Colaborador ou delator?
Sempre que há conflito armado em determinado país, os comentaristas de plantão se dividem em duas correntes. Os defensores do status quo qualificam seus opositores como terroristas. Os simpatizantes do grupo que luta pelo poder referem-se aos integrantes do movimento como guerrilheiros. São todos combatentes. Porém, dependendo do narrador, teremos um guerrilheiro ou um terrorista.
Segundo alguns, o mesmo ocorreria no âmbito da colaboração – ou delação – premiada. Dependendo de quem trata do assunto, o criminoso será um colaborador ou um delator. Os que veem o novo regime legal com restrição optariam pela expressão "delação premiada", que remeteria ao dedo-durismo condenado nos bancos escolares. Já os que dão por legítimo o procedimento prefeririam "colaboração premiada", justo para evitar a carga pejorativa que recai sobre um dedo-duro, ou "delator". "Colaborador" soaria mais suave.
Obviamente, essa polêmica, que se desenrola no campo da semântica, sem consequências práticas, não chega a ser importante, mas pareceu válido aqui mencioná-la, a título de curiosidade.
Um novo ramo do direito empresarial
No aspecto jurídico, onde abundam efeitos concretos, trava-se um debate ainda embrionário sobre o novo instituto, com as atenções centradas em sua face criminal. Poderia o Judiciário entrar no mérito do acordo de colaboração premiada firmado pelo Ministério Público com o criminoso? Poderia o relator do processo judicial homologar, em caráter definitivo, o acordo de delação premiada, ou a decisão dependeria de convalidação pelo respectivo órgão colegiado? Em que circunstância a delação ou colaboração premiada, uma vez homologada pelo relator, pode ser revista pelo colegiado, ao fundamento da ilegalidade de suas cláusulas?
Atinentes ao processo penal, essas são questões cruciais para a sedimentação do procedimento. E, talvez por isso, já estejam em estágio avançado de reflexão, nos debates travados no STF. Aliás, há poucos dias, um de seus julgados, ainda pendente de publicação, conferiu ao relator o poder de homologar, monocraticamente, um acordo de colaboração premiada. Resta saber se a decisão será fonte de formação de uma esperada jurisprudência pacífica. O tempo melhor dirá.
O certo, por ora, é que o estudo da política brasileira de combate à corrupção, em perspectiva ampliada, revela uma longa jornada a transcorrer, na busca de uma legislação orgânica, que proporcione segurança jurídica às diferentes partes enredadas com o infamante crime. E o caminho rumo à estabilidade do sistema passa por outro instrumento, muito em voga, mas extremamente mal regulado e ainda pouco discutido nos Tribunais, a saber: o "acordo de leniência", que cuida da responsabilidade civil e administrativa das empresas envolvidas em atos de corrupção.
Para iluminar o caos que impera na área, imagine-se um ato de corrupção relacionado a uma fraude licitatória. Pois uma única ocorrência dessa natureza atrai um arsenal legislativo, com múltiplas regras sobre ressarcimento de danos e imposição de multas milionárias e bilionárias, entre outras penalidades, como a decretação da inidoneidade da empresa para contratar com o poder público.
Segundo a legislação, ou mesmo com base em interpretações ousadas da legislação, estão legitimados a manusear essas poderosas regras, de forma independente, órgãos como MPF, AGU, TCU, CGU, CADE, para falar apenas da esfera federal, além das estatais lesadas, entre outras autoridades, inclusive estaduais e municipais.
Na verdade, um mesmo fato pode suscitar a incidência da Lei de Improbidade Administrativa, da Lei Orgânica do TCU, da Lei de Licitações e Contratos, ou da Lei de Defesa da Concorrência, sabendo-se que o CADE considera que toda licitação é um mercado relevante, a desafiar sua atuação sempre que concernir a cartel. Last but not least, teríamos a recente Lei Anticorrupção.
