Migalhas de Peso

A Cracolândia e o “episódio do arremesso de anão”

A principal função da dignidade humana é uma (re)leitura do direito e valoração de plexo de direitos individuais. É não nos esquecermos do que é um ser humano.

19/7/2017

A discussão sobre o consumo de drogas na região central de São Paulo, conhecida como cracolândia tomou conta do noticiário e redes sociais.

Como não sou especialista na área de saúde, nosso comentário busca ao menos enquadrar a triste realidade fática às normas de regência da dignidade da pessoa humana – ainda que não denominada propriamente sob tal nomenclatura conceitual nos meios de comunicação.

A celeuma se inicia com a ofensiva da Prefeitura de São Paulo que resolveu enfrentar o problema de forma direta e trouxe à tona vasta discussão sobre a liberdade, extensão e efetividade dos direitos individuais daquele que se encontram em estado adicção química – termo aqui empregado no sentido de dependência de drogas ilícitas – principalmente quanto à legalidade de internações compulsórias.

O direito de uma forma geral, tem a missão de regular a vida em sociedade, e a discussão que se pretende brevemente enfrentar traz alguns aspectos jurídicos sobre o tema, especialmente no que concerne a dignidade da pessoa humana e sua projeção no âmbito comunitário, aquele que excede a pessoa propriamente dita.

A França como se sabe, foi prodigiosa no desenvolvimento, interpretação e progressão dos direitos fundamentais, destacando-se inclusive pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em 1789, e que deu cores interpretativas a Constituições posteriores, inclusive mundo a fora; e na própria França teve seu texto incorporado à CF subsequente. Trouxe expressamente o termo liberdade como fundamento1.

É neste espectro da liberdade frente à atual interpretação da dignidade da pessoa humana – que nunca demais dizer é fundamento da república, cravado no artigo 1 inciso III da CF – que se pretende traçar um debate digno, franco e sem nenhum tipo de viés político ideológico.

A mesma França que produziu avanços interpretativos em termos de direitos humanos e sua interpretação normativa; igualmente produziu episódios que são objetos de estudos na colidência entre direitos igualmente sensíveis do ponto de vista constitucional, e pretendemos desenvolver um breve pensar sobre o episódio que ficou conhecido como “arremesso de anão” e sua correlação interpretativa quanto ao direito daqueles que tem se drogado na Cracolândia.

O celebre episódio do “arremesso de anão” é tratado por boa parte da doutrina especializada com um marco a regular as liberdades individuais, uma vez que o Sr. Manuel Wackeneim pretendia – utilizando-se de sua liberdade – atuar como objeto a ser arremessado e assim valer-se de sua condição física para tal atividade em episódio a realizar-se na modalidade de jogo em uma casa noturna.

Tratava-se de uma competição instaurada que consistia no arremesso – consentido –de um portador de nanismo por outros frequentadores da casa que não detinham a condição física de anões, e sagrava-se ganhador quem arremessasse o “objeto” mais longe.

Em tal episódio a autoridade municipal proibiu a prática sob dois argumentos: i) o ato feria a dignidade da pessoa humana; e ii) havia sério risco à ordem pública.

Levada à Julgamento por iniciativa do interessado, foi confirmada a proibição e mais tarde, igualmente confirmada pela Comissão da Nações Unidas para os Direitos Humanos, assim tornando-se importantecase para os estudos constitucionais.

Vejam que em termos de direitos individuais há certa proximidade, no quadro atual da chamada “Cracolândia”. Há basicamente a discussão sobre a liberdade dos usuários de drogas – inclusive em utilizar tais drogas. E eventual lesão à dignidade humana em eventual internação compulsória.

Em ambos episódios, é necessário partir-se da premissa constitucional de qual seria o limite para tais direitos e sua extensão frente à sociedade e ordem pública.

A dignidade da pessoa humana em muitos casos é encarada no direito brasileiro como uma ferramenta de interpretação de outros direitos individuais – vide discussões sobre dano moral, prisões preventivas alongadas, utilização de algemas, etc – e, tendo na maioria das vezes outro direito correlato como liberdade, imagem, propriedade, de forma mais diretamente atingida, perde, de certa forma a finalidade normativa e ganha contornos meramente interpretativos. E em minha visão tem-se a chance no Brasil de pela primeira vez, promovermos uma discussão real sobre a extensão da dignidade da pessoa humana.

O ministro Luis Roberto Barroso, produziu em 2010 estudo2 primoroso sobre o tema, como forma de trabalho para discussão pública sobre a questão com o Juiz da Suprema Corte Norte Americana Antonin Scalia, que foi reconhecido Magistrado e grande perda ao direito mundial com seu falecimento no ano de 2016.

Imagino que a genialidade desenvolvida no referido artigo tenha sido aguçada frente ao desprezo dos juristas norte-americanos pelo chamado “princípio” da dignidade humana, hoje já mitigada por alguns julgados recentes, contudo, ainda vista com muita reserva especialmente pela origem da constituição norte-americana, todavia, este não é ponto central de nossa reflexão.

Assim como no “arremesso de anão”, tem-se no caso da “cracolância” a necessidade estatal de ingressar na esfera individual, ainda que o indivíduo queira a todo custo submeter-se a situação de drogar-se. Este o cerne da reflexão.

