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O novo processo administrativo sancionador do BCB e da CVM - MP 784/17 - (Um samba bem doido) - Parte II - As infrações (I)

Como se verifica do seu exame, a MP 784/17 apresenta nos diversos incisos do dispositivo acima referido uma relação significativamente extensa de infrações sujeitas às penalidades nela previstas.

24/7/2017

Nesta Parte 2(I) da nossa análise da MP 784/17 daremos início ao estudo das infrações contempladas no art. 3º, delas fazendo um exame crítico.

Como se verifica do seu exame, a MP 784/17 apresenta nos diversos incisos do dispositivo acima referido uma relação significativamente extensa de infrações sujeitas às penalidades nela previstas, evidentemente com o caráter de numerus clausus, dada a sua natureza penal, do que decorre a imposição de lei prévia para o fim do atendimento dos princípios constitucionais de liberdade e de ampla defesa. Como se verifica pela leitura dessa lista, ela encerra algumas condutas abertas, cujo preenchimento depende, por exemplo, do contexto da atividade bancária. Em seguida faremos a reprodução das infrações estabelecidas pela norma em apreço, trazendo as considerações pertinentes.

I - realizar operações em desacordo com os princípios que regem a atividade autorizada

Esses princípios não se encontram sistematizados seja pela doutrina, seja pela jurisprudência, devendo ser pescados pelo intérprete na prática do mercado e da legislação/regulamentação correspondente. Em antigas fontes que falavam de normas de boa prática bancária, de natureza costumeira, muitas delas tornadas em regras formais de direito escrito. O costume, como se sabe, é fonte normativa própria do Direito Comercial. É o caso, por exemplo, do impedimento que têm as instituições financeiras de concentrarem empréstimos em um pequeno número de clientes, desta prática resultando um sensível aumento do seu risco, em vista dos efeitos profundamente negativos do inadimplemento de um ou mais deles quanto ao pagamento de suas obrigações.

Tais operações, realizadas em descumprimento dos princípios citados, podem ter a sua presença identificada em um determinado tipo de operação praticada por alguma instituição financeira ou aferida no conjunto de sua atividade, em qualquer caso de sua prática sempre resultando um aumento significativo do risco daquela, sem a devida contrapartida. Aliás, um deles, precisamente, diz respeito à concessão de operações de crédito despidas de alguma forma eficaz de garantia.

II - realizar operações ou atividades vedadas, não autorizadas ou em desacordo com a autorização concedida

Considerada a imprecisão do tipo, esta situação foi resolvida no parágrafo 2º da MP em questão, segundo a qual, o CMN disciplinará no que couber, o disposto no inciso II do caput, relativamente às instituições financeiras e demais instituições supervisionadas pelo BCB e disporá inclusive a respeito das hipóteses em que as operações praticadas por essas instituições serão consideradas empréstimos ou adiantamentos vedados, para os fins da legislação em vigor.

Por outro lado, o parágrafo terceiro do mesmo artigo estabeleceu que é vedado às instituições financeiras: (I) emitir debêntures e partes beneficiárias; e (II) adquirir bens imóveis não destinados ao próprio uso, exceto os recebidos em liquidação de empréstimos de difícil ou duvidosa solução ou quando expressamente autorizados pelo Banco Central do Brasil, observada a norma editada pelo Conselho Monetário Nacional.

As proibições acima decorrem da natureza da atividade bancária fazendo parte de sua história no direito brasileiro, considerada a sua incompatibilidade com a natureza de tal atividade. A emissão de debêntures, que se efetua para resgate no longo prazo, caracteriza um descasamento claro de fluxo de caixa, em detrimento da liquidez da instituição financeira que a pratica. Por outro lado, quando um banco aumenta o nível da propriedade de bens imóveis que não são destinados ao seu próprio uso, ele diminui correspondentemente a sua liquidez, com prejuízo operacional e aumento do risco de inadimplência.

III - opor embaraço à fiscalização do Banco Central do Brasil

Com a finalidade de não deixar o destinatário da norma em situação de desconforto quanto ao seu entendimento e alcance, o parágrafo primeiro do art. 3º da MP 784/17 contempla uma definição expressa:

"Constitui embaraço à fiscalização, para os fins deste Capítulo, negar ou dificultar o acesso a sistemas de dados e de informação e não exibir ou não fornecer documentos, papéis e livros de escrituração, inclusive em meio eletrônico, nos prazos, nas formas e nas condições estabelecidos pelo Banco Central do Brasil, no exercício da atividade de fiscalização que lhe é atribuída por lei".

