"Às vezes eu prospero, às vezes eu falho, mas todo dia é um novo início e uma nova oportunidade."1
- Gretchen Rubin, The Happiness Project
I – A questão colocada: como decifrá-la!
Uma importante empresa financeira, voltada ao desenvolvimento de produtos gerados por seu departamento de "bioética-inovação", questionou a auditoria jurídica sobre as possíveis ou eventuais repercussões ou consequências jurídicas, econômicas ou sociais, no Brasil, das descobertas fortuitas, inclusive médicas, conhecidas no mundo científico norte americano como "incidentual-findings" e no jargão francês como "decouvertes fortuites".
Em torno do aparelhamento jurídico que cobre e encobre o mundo científico, para imunizá-lo ou para garantir os investimentos aplicados em pesquisa e desenvolvimento (RXD), criaram-se verdadeiras trincheiras, até que, no dia 2 de março de 2017, o 115º Congresso Norte Americano, na Primeira Sessão, aprovou o HR 1358.2
II – Que protege a Bill, que originou a H.R. 1358?
Para os propósitos deste parecer, o auditor jurídico entendeu que seu trabalho somente teria valência desde que a Bill fosse interpretada, nos termos que o Congresso a aprovara. Para tal desiderato ser cumprido, desde a necessidade que reclama, pois é uma Bill "to protect scientific integrity in Federal research and publicy making, anda for other purposes".
1 – O título da Bill, brevíssimo, está inserido na Section 1, que, doravante, será designada como "Scientific Integrity Act" (ou Ato Legislativo de Integridade Científica).3
1.1 – No Act, está explicitado que "federal agency" é o termo dado pelo Código dos Estados Unidos (Section 551(1),5), ao qual já estamos habituados pelas agências criadas após a desestatização.
2 – O Congresso dos Estados Unidos deu à palavra "sense" o sentido de entendimento4, catalisado com a integridade científica. E, adotando auto-exegese na construção, optou por ser esclarecedor, para não haver dúvida de que a integridade tem um valor próprio, com todos os sentidos que possa se espelhar. E, com precisão, porque avaliou e cimentou o valor da ciência, de sua importância, de suas variantes, do alcance público, da sua independência e da sua necessária difusão.
Pode-se comparar a redação que o Congresso deu à integridade cientifica o mesmo reconhecimento que a Constituição Federal brasileira reconhece na necessidade de as sentenças serem fundamentadas, dando valor, como se fosse valor constitucional como categoria dogmática. Ainda mais, ampliando, abrangeu direitos sociais com dignidade humana. Vida nova aos antigos preceitos do hermético mundo científico do passado.
2.1 – Estes são os sentidos que a Sec. 3 adota: "1 – a ciência e processo científico devem informar e orientar decisões de políticas públicas em uma ampla série de questões, incluindo a melhoria da saúde, proteção do meio ambiente e proteção da segurança nacional; 2 – o público deve ser capaz de confiar na ciência e no processo científico que informa decisões de políticas públicas; 3 – ciência, processo científico e a comunicação da ciência deve ser livre da política, ideologia e conflitos de interesses financeiros; 4 – políticas e procedimentos que garantem a integridade da conduta e comunicação pública da ciência financiada são fundamentais para garantir a confiança pública."
3 – A Sec. 4, levando em conta que as condutas das pesquisas científicas não podem permanecer isoladas, nem seus dados suprimidos ou distorcidos do público, criou um mecanismo integrativo com as diversas agências federais encarregadas de difundir os dados e as conclusões das pesquisas (extensivos em Sec. 5 – Principles).
4. Ultra cuidadoso, o legislador no Sec. 5 prescreveu os canais, os ritos, as formas e os requisitos da política de integração cientifica, sempre dando conta que as tarefas relacionadas com ela são da competência de agências federais, sem abrir-se a oportunidades para não haver nenhum conflito ou ruídos na execução da política (Sec. 6).
5 – Por fim, noventa dias após a entrada em vigor do Act (H.R. 1358), o legislador prescreveu que o Diretor do Escritório de Política Cientifica e Tecnologia deveria entender-se e ajustar com a Academia Nacional de Administração Pública os meios necessários para implementar a lei, promover a comunicação e livre troca de informações com outras agências, os legisladores e o público interessado (cientistas ou empregados em órgãos federais), além de prover a supressão ou distorção de dados equívocos, para, finalmente, recomendar promover a integração dos propósitos da lei.
III – A importância da mudança da política para o campo científico.
Nos Estados Unidos, a agência conhecida como USEPA tem como propósito dar apoio, por consultores, especializados em diversos ramos científicos, às políticas governamentais, atualmente abrangidas pela H.R. 1358, inclusive.