Nesse cenário multifacetado, o problema maior que se apresenta é o da empresa que faz acordo de leniência com o MP. Mesmo homologado no Supremo Tribunal Federal, tal acordo não afastará as penalidades que lhe podem ser aplicadas pela CGU, ou pelo CADE, segundo suas respectivas legislações. Da mesma forma, acordos firmados com a CGU ou com o CADE não impediriam a ação do MP contra a empresa envolvida na corrupção, relativamente ao mesmo fato julgado pelos diferentes órgãos.
Assim, por exemplo, a Lei Anticorrupção confere à CGU a competência para aplicar penalidades nos casos que especifica. Idem quanto ao TCU e o Ministério Público de Contas. Igualmente, quanto ao CADE, que age sem subordinação ao membro do MPF com assento no Conselho. Já no tocante ao Ministério Público... Bem, essa é outra história. Tudo dependerá da aceitação, ou não, de um arrojado processo hermenêutico, que se socorre da analogia para reputar derrogado um preceito legal que expressamente proíbe que o MP celebre acordos do gênero. Veremos a peculiar questão logo adiante.
Como lidar com o emaranhado
Realizou-se, dia desses, o julgamento no TCU de um cartel submetido à Operação Lava Jato. As empresas estavam todas amarradas a delações premiadas de seus dirigentes e a provas complementares que tornavam induvidosa a ocorrência dos crimes. Parte das empresas cartelizadas havia celebrado acordo de leniência com o Ministério Público Federal, contemplando ressarcimento à estatal lesada e o cumprimento de penalidades mitigadas. As remanescentes não contavam com o escudo de um acordo dessa natureza.
O TCU, avaliando o caso e o conteúdo do acordo de leniência, decretou a inidoneidade de todas as empresas do cartel. Com relação às que não tinham firmado acordo, aplicou a pena máxima, de cinco anos de proibição de contratar com o poder público. Quanto às demais, a pena – também de impedimento a contratações governamentais – compreendeu período inferior, justamente por terem celebrado o acordo de leniência com o MPF.
Curioso notar que, por ocasião do julgamento, o relator ponderou não fazer grande diferença impor uma pena de inidoneidade de cinco ou de dois anos a empresas que dependem, para a sua sobrevivência, da prestação de serviços ao poder público. Equiparou as hipóteses à pena de morte da pessoa jurídica, diferindo, uma da outra, apenas no modus operandi da execução. Parte das empresas seria morta com rajadas de metralhadora; cada uma das outras, por um tiro de revólver calibre vinte e dois.
Metáfora afora, o relator reconheceu a dificuldade em que se encontrava, eis que a Lei Orgânica do TCU não prevê acordo de leniência, possuindo, ao revés, regra expressa no sentido de que, comprovada a fraude à licitação, o Tribunal de Contas deverá decretar a inidoneidade da empresa.
Recorrendo, então, ao que seria uma tendência do direito brasileiro, o Tribunal concluiu que as empresas que firmaram o tal acordo teriam suas penas suspensas, devendo promover, em certo prazo, um "recall" (sic), consistente na subscrição de um termo aditivo a seus acordos com o MPF, para incluir no respectivo instrumento o valor arbitrado pelo TCU para ressarcimento de danos, com renúncia ao direito de recorrer a juízo contra os termos do aditivo. E concluiu: uma vez paga a indenização, a pena administrativa seria redimida.
Significa dizer que as empresas celebraram acordo de leniência com o MPF, mas o acordo não resolveu a situação junto ao TCU. Afinal, não fosse a interpretação benevolente que conferiu à sua legislação, o Tribunal teria decretado a inidoneidade das empresas, com ou sem acordo com o Ministério Público Federal.
Mas não é só. O próprio acordo com o MPF foi celebrado para garantir o ressarcimento dos cofres públicos e afastar penalidades previstas na Lei de Improbidade. Todavia, essa lei contém norma explícita que veda a transação, o acordo ou a conciliação nas respectivas ações de competência do Ministério Público.
