Por consistir na união livre de pessoas com o objetivo social, o Terceiro Setor torna-se um espaço de integração entre os atores sociais de promoção dos direitos essenciais dos indivíduos. O Poder Público cria mecanismos para manter relações com as organizações da sociedade civil, garantindo a governança pública, com a administração participativa. E as empresas privadas desenvolvem ou patrocinam projetos com as entidades, em cumprimento a responsabilidade social para fins de conquista de incentivos fiscais e promoção da imagem empresarial. A inter-relação dos atores sociais presente no Terceiro Setor confere concretude à democracia, atraindo a responsividade estatal, mercadológica e social.
Entretanto, o Terceiro Setor sofreu, tal como as iniciativas pública e privada, o desvirtuamento de sua finalidade por meio de atos de corrupção – isolados, porém de impactos negativos - e usos indevidos, desacompanhados de controle e regulação, dos instrumentos legais existentes para o desenvolvimento da sociedade civil, dando espaço ao crescimento da desconfiança na área. A descredibilidade é vista não só nos cidadãos, como também nas instituições, a exemplo dos Tribunais de Contas e Ministério Público, que geralmente ao analisarem as relações entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil partem da premissa de que a irregularidade está presente, de modo a não enxergarem os resultados e benefícios conquistados com as parcerias.
Em recente pesquisa do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) apenas 26% dos brasileiros acreditam que a maioria das entidades do Terceiro Setor é confiável2. Ao lado desta porcentagem, tem-se que aproximadamente metade da população em geral (44%) entende que as organizações da sociedade civil não deixam claro o que fazem com os recursos que aplicam3.
Por outro lado, de acordo com o Mapa das Organizações da Sociedade Civil do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) há em torno de 400.000 mil organizações da sociedade civil, devidamente registradas e atuantes em finalidades sociais no Brasil. Ainda, pelos dados do mapa, no último levantamento realizado pelo Ministério do Trabalho em 2014, tais organizações foram responsáveis por ao menos 2 milhões de empregos formais e no ano de 2016, manusearam cerca de 3 milhões de reais em repasses federais por meio de transferências voluntárias e instrumentos de parcerias4.
Neste cenário, é possível notar que o Terceiro Setor faz parte da movimentação e crescimento do mercado, da realização das políticas públicas e da consolidação do Estado Democrático, de modo que a desconfiança que se instaurou no setor deve ser superada para a retomada do desenvolvimento das organizações da sociedade civil e reencontro da conduta democrática participativa. Isso tem provocado o principal processo de mudança no segmento consistente no reposicionamento institucional do Terceiro Setor.
No campo legal, o reposicionamento do Terceiro Setor sobrevém da edição da Lei Federal 13.019, de 31 de julho de 2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil. Mais para, além disso, promove a governança dentro das entidades5.
O marco regulatório instituiu um regime geral para as organizações da sociedade civil e a Administração Pública no planejamento, execução, acompanhamento e avaliação da aplicação dos recursos públicos e atingimento dos resultados esperados com a cooperação entre os setores. As regras previstas na lei constituem fontes para o funcionamento e gerenciamento dos recursos públicos pelas entidades sem fins lucrativos.
Os efeitos da norma na construção da sustentabilidade das organizações para seu desenvolvimento institucional e sobrevivência no relacionamento com o Poder Público podem ser vistos no relatório emitido pela Estratégia de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA, que ao analisar as regras introduzidas pela Lei Federal 13.019/14, elencou diretrizes e recomendações às partes envolvidas nas parceiras, no que toca às boas práticas na gestão pública6.
No relatório é possível identificar a consolidação de uma das questões mais enfrentadas pelas organizações da sociedade civil na aplicação dos recursos financeiros, no que diz respeito aos custos indiretos. Nas recomendações há expressado o entendimento de que as despesas administrativas são passíveis de pagamento pelos recursos públicos, porém mediante critérios de rateio. Além disso, na prestação de contas do rateio de despesas é permitida a apresentação de mesmo comprovante em mais de uma parceria.
Outra boa prática que fortalece para a sustentabilidade das organizações é a forma por meio da qual devem ser realizadas as contratações e o pagamento de equipe de trabalho, sempre mediante prévio processo seletivo público e utilização de pesquisa de valores de mercado anteriormente prevista no momento da concepção do plano de trabalho para manter o patamar de remuneração. O remanejamento dos recursos e a utilização dos rendimentos das aplicações financeiras são admitidos mediante apostilamento, nos termos da lei, para aprimorar as metas pactuadas na parceria.
A lei das parcerias também estimula a profissionalização no terceiro setor com a previsão do aprimoramento da mão-de-obra utilizada no cumprimento das parcerias. Os agentes privados responsáveis pelas ações de implementação, monitoramento e execução das parcerias deverão passar por programas de capacitação (art. 7º), além de ser despesa legítima a remuneração da equipe de trabalho e permitida a remuneração dos dirigentes de funções executivas (art. 46).
Neste sentido, verifica-se que a lei 13.019/14 desempenha um importante papel no reposicionamento institucional do Terceiro Setor para o fortalecimento das relações de cooperação com a Administração Pública e promoção das políticas públicas. No entanto, embora as consolidações das boas práticas, forma de execução e prestação de contas da aplicação dos recursos públicos, com base no marco regulatório, estejam presentes, ela se mostra tímida diante da ruptura do governo da Presidência de República.
