Sobre pais e filhos
Adauto Suannes*
Deu na Sensatez Jornalística:
"Não temos o direito de transformar escuras tragédias humanas em mercadorias comerciais e vendê-las como produtos massificados." (Migalhas 1.427 - 5/6/05 - Alberto Silva Franco)
– Acompanho o voto do meu eterno relator e sempre mestre.
Certas pessoas, especialmente as que o destino colocou em certos cargos, não têm o direito de exibir sua insensibilidade e sua ignorância, privada ou publicamente. Panis et circensis. Em nome de que princípio ético?
Fosse possível um diálogo civilizado entre nós e eu as escandalizaria dizendo-lhes que o fato de um filho ou uma filha matar o pai ou a mãe surpreende-me menos do que uma pessoa matar um estranho. Enquanto neste segundo caso não há ligação clara entre matador e vítima (possivelmente, apenas projeções e transferências psicológicas), na relação entre filhos e pais há uma enorme constelação de mágoas e ódios recíprocos, muitas vezes mal administrados e que acabam por levar a tragédias maiores ou menores.
A idéia é mais ou menos esta: "Meus filhos têm motivo de sobra para me matarem, pois tendo eu sido um mau pai (ou mãe), como todos os pais e mães assim nos julgamos, mereço ser punido. É preciso, porém, que se castigue exemplarmente os jovens patricidas e matricidas, para que isso sirva de escarmento (ou seja, para que meus filhos percebam o que lhes acontecerá se fizerem o mesmo em relação a mim)."
Vamos aos mitos. Saturno, em visita a um oráculo, soube que ele perderia o trono para um de seus filhos, que o trairia (assim como ele havia feito com seu pai). Furioso, (ele sabia muito bem aquilo de que é capaz um filho!), põe-se a devorar os próprios filhos para assim impedir que eles o viessem a destronar (como ele, recorde-se, fizera com o pai). Há um quadro do Francisco Goya que retrata isso magnificamente. Salvador Dali também cuidou do tema, porém, em peça menos impressionante.
E não foi sobre a conflitiva relação pai/filho, constante de um mito, que Sigmund Freud construiu o edifício de sua psicanálise? Diz o tal mito, narrado por Sófocles, que o filho de Laio e de Jocasta foi abandonado ao nascer no Monte Citerão, já que Apolo havia predito a Laio que, se ele gerasse um filho, este o mataria.
Mas quem se preocupa hoje com essa bobagem chamada cultura? Quem tem tempo para ler Freud, Jung ou Joseph Campbell? Os mitos estimulam a tomada de consciência da nossa perfeição possível, a plenitude da nossa força e a introdução da luz solar no mundo, diz-nos Campbell. “O homem não cria mitos; eles os descobre”, ensina-nos ele. Melhor, porém, para muitos, acompanhar a novela das oito.
Pois nada como a relação Freud/Jung para nos ensinar algo que muitas vezes vem embutido nessas novelas. Quando Carl Gustav Jung conheceu Sigmund Freud, ficou deslumbrado com a inteligência do mestre, cerca de 19 anos mais velho do que ele. Em carta enviada a Freud, confessa sua dificuldade em assumir essa admiração filial, pois o menino Carl Gustav havia sido vítima de abuso sexual e Jung não desconhecia a carga homossexual que há nesse tipo de atração. Freud, porém, aceita a paternidade espiritual, dizendo ser Jung seu filho mais brilhante e seu herdeiro. A troca de cartas entre eles constitui um livro de tamanho regular. Nele, publicado pelos herdeiros de Jung somente depois de 30 anos de sua morte, por vontade dele, pode-se acompanhar a tempestuosa relação entre “pai” e “filho”, pois este não se conformava com o materialismo daquele, e aquele via com desdém paternal a preocupação de Jung com a espiritualidade, o que quer que isso significasse. Para Jung, havia muito exagero no pansexualismo da doutrina freudiana, enquanto Freud não aceitara as preocupações de Jung com a parapsicologia, que, para o austríaco, era mero ocultismo. Paternalmente, Freud dizia a Jung que o tempo lhe mostraria que seu mestre é que estava certo.