Existe na USEPA, como o nome indica, o Board of Scientific Advisers, que é dividido em dois organismos, encarregados da política e da regulação das atividades científicas. Com a mudança da Presidência, a nova administração tomou importantes decisões, erodindo as vozes dos cientistas, com o fito de passar, através de alterações legislativas, que a indústria passou a dar o comando das reformas legislativas (de modo particular a tudo quanto se referir às mudanças climáticas, sobretudo preparando nova legislação para a indústria dos combustíveis fósseis e às químicas poluentes).
Há, estão ocorrendo, diversos atritos entre os membros da USEPA e os administradores do governo Trump. O mais relevante é que, extintos os mandatos dos conselheiros, dos 18 membros, 12 não foram reeleitos (EPA News, 06/05/2017, Agency fires science advisers, do repórter Scott Waldman)
IV – Um caso de repercussão publicada pela Commission for the Study of Bioethical Issues.
1 – O caso, a seguir focalizado, foi publicado pela Comissão Presidencial para o Estudo de Publicações de Bioética (Presidencial Commission for the Study of Bioethical Issues).
O próprio título relata o propósito da publicação: "Antecipar e Comunicar: Gestão Ética de Descobertas Incidentais e Secundárias nos Contextos Clínicos, de Pesquisa e do que vai direto ao consumidor".
Muita cautela e rigor científico regeram a redação do texto, que contém 160 páginas e subscrito em 7 capítulos.
2 – Fundamental para o entendimento do que é o tema posto em questão e como este caso foi analisado, nas considerações políticas, legais e éticas (respect for persons, beneficence, justice and fairness intellectual freedom and responsability), conduziram à conclusão: "Este relatório, Antecipar e Comunicar: Gestão Ética de Descobertas Incidentais e Secundárias nos Contextos Clínicos, de Pesquisa e do que vai direto ao consumidor, centrou-se no gerenciamento ético de descobertas incidentais e secundárias que surgem nos contextos clínicos, de pesquisa e do que vai direto ao consumidor (Direct-To-Consumer). A Comissão de Bioética também reconhece que as descobertas incidentais e secundárias podem surgir em circunstâncias que não se encaixam perfeitamente em um desses três contextos e que novas situações evoluirão que ainda não imaginamos. Os princípios, análises éticas e recomendações estabelecidas neste relatório são destinados a orientar os profissionais em uma variedade de contextos, atuais e futuros.
Os princípios éticos não fornecem por si mesmos mandatos explícitos sobre o que tem que ser feito. Em vez disso, eles fornecem orientação sobre fatores que devem ser levados em consideração ao determinar a melhor forma de gerenciar os achados incidentais e secundários. A interpretação e aplicação desses princípios podem auxiliar os profissionais na elaboração de respostas informativas, reflexivas e éticas para as descobertas em qualquer contexto.
Os achados incidentais são desafiadores porque podem, mas não sempre, ter implicações importantes para a saúde e o bem-estar de um indivíduo. Quando a saúde e o bem-estar do indivíduo estão em jogo, a sociedade tem o dever de proteger e promover a saúde e a segurança. Para promover esses objetivos, os praticantes (profissionais da área) devem ser auxiliados pela melhor evidência disponível e por claras, ainda que flexíveis, diretrizes relativas à gestão de descobertas incidentais e secundárias. As políticas relativas a tais descobertas devem garantir que os profissionais deem aos potenciais pacientes informações apropriadas sobre a possibilidade, probabilidade e consequências de descobertas incidentais e secundárias; e elas devem ser suficientes para permitir tomada de decisão antes do início de um teste ou procedimento.
Existem muitas obrigações relativas ao gerenciamento ético de descobertas incidentais e secundárias que são específicas do contexto. Por exemplo, no contexto clínico, o dever fiduciário é dominante e exige que os clínicos atuem no melhor interesse de seus pacientes. No contexto da pesquisa, mesmo que pesquisadores não sejam fiduciários dos participantes, eles, no entanto, devem obrigações éticas decorrentes, em parte, de entrosamentos morais baseados no acesso privilegiado a informações médicas privadas. O contexto do DTC, situado na intersecção dos domínios empresarial e médico, exige proteção ao consumidor que se estenda além do caveat emptor ou "cuidado, comprador".
