Não é necessário tecer maiores abordagens jurídicas para consolidar que o regime de demarcação de terras indígenas no Brasil resguarda forte carga de discricionariedade e insegurança que terminam por gerar inúmeros conflitos, que afetam os direitos dos povos indígenas e dos não-indígenas, propagando a insegurança jurídica e impregnando procedimentos, supostamente técnicos, de carga ideológica e terminando por não atender aos interesses de nenhuma das partes.
Neste cenário, instaurado o conflito social e a insegurança jurídica, o direito deve, mais do que nunca, exercer seu prioritário papel de pacificação e busca de soluções que minimamente estabeleçam patamar mínimo de segurança jurídica. Como bem disse a Profª Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "a segurança jurídica tem muita relação com a boa fé. Se Administração adotou determinada interpretação como a correta e aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação."
Seguindo esta linha, o direito deve empreender o fundamental papel de reunir aplicação à interpretação do conjunto normativo posto ao caso concreto, sendo que neste diapasão, as normas gerais ganham o protagonismo fundamental, com especial destaque para a Constituição Federal e, assim sendo, papel essencial de seu intérprete capital, o Supremo Tribunal Federal.
O papel do STF enquanto intérprete da Carta Magna é de função estabilizadora de todo Ordenamento jurídico vigente, motivo pelo qual suas decisões devem, sempre, ser analisadas sob a ótica estrutural e profilática à busca da pacificação de interpretações e, principalmente, aplicação do conjunto normativo vigente. Logo, quando o STF se manifesta, sua decisão possui a força e coerção moral de um julgado do maior legitimado à interpretação da Carta Constitucional, norma regente maior, sobretudo, quando esta decisão se presta a estabelecer salvaguardas, determinações erga omnes e comandos imperativos, que a tornam de observação compulsória, não pela presença ou ausência de efeito vinculante ordinário, mas, sobretudo, pela natureza e origem da decisão.
Foi neste contexto que o STF promoveu o julgamento da pet. 3388/RR – Caso Raposa Serra do Sol -, em que foram estabelecidas salvaguardas institucionais, originariamente expostas como "condicionantes" a serem observadas como a interpretação do STF acerca das demarcações de terras indígenas, se estabelecendo naquele dispositivo jurisprudencial um comando claro, nítido e estrutural de 19 pontos que não podem deixar de ser observados em todo procedimento de mesma natureza e finalidade – demarcação de terras indígenas.
Ocorre que, a tal julgamento não foi originariamente atribuído o efeito vinculante, tal como determina a disciplina própria aos feitos de repercussão geral, o que gerou, por este mero argumento formal a defesa, por alguns, da inaplicabilidade da observação compulsória das salvaguardas consolidadas pelo STF para as demarcações de terras indígenas. Vale frisar, que ainda que sob o aspecto formal, tal consideração apresenta algum relevo de análise, é inegável que o STF, inclusive por múltiplas passagens nos votos e ponderações de seus ministros, estabeleceu elementos objetivos a serem observados com nítido foro normativo, onde negar-lhe a observância em nada contribuiu para solver inúmeros casos em que o direito se viu preso às amarras de interpretações já definidas pela Corte Suprema, reputadas, utilizadas e empregadas como pendentes, como por exemplo, a vedação à ampliação das terras indígenas já demarcadas.
O STF consagrou a segurança jurídica e a estabilidade como elementos de aplicação compulsória nas demarcações de terras indígenas, apontando que, como registrado pelo min. Menezes Direito, "uma vez feita a demarcação, não deve caber ampliação, porque a ampliação vai gerar consequências gravosas, inclusive para aqueles que, uma vez feita a demarcação e executada a demarcação, possam adquirir direitos dessa demarcação. Se nós admitirmos que é possível a ampliação, a cada momento, vamos ter esse embate", onde se extrai que a salvaguarda constante da condicionante XVII do acórdão da pet 3388/RR tem por função fundamental, garantir segurança jurídica não apenas para os índios, mas, também, para os demais que adquiriram a propriedade após a atuação estatal e consolidação do que é terra indígena e do que não é.
