Responsabilidade extracontratual do Estado
Patricia Neher*
1. Conceito
Celso Antônio Bandeira de Mello define a responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado como “como a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”2.
O professor Celso Antônio Bandeira de Mello explica que se fala em responsabilidade do Estado por atos lícitos nas hipóteses em que o poder deferido ao Estado e legitimamente exercido acarreta, indiretamente, lesão a um direito alheio.
A origem da responsabilidade estatal se deve ao fato de que os administrados não podem evitar ou minimizar os perigos de dano provenientes do Estado, tendo em vista de que é o próprio Poder Público quem dita o teor e a intensidade de seu relacionamento com a coletividade.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, também, conceitua a responsabilidade extracontratual do Estado como a “obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos”3.
Por sua vez, Hely Lopes Meirelles define a responsabilidade estatal como sendo a “imposição à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las”4.
2. Teorias
A teoria da irresponsabilidade se assentava na idéia de soberania do Estado. Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que em razão desta soberania, o Estado dispõe de autoridade incontestável perante o súdito, exercendo a tutela do direito, daí os princípios de que “o rei não poder errar” (the king can do no wrong; le roi ne peut mal faire) e o de que “aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei” (quod principi placuit habet legis vigorem).
No século XIX a teoria da irresponsabilidade foi superada pelas teorias civilistas. Dá-se a estas teorias o nome de civilistas tendo em vista que se apoiavam nos ensinamentos trazidos pelo Direito Civil, ou seja, eram baseadas na idéia de culpa do agente causador do dano.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro assim distingue os atos de império dos atos de gestão: "os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços"5. Entretanto, atualmente, não é possível distinguir os atos de império dos atos de gestão da Administração Pública por ser impossível dividir a personalidade do Estado.
Surgiu, então, a teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva, ou seja, aceitava-se a responsabilidade do Estado desde que demonstrada a culpa.
Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, responsabilidade subjetiva é “a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento contrário ao Direito – culposo ou doloso – consistente em causar um dano a outrem ou em deixar de impedi-lo quando obrigado a isto”6.
Esta doutrina civilista serviu de inspiração ao artigo 15 do Código Civil de 1916 que dispunha que “as pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”. O artigo 43 do Código Civil de 2002 praticamente repetiu o que dizia a norma anterior: “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”.
Em relação às teorias publicistas, cabe primeiramente mencionar a explicação da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro referente ao famoso caso Blanco, ocorrido em 1873: “a menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua da cidade de Bordeaux, foi colhida por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo; seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência de ação danosa de seus agentes. Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público. Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados”7.
O professor Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt afirma que “foi a partir do famoso arrêt Blanco que se estabeleceu o entendimento de que o Estado teria realmente o dever de reparar danos causados na esfera patrimonial de terceiros, mas com fundamento em princípios de Direito Público (teorias publicistas)”8.
Existem duas teorias publicistas principais: a teoria da culpa do serviço público ou da culpa administrativa e a teoria do risco.
Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt explica que a teoria da culpa do serviço ou da culpa administrativa “desvincula a responsabilidade do Estado da idéia de culpa do funcionário, passando a entender como centro da responsabilidade do Estado a culpa do serviço público. Esta culpa anônima do serviço público compreende três formas, estabelecidas na jurisprudência do Conselho de Estado francês: quando o serviço prestado não funciona (culpa in omittendo), funcionou mal (culpa in committendo) ou funcionou tardiamente”9.
A teoria do risco trouxe a responsabilidade objetiva do Estado, sem discutir se houve dolo ou culpa. Essa doutrina baseia-se no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais, ou seja, os benefícios e prejuízos devem ser repartidos igualmente entre os membros da sociedade.
A idéia de culpa, então, é substituída pela de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. Essa é a teoria do risco, também, chamada teoria da responsabilidade objetiva.
Conforme palavras de Hely Lopes Meirelles, essa teoria “baseia-se no risco que a atividade púbica gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade, impondo-lhe um ônus não suportado pelos demais. Para compensar essa desigualdade individual, criada pela própria Administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, através do erário, representado pela Fazenda Pública. O risco e a solidariedade social são, pois, os suportes desta doutrina, que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz à mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194 da CF de <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="1946”">1946”10.
Para Hely Lopes Meirelles, a teoria do risco compreende duas modalidades: a do risco administrativo e a do risco integral, sendo que para a primeira são admissíveis as situações excludentes de responsabilidade (culpa exclusiva da vítima e força maior); e para a segunda o Estado mantém seu dever de reparar, não importando se houve responsabilidade da vítima.
Interessante, ainda, mencionar o conceito de responsabilidade objetiva de Celso Antônio Bandeira de Mello: “é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. Para configurá-la basta, pois, a mera relação causal entre o comportamento e o dano”11.
A doutrina entende que foi a partir da Constituição Federal de 1946 que ficou consagrada a teoria da responsabilidade objetiva do Estado.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º dispõe que: “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Destarte, as entidades de direito privado prestadoras de serviço público (fundações governamentais de direito privado, empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas permissionárias e concessionárias de serviços públicos) respondem objetivamente por danos causados por seus agentes.
O professor Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt alerta que “em que pese a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva ser adotada pela Constituição Federal, o Poder Judiciário, em determinados julgamentos, utiliza a teoria da culpa administrativa para responsabilizar o Estado em casos de omissão. Assim, a omissão na prestação de serviço público tem levado à aplicação da teoria da culpa do serviço público (faute du service). A culpa decorreu da omissão do Estado, quando este deveria ter agido. Por exemplo, o Poder Público não conservou adequadamente as rodovias e ocorreu um acidente automobilístico com terceiros”12.
A fim de se conseguir a reparação do dano, a vítima deve demonstrar o nexo de causalidade entre o fato ocorrido e o dano. Ademais, a referida legislação constitucional garante o direito de regresso da pessoa jurídica contra o agente causador do dano, desde que este tenha agido com dolo ou culpa.
Há hipóteses excludentes e atenuantes da responsabilidade do Poder Público tais como força maior e culpa exclusiva da vítima.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua força maior como “acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terremoto, um raio”13.
O caso fortuito é dano decorrente de ato humano, de falha da Administração, porquanto, não se pode falar em exclusão de responsabilidade.
Ensina Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt que “existe, entretanto, a possibilidade de responsabilizar o Estado, mesmo na ocorrência de uma circunstância de força maior, desde que a vítima comprove o comportamento culposo da Administração Pública. Por exemplo, num primeiro momento, uma enchente que causou danos a particulares pode ser entendida como uma hipótese de força maior e afastar a responsabilidade estatal, contudo, se o particular comprovar que os bueiros entupidos concorreram para o incidente, o Estado também responderá, pois a prestação do serviço de limpeza pública foi deficiente”14.
Quando há culpa exclusiva da vítima, o Estado não responde; irá responder parcialmente, se demonstrar que houve culpa concorrente do prejudicado.
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1DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 524.
2MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 799.
3DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. Cit., p. 524.
4MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 530.
5DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. Cit., p. 525-526.
6MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit., p. 808.
7DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. Cit., p. 526.
8BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Manual de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 168.
9Ob. Cit., p. 168-169.
10MEIRELLES, Hely Lopes. Ob. Cit., p. 532.
11MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit., p. 811-812.
12BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Ob. Cit., p. 171.
13DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. Cit., p. 530.
14BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Ob. Cit., p. 172.
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*Estudante de direito
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