Perdemos há pouco mais de um mês a querida Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER (13/7/17). Mais do que a jurista e professora, perdemos uma grande mulher, exemplo e referência para todas as gerações vindouras por sua dedicação, vivacidade e alegria incomuns.
Por ocasião do convite formulado pela OAB/SP para participar de um seminário em sua homenagem no salão nobre da entidade em 19 de agosto próximo passado, não pude deixar de abordar do tema da "Mediação, Conciliação e Arbitragem no Novo CPC" à luz de alguns de seus ensinamentos. Essa é a proposta desse breve escrito.
O conceito clássico de jurisdição envolve a fixação de três vetores centrais: (I) função, (II) atividade e (III) poder. A doutrina, seguindo essa linha, modela o atributo poder estabelecendo que se trata de "uma expressão do poder estatal, o qual é uno e não comporta qualquer ramificação em uma pluralidade de poderes diversificados".1
Dentro desse contexto, pode-se dizer que a pacificação social da lide, escopo do processo (função), decorre da capacidade que tem o Estado de decidir imperativamente (poder), sempre à luz das regras e ditames constitucionais que limitam o arbítrio estatal durante o empenho da atividade judicante impositiva.
No entanto, pelas mais recentes propostas da eterna Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, o conceito de jurisdição passa por necessárias reformulações. Em sua obra Ensaio sobre a processualidade, lançada em 2016, lapidou novos contornos àquilo que se deve entender por jurisdição. Como principal sugestão de modificação, sugere que o atributo poder não mais corresponde à realidade do processo brasileiro como verdade absoluta, assumindo o seu lugar a característica garantia, destinada ao mais amplo acesso à justiça:
Se, conforme nosso pensamento, a jurisdição compreende a justiça estatal, a justiça arbitral e a justiça consensual, é evidente que fica superado o conceito clássico de jurisdição. Definida como poder, função e atividade, verifica-se que não há exercício de poder na justiça consensual, onde o conflito é dirimido exclusivamente pelas partes.2
As críticas atingem a própria noção de coisa julgada, porquanto não raras vezes a preclusão administrativa faz as vezes da coisa julgada. Até mesmo porque, inúmeros são os casos em que a satisfação do direito ocorre sem a coisa julgada. Incide crítica, também, no modus operandi da justiça autocompositiva, pois nela se exerce jurisdição sem resistência à pretensão, inexistindo sequer atuação impositiva do terceiro facilitador (mediador ou conciliador). Diante dessa nova quadratura, conclui de forma incisiva:
É preciso inserir no conceito de jurisdição a função de garantia, sobretudo em face do Estado Democrático de Direito e da moderna visão do princípio da separação dos poderes [...] Garantia das partes, para que possam atingir a tutela jurisdicional adequada pela via do acesso à Justiça; garantia do próprio processo e do procedimento, pela observância das garantias constitucionais e legais, e busca da pacificação com justiça. Jurisdição, na atualidade, não é mais poder, mas apenas função, atividade e garantia. E, sobretudo, seu principal indicador é o de garantia do acesso à Justiça, estatal ou não, e seu objetivo, o de pacificar com justiça.3
O mais importante para jurisdição moderna é conferir o acesso à "ordem jurídica justa", célebre expressão consagrada pelo estimado Professor KAZUO WATANABE,4 um dos grandes amigos e parceiros de empreitadas de ADA.
Assim, certo é que a tutela processual há de ser conferida em prazo razoável, de forma completa, com o objetivo de satisfazer a pretensão da parte que têm razão mediante um procedimento adequado, à luz do contraditório (NCPC, art. 4º). As garantias extraídas do devido processo legal, óbices ao arbítrio estatal, devem ser observadas a fim de instrumentalizar a nova forma de se pensar o processo civil brasileiro.
A realidade jurídica atual, conjuntura na qual se valorizam a jurisdição autocompositiva (NCPC, arts. 3º, §3º e 334), assim como a própria justiça administrativa, fortalece as diretrizes fixadas pela ilustre professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, não sendo mais coerente aceitar que a jurisdição é tão somente função estatal que visa à resolução imperativa dos litígios.
Aceitar uma nova perspectiva do conceito de jurisdição corresponde, portanto, ao primeiro passo para a efetiva aceitação da justiça consensual dentro do mesmo plano da justiça estatal e da justiça arbitral. Tudo isso de modo a permitir, de uma vez por todas, a implementação e fomento de um verdadeiro "sistema multiportas de solução de conflitos" por meio do qual o Poder Judiciário deixe de ser considerado a porta principal, educando e estimulando a efetiva escolha pelos cidadãos dos meios mais adequados para a solução de seus conflitos, especialmente por meio das técnicas de conciliação, mediação e negociação.
A querida professa ADA nos deixou órfãos no plano físico, mas seus ensinamentos continuarão a nortear nossas discussões por muitos e muitos anos. Essa lacuna jamais será preenchida e seu trabalho nunca completado como elas mesmo previu em forma de um poema denominado "E a morte virá..." escrito em 2014 e que nessa ocasião transcrevemos em sua homenagem:
"E a morte virá e me tocará o ombro
e me olhará nos olhos
e me dirá vamos.
E eu a seguirei sem medo
e deixarei a página dobrada
o texto iniciado no computador
e o livro aberto para não perder a página.
E irei embora assim
tranquilamente
sem olhar para trás
como se fosse retornar a qualquer momento
para terminar a frase não concluída
para entregar o trabalho não acabado
para arrumar a desordem nos meus papéis
para ler o livro de suspense apenas começado
para selar a carta deixada aberta
sobre as fantasias da minha imaginação
E a minha ausência esvoaçará
impregnando as paredes e os objetos
nos cômodos que viveram comigo
tanto tempo da minha vida."
Viva ADA PELLEGRINI GRINOVER!!!
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1 DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do novo processo civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 77.
2 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, pp. 18-19.
3 Idem, pp. 19-20.
4 "Em suma, a assistência judiciária deve ser conceituada em prática como um instrumento de acesso à ordem jurídica justa, e não apenas da defesa técnica ou pré-processual" (WATANABE, Kazuo. Assistência judiciária e Juizados especial de pequenas causas. In: WATANABE, Kazuo (Coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985. p. 163).
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