Como sempre declinava o Ministro Aposentado do STF Carlos Ayres Britto, ainda em seu período de brilhante judicatura, em que, afirmava não haver “direito individual absoluto” temos que a dignidade da pessoa humana é a justificativa para ações como aquela havida na “Cracolândia” e não o contrário; a liberdade, por vezes é mitigada, especialmente lhe faltar a seu agente critérios psíquicos para exerça-la em sua plenitude . Explico:

Todo ser humano é dotado de direitos individuais sensíveis, independentemente da situação em que se encontrem; aliás deve-se dizer que em condições de debilidade, há de ser aumentada a proteção estatal aos direitos que visem resguardar a vida, liberdade, saúde e integridade moral dos jurisdicionados.

É evidente que os dois episódios – arremesso de anão e internação compulsória de drogados ou adictos da cracolância – tem no seu espectro a capacidade do agente em decidir sobre o que fazer com seu corpo, sentimentos, etc.

No caso francês fica evidente que embora tivesse plena e inequívoca ciência de sua condição física, permitir a ocorrência de tal episódio traria efeitos nefastos a todos aqueles seres humanos que ostentam a condição física do nanismo. De mesma sorte deixar que o adicto permaneça a utilizar drogas diuturnamente sob a argumentação de sua liberdade individual, é permitir a escravidão da alma de tais pessoas pelo tráfico de drogas, e ainda permitir a proliferação do caos social nos locais em que instaladas tais praças de consumo.

Diante de tal afirmação, pretende-se evidenciar que defender a liberdade de usuários de drogas de assim permanecerem não se enquadra em uma leitura técnica de defesa da dignidade da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana ao contrário do que doutrina bastante abalizadadefende não é um fim na individualidade do ser, mas visa regular os valores mínimos de dignidade do ser humano enquanto agente de destinação das normas; tendo, portanto, uma matriz de proteção do mínimo exigível para o exercício de uma “vida boa”, ainda que em colidência a alguma individualidade de forma momentânea.

Arremata nossa breve reflexão o fato da existência de critérios da dignidade da pessoa humana como valor comunitário, que nas palavras do ministro Luis Roberto Barroso: “Em outras palavras: a dignidade, por essa vertente [da dignidade da pessoa humana como valor comunitário], não tem na liberdade seu componente central, mas, ao revés é a dignidade que molda o conteúdo e o limite da liberdade.”3

Deve-se se fazer o alerta que a dignidade da pessoa humana como valor comunitário, não é um cheque em branco para governos, e sim uma forma de aquilatar valores de convivência harmônica.

A existência de pontos de venda de drogas, com lixo por todos os lados, traficantes infiltrados tornando seres humanos escravos de seu próprio vício e lucrando milhões com sua atividade ilícita, e, ainda a impossibilidade de acesso de boa parte da população a pontos públicos de circulação são sem dúvidas medidas que autorizam a intervenção pública, e não nos parecem “valores compartilhados” por uma sociedade sóbria e digna.

A liberdade individual, nestes casos cede, ainda que momentaneamente à dignidade da pessoa humana, e basta perguntar a alguém que tenha conseguido livrar-se da dependência química se há alguma dignidade em permanecer na visível condição de zumbi e escravo do crack. A proteção – ainda que com casos de internação compulsória – protege e efetiva, o cuidado, e retomada da capacidade de autodeterminação dos que se encontram na condição de adictos.

Defender a liberdade ou autonomia de vontade dos usuários, sem a plenitude de sua capacidade de decidir, movido exclusivamente pelo desejo do consumo de drogas é ignorar o núcleo essencial da escolha, qual seja a capacidade de por si praticar sua valoração moral e autodeterminação; tais núcleos são afetados pelo uso contínuo e dependência química.

Deixar que mulheres se submetam muitas vezes a estupros, aviltando sua intimidade em troca de uma pedra de crack; deixar crianças em meio a todo estado de caos instaurado em razão da situação em debate não parece ser uma decisão alinhada com direitos caríssimos do ponto de vista constitucional.

Por derradeiro, seja no episódio do arremesso de anão, ou ainda, naquele vivenciado pela necessidade de internação compulsória daqueles que frequentem como usuários a cracolândia, a principal função da dignidade humana é uma (re)leitura do direito valoração de plexo de direitos individuais. É não nos esquecermos do que é um ser humano. É, não nos deixarmos esquecer que todos têm o direito de pensar sem a torpeza mental trazida pelas drogas, especialmente o crack; para que “limpos” de pensamento, possam decidir sobre seus próprios desígnios sem ter sua vida pautada pela conveniência de um traficante. Noutras palavras deixar se serem escravos, pela libertação que só a dignidade, em sua acertada leitura axiológica pode trazer.

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1 Dallari, Dalmo de Abreu. A Constituição na Vida dos Povos; , Saraiva, página 212.

2 Barroso, Luiz Roberto, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos mínimos e Critérios da Aplicação. (acessado no site do autor em 21 de Junho de 2017: clique aqui.

3 idem à nota anterior. O autor faz referência à citação de Letícia de Campos Velho Martel. Direitos Fundamentais indisponíveis: os limites e os padrões do consentimento para a autolimitação do direito fundamental à visa.

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*Aílton Soares de Oliveira é advogado em São Paulo e Brasília. Consultor Jurídico.

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