Para lidar com essa realidade, o aludido acordo foi firmado a partir de uma engenhosa interpretação da lei que instituiu a colaboração premiada. A tese é a seguinte: se a lei da delação premiada permite que, em acordo com uma pessoa física, o MP renuncie a seu direito de processar criminalmente o indivíduo, em troca de informações valiosas, não seria razoável concluir-se pela vedação à possibilidade de o MP realizar acordo com a pessoa jurídica envolvida, para reduzir sua penalidade, também em troca de informações úteis. Com essa construção, reputou-se tacitamente derrogada a proibição à transação estabelecida na Lei de Improbidade Administrativa.
Eis a regra da Lei de Improbidade Administrativa que teria sido derrogada pela Lei da Delação Premiada: "art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. § 1º. É vedada a transação, acordo ou conciliação nas ações de que trata o caput."
Sintetizando, o TCU liberou algumas das empresas cartelizadas da declaração de inidoneidade, desde que assinassem termo aditivo ao tal acordo com o MPF, firmado com base na revogação tácita do citado § 1º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa. E, para tanto, desconsiderou o teor do art. 46 de sua Lei Orgânica, que assim estabelece: "Art. 46. Verificada a ocorrência de fraude comprovada à licitação, o Tribunal declarará a inidoneidade do licitante fraudador para participar, por até cinco anos, de licitação na Administração Pública Federal."
Há mais. O acordo com o MP também não impede que a CGU decrete a inidoneidade das empresas do cartel, exija perdas e danos e imponha multas e outras penalidades com fundamento na Lei Anticorrupção. Adicionalmente, o acordo com o MP não constitui óbice a que o CADE também aplique penalidades e deveres ressarcitórios previstos em sua legislação específica.
De outro lado, nenhum desses acordos impediria que as empresas lesadas ajuizassem ações de perdas e danos, observando-se que os órgãos aqui mencionados não procedem a uma efetiva liquidação de danos, recorrendo, em regra, ao arbitramento da indenização, donde surge outra perplexidade: se o pagamento da indenização é pressuposto para o acordo (e essa regra está expressa na Lei Anticorrupção), o que ocorrerá com ditos acordos se a empresa lesada, ao liquidar o dano, em concreto e minuciosamente, apontar quantia maior. Os acordos perderiam efeitos?
Por fim, pensemos nos minoritários das empresas envolvidas, quer das sociedades de economia mista prejudicadas, quer daquelas signatárias dos acordos de leniência. Segundo a legislação, nenhum dos citados acordos obstaria o ajuizamento de ações indenizatórias pelos lesados, ou por associações de classe pertinentes, podendo-se pleitear, em ação civil pública, até eventuais danos morais coletivos.
Em suma, só há um jeito de lidar com esse emaranhado de leis, multas e legitimados a pleitos indenizatórios e punitivos: reescrevendo a legislação, para conferir-lhe organicidade, de forma a preservar a função social das empresas, que geram empregos, tributos e circulação de riquezas, a ninguém interessando a quebra dessas organizações, ainda que se deva exigir o efetivo afastamento dos sócios e dirigentes envolvidos em atos de corrupção.
O segredo da solução do imbróglio talvez esteja na escolha do órgão que celebrará o superacordo oponível aos demais. Afinal, parece impróprio pretender que todos assinem o instrumento. E, pela leitura dos jornais, contendem no momento pelo superpoder o MP e a CGU.
Trata-se, evidentemente, de uma luta política, que precisará ser enfrentada. De fato, o equacionamento jurídico do assunto não demanda grandes elaborações. Bastaria, entre outros ajustes pontuais, a revogação expressa do § 1º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa e, bem assim, a alteração do art. 30 da Lei Anticorrupção, onde poderia ser definida a autoridade que concentraria os poderes para celebrar o acordo de leniência de efeitos plúrimos.
Atualmente, esse artigo tem a seguinte redação:
"Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e
II - atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC instituído pela Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011."