Embora a questão das descobertas incidentais e secundárias tenha sido considerada, por vários grupos, e focada em preocupações que são específicas por contexto - e modalidade -, as obrigações éticas associadas à descoberta, divulgação e a gestão dessas descobertas não foi compreensivelmente considerada além dos próprios contextos e modalidades. O relatório procura preencher este vazio. Em 'Antecipar e Comunicar', a Comissão de Bioética conclui que, em qualquer ambiente, os potenciais pacientes devem ser devidamente informados sobre a possibilidade de descobertas incidentais ou secundárias antes do início de um teste ou procedimento. Os praticantes também devem reconhecer a potencial natureza de certas descobertas incidentais ou secundárias e devem cuidar, para que sejam minimizados os danos ao divulgar esses achados. Profissionais e potenciais pacientes se beneficiam de evidências empíricas sobre a probabilidade de incidentes e resultados secundários decorrentes de um determinado teste ou procedimento. E todos - praticantes e receptores - podem se beneficiar de mais discussões inclusives sobre as preocupações éticas, práticas e considerações legais, levantadas por descobertas incidentais e secundárias", após analisar, sob esses focos, as recomendações.
3 – Necessário adendo.
Enquanto há forte redução nos Estudos Unidos das despesas com R&D, na França, o Institut National de la Santé et la Recherche Médicale (Inserm), conhecido Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica (criado em 1964), - único instituto público de saúde focalizado na saúde humana e na pesquisa médica, emprega, sem cortes nas despesas, 6.500 funcionários.
Emmanuel Macron, recém confirmado na Presidência, prometeu aumentar a verba atual de 2,2% do PIB para 3%, além de dar mais autonomia ao órgão competente.
V- Custo e Eficácia dos Novos Medicamentos
5.1- Tormentosa questão que afeta diretamente as pessoas mais carentes, quando enfermas e que necessitam de medicamentos inovadores: mostra o desequilíbrio flagrante no Brasil entre querer produzir medicamentos inovadores e querer utilizar de fontes estrangeiras para favorece-las e, em época de crise, falar do preço de cura com medicamentos inovadores é indispensável e, finalmente, até que ponto é possível cogitar que é o direito social à saúde (art. 6º CF) e se caberá, no âmbito do Estado, pagar medicamento inovador, não abrangido pelo S.U.S.?
5.2- Estas perguntas e questionamentos são mistérios que levam à reflexão, porque o costumeiro desequilíbrio das contas públicas, causado em razão de má gestão, incompetência, burocracia, corrupção e ausência de discernimento, transformou o Judiciário em guardião de direitos sociais, com bases em decisões e suposições que levam o Estado a gastar mal. Para constatar que os magistrados com respaldo em apoio ao populismo ministerial, nem sempre decidem com discernimento e bom senso para conceder benefícios e oportunidades de uso de medicamentos inovadores sem que estejam comprovados, com segurança, seus efeitos para melhorar o tratamento de moléstias graves (câncer, hepatite C etc.). Existem decisões conflitantes. Mergulha a dúvida no Mar de Sargaços de que tratamentos com esses medicamentos custam milhões de reais.
5.3- Isso se justifica? Não, certamente.
De pronto, essa inflação de benefícios propiciados pelos magistrados, às vezes, ou em certas circunstâncias, resultam em benefícios terapêuticos decepcionantes. Em consequência, a benesse pouco ou nada proporciona à pesquisa pública, pois, no Brasil, as verbas públicas aplicadas à pesquisa médica sempre foram ridículas, mais ainda agora com os cortes verticais nos minguados recursos.
Há, no país, cientistas que se esforçam para manter vivas as suas buscas, com resultados pouco promissores, não obstante a comprovada capacidade de nossos pesquisadores.
5.4- Enfim, as decisões judiciais que a auditoria judiciária levantou, de uma forma ou outra, põem em perigo o precário e insuficiente e mal distribuído orçamento público destinado à pesquisa no sistema de saúde e, consequente, o possível aumento de pacientes de serem tratados com estes produtos. Há uma ameaça concreta à precariedade dos meios, das verbas e dos resultados, porque o Estado e entes privados (estes voltados somente ao lucro desmedido) não se entendem, por falta de agenda estatal da questão ser discutida.
6- O auditor jurídico só existe, porque é indispensável (art.6º, Lei 8906/94). Só sobrevive, quando atende, confere e observa todos os princípios ínsitos de personalidade, confiabilidade, sigilo inegociável da profissão e da questão cuidada, exclusividade e recusa completa de qualquer ideia, por incompatível, com qualquer ato ou procedimento que induza à mercantilização. Et pour cause...
7- Pode-se entender como infeliz ou desumana, uma recente decisão do Tribunal Federal da 4º Região (TRF4), mas mostrou ela que prevaleceu o discernimento. O Poder Judiciário, atentou em propor ou suprir (porque julgou caso concreto), apontou caminho, para que o Poder Público, se quiser, pode caminhar com os interesses privados e encontrar um justo e humano equilíbrio, de sorte que o acesso a medicamentos inovadores possa ser utilizado com requisitos próprios dos quais um medicamento é avaliado ou deverá ser em função do que resultou para o serviço médico prestado e, por consequência, como aprimorou este serviço médico.
