Licença compulsória e medicamentos no Brasil
Fernando Braune*
A patente é uma via de mão dupla, tendo, de um lado, o titular com o seu direito de excluir terceiros, sem o seu consentimento, de utilizar comercialmente o objeto da patente, enquanto que, do outro, fluem os deveres a serem cumpridos por ele. Por ser um título de propriedade outorgado pelo Estado, a patente deverá retornar à sociedade algo por ela alcançado. Sendo assim, o privilégio exercido pela patente possui um limite além do temporal, não podendo exceder a suas prerrogativas sociais. Para a manutenção do equilíbrio, deverá prevalecer o princípio da proporcionalidade entre esses dois requisitos - a proteção da propriedade e o interesse público.
Esse duplo objetivo encontra respaldo no artigo 5º, inciso XXIX da Constituição Federal brasileira de 1988, o qual estabelece que "a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país". Portanto, o texto constitucional privilegia o uso exclusivo da propriedade, desde que não haja prejuízo ao interesse social e econômico do país, abrindo brechas para se estabelecer, em lei específica, salvaguardas contra possíveis abusos ao direito conferido pela patente, como é o caso da licença compulsória.
Na legislação brasileira, a licença compulsória de patentes é regulada pelos artigos 68 a 74 da Lei de Propriedade Industrial, a Lei nº 9.279, de 1996 (clique aqui), encontrando amparo legal no Acordo TRIPs, na Declaração de Doha, na Convenção da União de Paris (CUP) e, principalmente, no citado artigo 5°, inciso XXIX da Constituição Federal. Nesses casos, para que a licença compulsória seja concedida deverá existir a constatação do não-atendimento ao interesse público, comprovado por documento hábil e contendo fundamentação legal e fática.
Em dois momentos o governo brasileiro entendeu que o interesse público estava sendo prejudicado em detrimento do direito de propriedade. Primeiramente, no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e posteriormente no atual governo Lula, provocando, nos dois casos, redução substancial nos preços dos medicamentos.
A licença compulsória não deve ser, portanto, encarada como uma panacéia para soluções de curto prazo
Não restam dúvidas de que o governo tem respaldo legal para lançar mão da licença compulsória, uma vez constatado o direito de propriedade se sobrepondo ao interesse público. No entanto, levando-se em consideração as responsabilidades do referido grupo, não se tem total clareza a respeito da real motivação para o requerimento da licença compulsória conforme implementada.
Diante da situação levantada, fica a questão: o governo está realmente comprando os medicamentos anti-retrovirais por um preço excessivamente alto ou o problema encontra-se na precária dotação orçamentária do Ministério da Saúde para o programa da aids? Caso esta última premissa prevaleça, não parece haver fundamento legal para a requisição de uma licença compulsória tendo como base insuficiência orçamentária governamental. Nestes casos, os direitos de propriedade não deveriam sofrer limitação em função de problemas internos da administração pública.
A licença compulsória, portanto, não deve ser encarada como uma panacéia para soluções de curto prazo. Embora a matéria a que se tem proposto a licença compulsória no Brasil esteja envolvida por uma aura de emotividade, faz-se necessária isenção na sua interpretação jurídica, aplicando-a dentro de sua legalidade, lembrando sempre que ela é uma exceção ao direito de exclusividade conferido pela patente, trazendo, assim, desdobramentos diretos a quem investiu no desenvolvimento de novos produtos, em prol de toda a humanidade.
* Engenheiro químico e agente da propriedade industrial do escritório Daniel Advogados
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