O Terceiro Setor não foi inserido na agenda de políticas e reformas do governo de Michel Temer7. De acordo com os Mapas das Organizações da Sociedade Civil do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, as parcerias com a Administração Pública federal reduziram-se no ano de 2017, em comparação com o ano de 2016, a patamar de estagnação, conforme se nota pelo gráfico abaixo:
Fonte: IPEA, 2017
Demais disso, o órgão colegiado, previsto na lei 13.019/14 e instituído no seu regulamento, denominado Conselho Nacional de Fomento e Colaboração – CONFOCO, responsável pela condução e consolidação dos termos de fomento, termos de colaboração e acordos de cooperação mediante a edição de boas práticas e orientações, não foi constituído até o presente momento, apesar da Medida Provisória 782, de 31 de maio de 2017, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República, prevê-lo no artigo 54 como integrante da estrutura básica do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
Diante deste cenário, mostra-se emergente a movimentação da sociedade civil para sua organização na busca da efetivação dos direitos sociais e legitimação das decisões governamentais, principalmente no atual cenário político que passa por uma discussão da democracia representativa. É preciso que o marco regulatório seja retomado pelo governo federal para estimular a aplicação nas demais esferas estaduais e municipais.
Ao lado disso, tem que se ter em mente que o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil – MROSC não confere consistente segurança jurídica ao Terceiro Setor o qual, para reconquistar seus espaços, precisa encontrar uma definição jurídica e uma instância de regulação.
Portanto, no campo teórico e de conscientização e assimilação de valores já insculpidos na Constituição Federal de 1988, o reposicionamento do Terceiro Setor deve retomar o sentido de constituir-se um espaço de efetivação de direitos, em que tanto a Administração Pública quanto a iniciativa privada possam concentrar esforços para a execução das atividades, de forma transparente, responsável e democrática, principalmente na atualidade em que o sistema de representatividade dos governantes passa por uma crise de legitimidade9.
A edição de norma geral que positive o conceito do Terceiro Setor é necessária para o fortalecimento do protagonismo dos atores sociais, com a atração da responsabilidade social das empresas privadas, mas que só será desenvolvido com a estruturação da regulação do segmento. Atualmente, a regulação do Terceiro Setor é difusa e composta por normas que não dialogam entre si, de modo que inexiste atuação estatal (legislativa e executiva) que integre e articule os diferentes regimes jurídicos. Para que a regulação exista é preciso uma norma uniforme sobre a atuação do Terceiro Setor que promova a comunicação entre todas as legislações e atores10.
Como conclusão, verifica-se que o Terceiro Setor passa por uma fase de reposicionamento institucional para a reconquista da credibilidade das organizações da sociedade civil, de modo a retomar o espaço de inter-relação dos atores sociais, no qual o Poder Público e a iniciativa privada, em conjunto com os cidadãos, por meio da participação popular, possam concentrar esforços na efetivação dos direitos sociais e promoção de políticas públicas, com o aperfeiçoamento do Estado Democrático no atual cenário político-jurídico.
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1. Cf. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 2.
2. IDIS, 2016. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em 18 de jun. 2017.
3. IDIS, 2016. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em 18 de jun. de 2017
4. Mapa das Organizações da Sociedade Civil, IPEA. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em 18 de jun. 2017.
5. BRASIL, Lei Federal 13.019, de 31 de julho de 2014. Disponível em: (Clique aqui).
6. BRASIL. Produto final da ação 12 – MROSC. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, dezembro, 2016. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em 19 de jun. 2017
7. Quanto às políticas reformistas, no âmbito da Reforma do Aparelho do Estado no Governo de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Carlos Bresser Pereira ensinou que “é necessário reduzir o núcleo do próprio aparelho do Estado. Para isto, entretanto, a arma principal não é apenas a da privatização. Esta é fundamental para transferir para o setor privado as atividades produtivas voltadas para o mercado. Há uma segunda arma, que é a do desenvolvimento das organizações públicas não-estatais, das organizações voltadas para o interesse público, que não visam lucro nem agem exclusivamente segundo os critérios de mercado. No Brasil é comum pensarmos que as organizações ou são estatais ou são privadas. Na verdade podem também ser públicas mas não-estatais.” (In a Reforma do Estado no discurso de posso no Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, Janeiro de 1995. Disponível em (Clique aqui).
8. Disponível em (Clique aqui).
9. Cf. PAES, José Eduardo Sabo; SANTOS, Júlio Edstron Secundino. A democracia e terceiro setor na atualidade: histórico e reflexos atuais. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 19, n. 1, p. 131-157, jan./abr. 2017. Quadrimestral.
10. Cf. BONIS, Daniel de; PANNUNZIO, Eduardo. Marco regulatório das organizações da sociedade civil: cenário atual e estratégias de avanço. Centro de pesquisa jurídica aplicada da Fundação Getúlio Vargas, junho de 2013, pp. 05-45.
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*Gustavo Justino de Oliveira é consultor e advogado em direito público do escritório Justino de Oliveira Advogados.
*Carolina Filipini Ferreira é advogada do escritório Justino de Oliveira Advogados.