A Medida Provisória 703, de 2015 sugeriu a seguinte alteração para esse dispositivo:
"Art. 30. Ressalvada a hipótese de acordo de leniência que expressamente as inclua, a aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:
I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 1992;
II - atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 1993, ou por outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no que se refere ao Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC, instituído pela Lei nº 12.462, de 2011; e
III - infrações contra a ordem econômica nos termos da Lei nº 12.529, de 2011."
Nesse caso, a Medida Provisória – que merece um escrito à parte – optou pela concentração do poder na CGU. Poderia tê-lo feito no MP. Como disse, é uma questão de política legislativa.
Essas, e muitas outras reflexões, precisam ser feitas. Um exemplo final: por que a legislação só admite acordo com a primeira empresa que procura a autoridade capaz de assinar a leniência? E se o MP ou a CGU ou o CADE acreditar que deve fazer o acordo com a segunda que chegar? Não teriam esses órgãos, como tutores do interesse público, legitimidade para decidir entre fazer ou não fazer o acordo?
Nota sobre a obrigação solidária de controladoras, controladas e coligadas
A Lei Anticorrupção cria responsabilidade solidária entre a empresa beneficiária do ato de corrupção e suas controladoras, controladas e coligadas. Regime análogo – mas diferente – já existia na Lei do CADE.
Como se sabe, a propósito, a Lei Anticorrupção instituiu entre nós a responsabilidade civil e administrativa objetiva da pessoa jurídica, que passou a responder pela prática do ato de ilícito de um indivíduo (sócio, dirigente, empregado ou terceiro) sempre que se beneficie de seus efeitos, independentemente de culpa ou dolo da pessoa jurídica. Pois além da responsabilidade objetiva, a Lei estabeleceu, também, a referida responsabilidade solidária.
Essa solidariedade legal, porém, dá origem a uma série de dúvidas que comprometem, agora também sob esse outro ângulo, a segurança jurídica de quem precisa recorrer ao sistema anticorrupção brasileiro. Eis algumas das indagações geradas pelo novel diploma legal:
- primeira: a responsabilidade solidária entre empresas de um mesmo grupo econômico pode ser afastada no acordo de leniência. Em caso afirmativo, o que ocorrerá se o acordo for rescindido por inadimplemento, já tendo as responsáveis solidárias sido alienadas a terceiros de boa fé?
- segunda: se a própria empresa beneficiária do ato de corrupção for alienada a um terceiro, este – como o novo controlador – assumirá a condição de devedor solidário da dívida ainda pendente de pagamento? E o antigo controlador, remanescerá como devedor solidário, ou será substituído pelo novo controlador?
- terceira: qual a ratio da inclusão, entre os coobrigados, da coligada da empresa beneficiária da corrupção? Observe-se que, para os fins da lei sob análise, "diz-se coligada a sociedade de cujo capital outra sociedade participa com 10% (dez por cento) ou mais do capital da outra, sem controlá-la", conforme art. 1.099 do Código Civil, aplicável à espécie por força do art. 46 da Lei 11.941, de 2009. Ora, definitivamente, não parece justo com o controlador dessa empresa - inteiramente estranho ao grupo da beneficiária da corrupção - que sua controlada seja responsabilizada por ato de um minoritário, que nenhuma ingerência tem em sua gestão, por definição da própria lei, ao utilizar a expressão "sem controlá-la".
Há diversas outras perplexidades promovidas pela Lei Anticorrupção, ao tratar, por exemplo, de consórcio de empresas ou de incorporações societárias, entre tantas outras, as quais devem ser reservadas para comentários em uma futura oportunidade.
Conclusão
Urge a revisão de toda a legislação de combate à corrupção no direito brasileiro, para que se lhe dê a necessária organicidade, hoje inexistente. A medida deve ser adotada como forma de garantir a função social da empresa.
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*José-Ricardo Pereira Lira é advogado e sócio do escritório Lobo & Ibeas Advogados.