Normalmente, esses contratos de comodato são inseridos no corpo do próprio instrumento locatício ou mesmo em anexos contratuais.
Em razão das dimensões reduzidas deste artigo, analisaremos recente decisão proferida pelo TJ/RJ sobre a matéria, tecendo, ao final, breves considerações acerca do assunto.
No último dia 21 de junho, a 18ª Câmara Cível do TJ/RJ deu provimento à apelação interposta por um restaurante – localizado no Rio Design Barra (RDB) –, reconhecendo que o comodato pactuado entre as partes era, na verdade, uma locação travestida.
Em 2000, o RDB convidou alguns restaurantes para compor o mix gastronômico do estabelecimento recém-inaugurado. Dentre os participantes, estava o Kotobuki, tradicional restaurante de culinária japonesa.
O contrato de locação pactuado entre as partes previa um aluguel mínimo mensal e um percentual sobre o faturamento do estabelecimento, caso o respectivo montante superasse o valor mínimo. O instrumento também estabelecia um “contrato de comodato” em relação a determinada área do restaurante, que incluía a varanda e o sushibar.
Depois de duas renovações consensuais da locação, surgiram algumas divergências e o restaurante foi obrigado a ajuizar uma ação renovatória, pleiteando também a redução do valor do aluguel mínimo.
No decorrer do processo, a perícia apurou que o valor locatício mínimo estava acima da média de mercado. Em seu laudo, o perito apresentou dois cenários: um incluindo a área do comodato e outro excluindo a referida área, indicando os respectivos valores dos aluguéis.
O juiz de primeiro julgou procedente o pedido autoral, determinando a renovação do contrato de locação e reduzindo o valor do aluguel mínimo, escorando-se no laudo pericial.
Porém, entendeu que a discussão em torno do comodato estaria fora do escopo da ação renovatória, devendo, assim, ser dirimida pela via própria.
Diante da sentença desfavorável, o RDB interpôs apelação cível, questionando a metodologia e o valor encontrado pelo perito. Além disso, sustentou que o comodato tem natureza gratuita e pode ser revogado a qualquer momento. Na visão do Shopping, o “empréstimo gratuito” teria se encerrado juntamente com o término do contrato de locação objeto da lide.
Ato contínuo, enviou notificação extrajudicial ao restaurante reiterando o fim do contrato de comodato e ameaçando reaver a área por meio das medidas possessórias cabíveis, além de perdas e danos.
Por sua vez, o restaurante também apelou sustentando que, ao longo dos anos, fez obras na área do comodato (atrativo oferecido no início da parceria) e, há algum tempo, paga condomínio e IPTU sobre o espaço. Além disso, defendeu que, como o percentual fixado a título de aluguel engloba o faturamento total do restaurante (incluindo a área do “comodato”), na prática o Shopping participa do sucesso das atividades do restaurante em todo o espaço locado, inclusive aquele cedido em comodato.
No julgamento realizado, a 18ª Câmara Cível do TJ/RJ reconheceu que, apesar do rótulo de comodato no contrato de locação, não se tratava, efetivamente, de um empréstimo gratuito de parte do imóvel, mas sim de locação integral da área total prevista no contrato.
Em síntese, o tribunal entendeu que existe uma “integração simbiótica” entre o contrato de locação e a cessão da área externa (chamada no contrato de “comodato”), cuja ruptura poderia afetar a função social do contrato e a boa-fé objetiva. Além disso, destacou que, embora tenha sido rotulado como comodato, “a possibilidade de ocupação pela autora da varanda e de outras áreas externas, trata-se em verdade de cessão de espaço em caráter oneroso, ficando tão somente o preço da ocupação condicionada à efetiva utilização do espaço pelo cessionário e o lucro por este auferido com esta utilização”.
Por fim, restou consignado no acórdão que a natureza associativa dos contratos de locação e de cessão de espaço em Shopping Center se coaduna com a cobrança de aluguel percentual proporcional ao faturamento mensal do restaurante (“rateio do sucesso”).
Em decorrência da integração da área do comodato, o colegiado determinou apenas um acréscimo proporcional do aluguel mensal mínimo, como forma de manter o equilíbrio contratual.
Como se vê, a questão é relevante, tem densidade infraconstitucional e exige atenção especial tanto dos lojistas como dos gestores de Shopping, sobretudo no momento de entabulação dos contratos.
Se, de um lado, um contrato de comodato no bojo da locação pode ser utilizado como instrumento de proteção dos Shoppings (facilidade de retomada do espaço, por exemplo) e, de certa forma, de pressão contra o lojista (no momento de renegociações de bases contratuais), de outro, pode, eventualmente, caracterizar uma locação travestida, ensejando todas as consequências naturais de um pacto locatício e trazendo a reboque a valorização do respectivo ponto comercial.
Ressalte-se, ainda, por oportuno, que a decisão do TJ/RJ aplicou os novos paradigmas que vieram oxigenar o oceânico mundo dos contratos, impregnando-os de eticidade, considerando a função social e o equilíbrio de sua base econômica.
Nesse contexto, a situação exige tratamento singularizado e deve ser aquilatada à luz das especificidades da contratação e da própria atividade comercial, sopesando-se as peculiaridades e nuances, diante da moldura fático-jurídica existente.
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*Marcelo Mazzola é advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen Advogados.
*Sylvio Capanema de Souza é advogado e sócio do escritório Sylvio Capanema de Souza Advogados Associados.