Nota-se uma preocupação do legislador no sentido de fazer expressa referência a sistema de dados e de informação, considerando-se a completa informatização da atividade bancária e o fato reconhecido de que fraudes têm sido sistematicamente praticadas no seio de instituições financeiras com base em programas deliberadamente preparados para tal finalidade, que apresentam recursos voltados para esconder do BCB a ilicitude de operações. Nota-se, a propósito, que o conceito de documento evoluiu na era da informática para aquele de natureza puramente eletrônica, a par de sua consubstanciação eventualmente paralela, mas não necessária em suporte de papel.

IV - deixar de fornecer ao Banco Central do Brasil documentos, dados ou informações cuja remessa seja imposta por normas legais ou regulamentares

Esta norma explica-se por si mesma.

V - fornecer ao Banco Central do Brasil documentos, dados ou informações incorretos ou em desacordo com os prazos e as condições estabelecidos em normas legais ou regulamentares

Evidentemente o reconhecimento dessas duas práticas como infração decorre do prejuízo experimentado pelo BCB quanto ao mérito do exame dos documentos de que necessita para o exercício da fiscalização das instituições financeiras, bem como da oportunidade em que esse trabalho é feito, que não pode ser prejudicado por decurso de tempo incompatível com a eficácia da atuação daquela Autoridade Monetária.

VI - atuar como administrador ou membro de órgão previsto no estatuto ou no contrato social das pessoas mencionadas no caput do art. 2º sem a prévia aprovação pelo Banco Central do Brasil

A posse no cargo de administrador ou na função de conselheiro fiscal depende de análise prévia do currículo da pessoa que tenha sido eleita para tanto, de forma a se afastar alguém cuja conduta passada não tenha sido compatível com o comportamento de bom administrador ou de conselheiro eficiente. Ou ainda, aplica-se à pessoa que não conhece a atividade bancária e que não pode nela atuar como um curioso, situação que criaria riscos para a própria instituição e para o mercado. Em princípio uma pessoa que comece o exercício das atividades em questão antes de ser aprovada pelo BCB acarreta certo nível de risco, desconhecido, para a instituição financeira que assim permite.

VII - não adotar controles destinados a conservar o sigilo de que trata a Lei Complementar 105, de 10.01.2001

A LC 105/01 estabelece a obrigatoriedade das instituições financeiras de conservarem sigilo em suas operações ativas e passivas e nos serviços por elas prestados, regulando a matéria. Neste sentido, a não adoção de controles que permitam o cumprimento dessa obrigação – do que decorreria o perigo de extravasamento das informações protegidas em benefício de terceiros que a elas não poderiam ter acesso – corresponde à infração objeto do presente inciso.

Evidentemente o BCB precisará muitas vezes averiguar dois pontos sobre a questão: (I) se existem controles destinados ao fim em vista; e (II) se tais controles são eficientes.

VIII - negociar títulos, instrumentos financeiros e outros ativos, ou realizar operações de crédito ou de arrendamento mercantil, em preços destoantes dos praticados pelo mercado, em prejuízo próprio ou de terceiros

Essa norma revela-se completamente equivocada. Isto porque, em primeiro lugar, quando se refere preços destoantes, considerando-se que o mercado financeiro atua em regime de liberdade, inclusive no tocante à fixação das taxas de juros das operações praticadas pelas instituições financeiras. Em segundo lugar porque o perfil operacional das diversas instituições financeiras não é objetivo, dependendo da organização interna de cada uma delas; do porte, da natureza dos seus clientes; da qualidade e do montante de cada operação. Um banco não funciona como uma máquina que monta carros em série. Cada operação deve ser considerada em sua individualidade e na individualidade de cada cliente, pois os perfis de risco não são construídos segundo parâmetros matemáticos.

Em função dos custos diferenciados do funcionamento de cada instituição financeira uma operação determinada pode acarretar prejuízo para uma e lucro para outra.

Por outro lado, em certos momentos de sua atividade, pode ser necessário que uma instituição financeira, por exemplo, venda uma carteira de títulos a preços negativos, como forma de escapar de um acréscimo de riscos ou de eliminar uma fonte que os criou para poder retomar sua atividade normal. Essa prática – não sistemática, é claro – não pode ser considerada uma infração, dela tendo a MP 784/17 estabelecido um efeito completamente distorcido.