Ao bem do bom direito, o STF definiu que a instabilidade, sobre se a terra é indígena ou não, se encerra com o procedimento de demarcação, ou seja, uma vez promovida a demarcação, não há que se falar em ampliação da referida área, pois, caso contrário, nunca iria se consolidar a mínima segurança do que não é. O direito jamais deve ser utilizado para eternizar dúvidas e insegurança, pelo contrário, tem o papel fundamental de solver dúvidas e estabilizar as relações jurídicas, não sendo outra a intenção e comando promovidos pelo STF.
Fato é que de tal raciocínio se extraem elementos periféricos não menos importantes, principalmente quando se tem a segurança jurídica como pilar fundamental da construção, como por exemplo, a tentativa de criar simulacros para camuflagem de ampliações. Não há mais espaço na maturidade do direito brasileiro para tal orquestramento. O comando do STF é nítido e de clareza solar e, portanto, não pode sucumbir a iniciativas que travestidas de revisão, nova demarcação ou anexação intentem, de fato, a burla da salvaguarda e busquem ampliar terras indígenas já demarcadas.
Aliás, vale frisar que inexiste exceção à salvaguarda de vedação à ampliação da terra indígena já demarcada, trata-se de um comando peremptório e objetivo. Não se trata de desprezar a aplicação da inteligência da súmula 473 do STF – "A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial" – mas deve ser ressaltado com fora de precaução e previdência, que o que tal comando possibilita é que a administração pública, em processo específico e próprio, possa anular os atos "eivados de vícios que os tornam ilegais", obviamente sempre assegurando o contraditório e ampla defesa, bem como, não promovendo tal controle de legalidade em sede meramente discricionária, em exercício de pura autotutela ou utilizando processo administrativo de demarcação para tal finalidade, sob pena de severa ofensa ao princípio do devido processo legal. Ressalte-se que o controle judicial de legalidade sempre está franqueado para os que se sintam ofendidos em seus direitos.
Qualquer construção que se oponha a este raciocínio, com a devida venia, faz naufragar o conjunto primordial de princípios da administração pública e faz da segurança jurídica um valor sem qualquer estabilidade. Seria imaginar que inexiste qualquer segurança para aquisição de qualquer propriedade no território nacional, sendo que de forma ainda mais grave, nem mesmo nas áreas em que a administração pública já tenha promovida a análise e a respectiva demarcação.
Se do julgamento da pet. 3388/RR se extraem tais elementos, do efeito meramente formal de sua publicação não se registra a observância vinculada, notadamente pela ausência de repercussão geral formal, mesmo se ressaltando que em outros julgados – RMS 29.087/DF; ARE 803.462/MS; RMS 29.542/DF – todos após a publicação do acórdão, onde o próprio STF reiterou seu comando, fato que fez com que sua aplicação pela administração pública, encontrasse obstáculos. Neste cenário, inicialmente, com a pendência de julgamento dos embargos de declaração opostos, a Advocacia Geral da União – AGU promoveu a suspensão da Portaria AGU 303/09, que justamente remetia à necessidade de que a administração pública observasse as salvaguardas instituídas no acórdão originário, onde uma vez julgados os embargos, reiterando praticamente a íntegra das salvaguardas, pendeu algumas dúvidas quanto ao revigoramento da referida portaria, mantendo-se, ao nosso ver, inexplicavelmente, a instabilidade quanto à aplicabilidade das salvaguardas definidas pelo STF.
Até que no dia 20 de junho de 2017 foi publicado o parecer 001/17 GAB/AGU, que em redação com fortes méritos de encadeamento lógico, construção jurídica e desdobramento temporal, institui, agora sob a ótica formal, a compulsória observação das salvaguardas instituídas pelo acórdão da pet. 3388/RR, notadamente, pelo efeito da homologação presidencial do instrumento e sua publicação, conforme disciplina do art. 40, §1º da lei complementar 73/93 – "O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento."