7.1- Face isso, louve-se a decisão uniforme (em duas instâncias) de um caso de células-tronco: "O Tribunal Regional Federal (TRF) da 4º Região negou pedido para tratamento com células-tronco, por considerá-lo ainda experimental e incipiente, havendo dúvidas a respeito da extensão de sua eficácia. Os desembargadores mantiveram sentença contrária a uma moradora do Rio Negrinho (SC), que sofre da doença de Machado-Joseph. No processo (número não divulgado), pede o pagamento pela União de tratamento em Banglok, na Tailândia, e as despesas de acompanhante. A patologia é neurodegenerativa e conduz a incapacidades funcionais e motoras. A paciente já realizou o tratamento uma vez. Na ocasião, ela vendeu um imóvel para obter o dinheiro da viagem. Segundo relata, houve melhora no seu quadro, possibilitando que realizasse funções diárias com muito menos dificuldade. Querendo reforçar o tratamento, que custa um pouco mais de $130 mil, recorreu à 1º Vara Federal de Jaraguá do Sul (SC). O pedido foi julgado improcedente e a autora recorreu ao TRF. Ao analisar o caso, a relatora, desembargadora, Vânia Hack de Almeida, considerou que o tratamento pretendido ainda é experimental e não tem eficácia comprovada, pois não existem pesquisas em nível mundial sobre o tema e, por isso, não é possível afirmar os seus riscos".5
7.2- Atende, a meu sentir, aos requisitos práticos, legais e éticos do Capitulo 5, da Comissão Presidencial do Congresso dos Estados Unidos para o Estudo dos Estados Unidos, a festejada decisão monocrática e secundada pelo TRF4, acima transcrita.6
8- Infelizmente, no passado recente, o Instituto Oswaldo Cruz (RJ) e o Instituto Butantã (SP), entidades públicas, trouxeram valiosas contribuições com inovações terapêuticas, sem ressonância.
E por que isso foi e será sempre importante?
Responde a professora Veronique Trillet Lenoir, tendo em vista o que ocorre na França, que o desenvolvimento de uma inovação terapêutica (medicamento) implica na participação de numerosos atores com horizontes diferentes, ou seja, desde a inovação, à transferência de tecnologia, até os complicados protocolos que coroam o sucesso ou mostram o fracasso do esforço, no retorno do investimento, pois o preço da cura depende também do tempo do tratamento. E as despesas tem aumentado ano a ano.7
XI- CONCLUSÃO
9.1- Não se esquiva o auditor jurídico de repropor a responsabilidade de afrontar, com coragem, o tema exposto no parecer. E, se aceitar, que Deus também dá a inteligência para entender o que é bom e o que é mau.
Pode concluir que o atendimento ao processo inovativo e seus resultados, quando eficazes, dependem da coragem de se afirmar que, sem a participação criteriosa e permanente do Estado, justificando-a com decisões de políticas públicas, o bem comum não é alcançado.
Os mais afortunados têm uma grande responsabilidade diante do mundo, aquela que é de seu próprio sentido, nesta época pós-moderna.
E, nela, tudo é desafiado e cada um a interpreta com seu próprio discernimento, ideias e juízos.
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1 "Sometimes I succeed, sometimes I fail, but every day is a clean slate and a fresh opportunity", in Illinois Bar Journal, vol. 105, junho de 2017, p. 45, extraído do artigo escrito por Karen Erger: "At the End of the Day"
2 H.R., letras que aparecem em leis norte americanas (conhecidas também por Bill), significam que foram aprovadas pela House of Representatives, geralmente relacionadas a um determinado Comitê da Casa. A H.R. 1358 originou-se do "Committee on Science, Space, and Technology".
3 Em se tratando de um ato emanado do legislativo, "quando introduzido na primeira casa da legislatura, uma parte da legislação proposta é conhecida como uma bill..." (verbete Act, Black Law Dictionary, ed. 1979). E o fato de ser titulado de "enacted" (decretado) que foi originado pelo legislativo, em conjunto (verbete clause, idem)
4 Sense, na Sec, 2, tem significado especial, como explicado no Oxford Refference: "Rápido em reconhecimento, compreensão ou desconfiança em relação a um assunto científico (sentido do ridículo, sentido da estrada, sentido incomum)" e também "O hábito de basear a conduta de alguém em um instinto".
5 Destaque do Jornal Valor, Caderno Legislação e Tributos (E1), de 5,6 e 7 de agosto de 2017.
6 Anticipate and Communicate – Ethical Management of Incidental and Secondary Findings in the Clinical, Research, and Direct-to-Consumer Contexts, Washington, December, 2013, (Clique aqui).
7 La Recherche, nº 523, maio de 2017, Idées- Santé- "Les médicaments innovants, sont-ils trops chers?" p. 79/87; a entrevista da Dra. Veronique está na página 85.
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