E deve ser observado que nas vezes em que instituições financeiras passam a operar de forma sistematicamente prejudicial ao seu patrimônio, o verdadeiro problema não está na ilicitude eventual que nessa norma se cuida, mas de um desequilíbrio patrimonial e operacional muito mais grave que a está levando à insolvência, da qual procura fugir pela adoção de medidas suicidas. Como diria alguém, uma ou mais operações danosas em tal cenário não constituem o fim, mas o meio.

IX - simular ou estruturar operações sem fundamentação econômica, com o objetivo de propiciar ou obter, para si ou para terceiros, vantagem indevida

A ausência de fundamentação econômica deve ser entendida como relativa a operações que, pela sua própria estrutura, geram prejuízos e não lucro. E isto deve ser reconhecido como prática sistemática. Além disto, neste ponto de forma adequada, o legislador teve em vista a presença de dolo direto, caracterizado pela vontade consciente, na pessoa do agente, de praticar uma conduta determinada, voltada para alcançar um objetivo pretendido.

Significa dizer que o tipo penal administrativo em vista é formado pela soma necessária dos dois elementos mencionados no parágrafo anterior.

Tenha-se em conta que as duas ações constantes do tipo penal/administrativo examinado (simular ou estruturar) não representam em si mesmas um ato danoso que tenha sido realizado, pois elas podem remanescer apenas no plano de uma pretensão que não venha a ser concretizada por meio de uma operação específica que não apresente fundamentação econômica. O próprio perigo de dano não está presente de forma concreta, mas tão somente eventual. Finalmente, essa simulação ou estruturação podem ter sido realizadas com o fim do estudo da criação de uma nova modalidade operacional e que tenha sido abortada precisamente pela falta da base econômica que seria exigível.

O que se conclui é que o tipo penal/administrativo vertente foi elaborado de forma não precisa e, como outros nessa mesma MP, sem estar revestido de boa técnica legislativa, o que o torna condenável.

X - desviar recursos de pessoa mencionada no caput do art. 2º ou de terceiros

As pessoas mencionadas no dispositivo acima são o BCB, a CVM e as empresas integrantes do SPB. O tipo aqui presente foi elaborado de forma hermética, necessitando de um exercício de interpretação extensiva e integrativa, que são vedadas pelo direito penal, o que também se aplica ao caso do processo administrativo sancionador. De outro lado, a referência a terceiros é completamente indefinida.

Estaria implícito no reconhecimento da infração em causa que, de alguma forma, no mercado financeiro, alguém desviou recursos integrantes do patrimônio das vítimas mencionadas nesse inciso. Acrescente-se, como condição necessária que o sujeito ativo atue no âmbito da competência do BCB para efeito da instauração do processo administrativo sancionador, na qualidade de instituição financeira ou de pessoa a ela equiparada (caso do BCB). Se um banco desviou recursos de um cliente (terceiro) estaria configurado o tipo aqui tratado, o que cria uma dificuldade operacional para a atuação da Autoridade Monetária. Neste plano, colocam-se duas possibilidades.

Na primeira, a caracterização do aludido desvio de recursos seria reconhecida pelo BCB, que atuaria no plano exclusivo da instituição financeira e dos seus administradores, sem que esse fato aproveitasse ao cliente prejudicado, entre outras razões, tendo em vista o sigilo que caracteriza as operações bancárias. Não teria o BCB competência para obrigar o banco a restituir os recursos cujo desvio entendeu existente. Isto porque, eventualmente, a instituição financeira poderia levar para o Judiciário uma discussão sobre o entendimento a respeito do BCB, contestando-o.

Na segunda, o BCB teria de aguardar eventual comprovação de referido desvio em ação penal ou civil própria para poder, por sua vez, aplicar a pena adequada nos termos da MP 784/17. Tomar essa medida isoladamente do contexto mencionado corresponderia à usurpação de competência do Poder Judiciário e poderia resultar em um resultado diferente no plano administrativo, de um lado, e Judiciário do outro. Mas neste caso, a atuação do BCB se revelaria tardia considerado o longo lapso de tempo ocorrido entre a constatação do desvio e o seu reconhecimento em sentença judicial.

Como se verifica, trata-se, portanto, de mais um tipo defeituoso na MP 784/17 e, dessa forma, revelar-se-á ineficaz.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio de escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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