Além de tornar vinculante à administração pública a observância as 19 (dezenove) condicionantes estabelecidas no acórdão da pet. 3388/RR – Raposa Serra do Sol – o citado parecer trouxe importante motivação para sua lavra, sobretudo, quanto à vedação de ampliação da terra indígena já demarcada.
Em seu conjunto expositivo, o parecer transcreve referência promovida pelo relator dos embargos de declaração da pet. 3388/RR em que este expõe: "afirmou-se que o instrumento da demarcação previsto no art. 231 da Constituição não pode ser empregado, em sede de revisão administrativa, para ampliar a terra indígena já reconhecida, submetendo todo o espaço adjacente a uma permanente situação de insegurança jurídica", demonstrando que a vedação à ampliação, tem por escopo objetivo a segurança jurídica, tanto da área demarcada, quanto de "todo o espaço adjacente", retirando-o de "uma permanente situação de insegurança jurídica".
De igual forma, ganha relevo mencionar o destaque, igualmente contido no parecer, às iniciativas de dissimulação de ampliação através de expedientes de mera nomenclatura distinta, vez que o instrumento cita expressa passagem em que contextualiza a hipótese de "revisão" da demarcação promovida, pontuando, como acima registramos, que:
"o mesmo não ocorre, porém, nos casos em que haja vícios no processo de demarcação. A vinculação do Poder Público à juridicidade - que autoriza o controle judicial dos seus atos - impõe à administração pública o dever de anular suas decisões quando ilícitas, observado o prazo decadencial de 5 anos (súmula 473/STF; lei 9.784/99, arts. 53 e 54). Nesses casos, em homenagem aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (CF/88, art. 5º, LVI e LV), a anulação deve ser precedida de procedimento administrativo idôneo, em que se permita a participação de todos os envolvidos (lei 9.784/99, arts. 3º e 9º) e do Ministério Público Federal (CF/88, art. 232; lei complementar 75/93, art. 5º, III, e), e deve ser sempre veiculada por decisão motivada (lei 9.784/99, art. 50, I e VIII). Ademais, como a nulidade é um vício de origem, fatos ou interesses supervenientes à demarcação não podem dar ensejo à cassação administrativa do ato.
O que se extrai da pertinente passagem acima transcrita é que admite-se a revisão de atos administrativos demarcatórios, porém, desde que: (I) se observe o prazo decadencial de 5 (cinco) anos previsto no Art. 54 da lei federal 9.784/99, expressamente consignando para aplicação da súmula 473/STF; (II) a anulação deve ser precedida de procedimento administrativo idôneo, em que se permita a participação de todos os envolvidos – Art. 3º e 9º da lei federal 9.784/99, do MPF e com decisão motivada; e (III) não podem ser considerados como motivação para anulação fatos ou interesses supervenientes à demarcação efetivada.
Em outras palavras, o parecer (e o próprio direito aplicável) é explícito tanto quanto à excepcionalidade da revisão do ato de demarcação, como aos pressupostos fundamentais de admissibilidade de tal procedimento, com ênfase em aspectos que igualmente possuem notória finalidade de assegurar a segurança jurídica, como a necessidade e observância do prazo decadencial e do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
Portanto, o parecer 001/2017 AGU/CGU se constitui em marco administrativo legal de fundamental importância para a pacificação das demarcações de terras indígenas, não se constituindo como discricionária sua aplicação, mas de natureza vinculada, compulsória e urgente, especialmente por ser a contextualização e operacionalização formal, de nada mais do que a interpretação da Corte Suprema, guardiã da interpretação dos dispositivos constitucionais, onde se destaca a vedação da ampliação da terra indígena já demarcada como medida própria e adequada para a manutenção da segurança jurídica. Cumpre aos órgãos e entidades da administração pública darem imediato cumprimento às dezenove salvaguardas, agora vinculantes, estabelecidas pela homologação presidencial e publicação do citado parecer, não se limitando, mas, sobretudo, aos procedimentos de efetivação de demarcação inconclusos.
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*Leandro Henrique Mosello Lima é advogado do escritório MoselloLima Advocacia.