009. P. 447-448. p. 447-448.

8 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo. São Paulo: Malheiros, 2016. P. 91

9 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo. São Paulo: Malheiros, 2016. P. 105-106

10 MACHADO, Hendel Sobrosa. Responsabilidade dos administradores e sócios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. P. 14

11 Hendel Sobrosa Machado faz específica alusão a essas situações, ao indicar que “O pequeno acionista não poderá ser responsabilizado pois nçao participa de forma decisiva para a tomada de cisões empresariais[...] A personalidade jurídica não pode ser desconsiderada de forma direta contra companhias de capital aberto ou acionistas passivos, nestes últimos incluídos os sócios minoritários os acionistas sem opção de voto”. MACHADO, Hendel Sobrosa. Responsabilidade dos administradores e sócios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. P. 112

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*Roberto Dala Barba Filho é juiz do trabalho no TRT da 9ª Região.

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