Quando Jung aconselhou o "pai" a que deixasse de tratar seus “filhos” como se todos fossem doentes, Freud agastou-se com isso e, numa carta, enviada no início de 1913 (a correspondência entre eles se iniciara em 1906) em que, em lugar do costumeiro “querido amigo”, se dirige a Jung chamando-o de “Diretor” (da Associação Psicanalítica Internacional) e “professor”, declara ser melhor para ambos que não mais se contatassem dali em diante. Eis aí um autêntico filicídio.
Foi, porém, certamente a partir desse rompimento que Jung pode desenvolver suas teorias, que o afastaram cada vez mais das idéias do “pai”, algo fundamental para aquilo que o próprio Jung viria a chamar “processo de individuação”. “Matar” o pai (ou a mãe), aliás, é algo que se aprende em psicoterapia, quando projeções, transferências e identificações psicológicas nos deixam tão aturdidos como nosso mestre Jung.
Para muita gente (a maioria das pessoas), quando falamos em mitos e lendas estamos falando de mentiras. Segundo Campbell, os mitos são narrativas poéticas de fatos transcendentes. O problema é que costumamos “historicizar” as imagens míticas e aí pagamos o preço de não compreendermos o sentido do mito. A propósito, pergunte a um judeu qual foi a criança que, logo que nascida, foi posta num cesto de vime e colocada num rio, vindo a ser achada por uma princesa. Estou, porém, falando de Sargão I, rei da Suméria, que nasceu séculos antes de Moisés. Ou pergunte a um cristão em que ano nasceu Jesus de Nazaré. Ele não saberá responder ou, na maioria das vezes, responderá errado. Na verdade, o fato histórico é que Jesus de Nazaré nasceu 5 ou 6 anos antes do início da Era Cristã. É o que dizem os historiadores mais bem informados.
Eis alguns exemplos da diferença entre Fé e Ciência, que lidam com realidades distintas, que, no entanto, bem compreendidas, não se podem excluir, mas se complementar.
Aliás, nada como a história desse mesmo Jesus de Nazaré para mostrar o sempre presente conflito pai/filho. Ele foi alguém que se identificou com o pai (“Se me conhecêsseis, conheceríeis também meu Pai” – Jo 8,19), abriu mão de sua vontade para submeter-se à vontade paterna (“Eu não vim pela minha vontade, mas é verdadeiro Aquele que me enviou” – Jo 7,16; “Seja feita a Tua vontade” – Lc 11,10) e ainda reclamou das conseqüências (“Por que me desamparaste?” – Mt 27,45). Isso em nada diminui a importância da mitologia religiosa (no sentido proposto por Campbell), muito pelo contrário. Se os judeus se conscientizassem de que “povo eleito” é toda a Humanidade (que levaria Deus, que é, por definição, justo, a preferir este povo àquele?) e que “terra prometida” não é um local físico (a imagem do Éden representa tudo aquilo que estava fora do alcance imediato da experiência concreta dos autores da narrativa, que só conheciam o inóspito areal à sua volta), não haveria tanto derramamento de sangue na Palestina.
E se o cristianismo fosse menos preocupado com a Ética (Jesus mandou às favas a Ética quando dispensou a mulher adúltera – cf. Jo 8, 11) e mais preocupado com a experiência mística pessoal (“Ai de vós, doutores da lei, porque impondes aos homens fardos impossíveis de carregar” – Lc 11, 45), como diz Campbell, as conseqüências também seriam outras para todos os cristãos e também para a Humanidade (preciso lembrar fatos históricos como as Cruzadas e a Inquisição?).
Paremos, no entanto, por aqui, pois o defunto não merece tanta vela, até porque, quem se dispõe hoje a refletir sobre coisas como essas ?
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*Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família)
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