Migalhas de Peso

A legalidade, o processo administrativo sancionador e a MP 784

Seu objetivo é modernizar as regulações do SFN, munindo aquelas autarquias de instrumentos efetivos de coerção, para que enfrentem “com eficiência” os desafios impostos por operações cada vez mais complexas e por instituições progressivamente competitivas e interdependentes.

21/6/2017

A MP 784/17 trata de infrações e penalidades aplicáveis aos agentes econômicos sujeitos ao poder de fiscalização do Banco Central do Brasil (BCB) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), bem como disciplina o processo administrativo sancionador no âmbito desses órgãos, dentre outros temas. Seu objetivo é modernizar as regulações do Sistema Financeiro Nacional (SFN), munindo aquelas autarquias de instrumentos efetivos de coerção, para que enfrentem “com eficiência” os desafios impostos por operações cada vez mais complexas e por instituições progressivamente competitivas e interdependentes1.

O marco regulatório em questão é importantíssimo e, em última análise, descortina a tensão existente entre alguns valores constitucionalmente consagrados. De um lado, o direito da coletividade a um sistema financeiro equilibrado e sólido (CF/88, art. 1702), que ele pretende assegurar. De outro, as garantias individuais ligadas à liberdade e à propriedade privada (CF/88, art. 5º, caput3), que ele termina por restringir, ao tipificar infrações antes não previstas no ordenamento e cominar as penalidades respectivas. Por essa razão, o diploma deve ser encarado com todos os cuidados que o tema requer, haja vista as consequências possivelmente perniciosas que uma regulação temerária a respeito poderá acarretar.

Diante da difícil relação entre os mencionados valores, eventual normatização que se dispusesse a enfrentá-la de modo minimamente adequado deveria fazê-lo em conformidade com as cláusulas da separação dos poderes (CF/88, art. 2º4), da legalidade (CF/88, art. 5º, II5), do devido processo legal (CF/88, art. 5º, LIV ) e da segurança jurídica, as quais ocupam posição de destaque em qualquer Estado de Direito que se pretenda democrático e sério7.

Nesse sentido, seria imprescindível que o ato normativo aventado realizasse o balanceamento dos valores envolvidos, de modo a consagrar a “compatibilidade justa” entre os meios escolhidos e os fins almejados, de acordo com “padrões de proporcionalidade (lógica interna da estrutura meio-fim) e razoabilidade (bom senso, sentido criterioso...) da lei”, sem cometer abusos ou excessos8, que, uma vez verificados, seriam passíveis de reprimenda pelo Judiciário, como amplamente reconhecido pela Corte Suprema9.

Entretanto, examinada à luz dessas premissas, a recém-chegada MP 784/17 gera algumas perplexidades, das quais se tratará a seguir.

Inadequação da Medida Provisória.

A MP 784/17 mal foi publicada e já existem discussões sobre possíveis vícios e virtudes das regras nela contidas, principalmente no que respeita a temas em voga, como a celebração de termos de compromisso e acordos de leniência (no caso, pelo BCB e CVM junto a infratores sujeitos ao seu poder de fiscalização). Porém, há uma questão preliminar a ser enfrentada, cujo deslinde é de suma importância para que se possa concluir pela validade ou não do novo sistema, a saber: seria a Medida Provisória o veículo normativo adequado?

Não se trata, aqui, do mesmo problema suscitado por Heleno Taveira Torres, no sentido de que a MP 784/17, “ao tratar de acordo de leniência”, teria desrespeitado o art. 62, §1º, da CF/88, “que proíbe a edição de MP sobre direito penal, processual penal e processual civil10. Afinal de contas, o fato de o escopo da MP ser punitivo não a torna, por si só, um diploma penal ou processual penal. Ademais, é certo que a medida busca disciplinar a competência material da União para “fiscalizar as operações de natureza financeira” (CF/88, art. 21, VIII11), tendo como fundamento a competência privativa da mesma para legislar sobre sistema financeiro e monetário (CF/88, art. 22, VI12), e não sobre direito penal (CF/88, art. 22, I). Por esse motivo, trata-se de diploma de caráter administrativo-sancionador, que deve ser analisado sob o enfoque dos princípios que regem esse ramo do direito (CF/88, art. 3713). Assim, como a edição de medida provisória sobre direito administrativo não é vedada pelo art. 62, §1º, da CF/88, parece não existir o vício apontado pelo mencionado jurista.

Na realidade, a questão se põe em face da regra que restringe a adoção de medidas provisórias às hipóteses de relevância e urgência (CF/88, art. 62, caput). A norma decorre do regime de separação de poderes, por força do qual cabe ao Legislativo criar as leis, ao Executivo dar-lhes fiel cumprimento e ao Judiciário proceder ao respectivo exame de legitimidade. Por isso, somente em caráter excepcional é que se admite o emprego do instituto, quando não se possa esperar pela conclusão do processo legislativo comum “para que certos fatos sejam juridicamente disciplinados14.

Isso implica que medidas provisórias são instrumentos destinados a permitir que o Poder Executivo normatize “cautelarmente, ou seja, de forma imediata e em caráter precário, determinadas situações fáticas (caso) cuja elevada importância (relevância) e potenciais efeitos danosos para a coletividade (urgência) torne inviável aguardar o prazo de tramitação de projeto de lei, conforme orientação do Supremo Tribunal Federal (ADI 293/MC-DF)15. Daí a palavra final sobre os assuntos nelas tratados sempre caber ao Poder Legislativo, que pode rejeitá-las ou convertê-las em lei.

Justamente por esse motivo é que, em texto escrito em parceria com Hamilton Dias de Souza, afirmamos que “qualquer medida provisória deve ser motivada pela constatação de anomalia no mundo dos fatos que torne imprescindível a produção imediata de norma com força de lei. São razões de fato as únicas que autorizam [e justificam] a utilização dessa figura excepcional. Questões de mera conveniência política podem e devem observar o processo legislativo ordinário16.

No caso em exame, sem adentrar no mérito das alterações normativas promovidas, o que acima se disse é suficiente para que se conclua pela ilegitimidade “formal” da MP 784/17. Afinal, não há na Exposição de Motivos da medida sequer uma frase a respeito da existência de fato determinado que torne minimamente justificável a sua adoção, em detrimento do processo legislativo comum. E não poderia ser diferente, pois é sabido que o sistema anterior à MP em questão vigorou por décadas sem que nunca se tenha debatido a sua “modernização”. Daí a pergunta: por que somente agora a reforma proposta se tornou relevante e urgente? O que se verifica, na verdade, é abuso de poder, em fraude à Constituição.

Inconstitucionalidade das multas.

A MP examinada cuida de infrações e penalidades aplicáveis aos agentes do SFN que deixem de observar as regulações pertinentes, incluindo as sanções de admoestação pública, multas, proibição à prática de determinadas atividades, inabilitação de pessoas físicas para o exercício de cargo de direção em pessoas jurídicas que atuem no SFN e até a cassação de autorização de funcionamento. Tais sanções podem ser aplicadas pelo BCB ou pela CVM, conforme o tipo de atividade desenvolvida pelo agente econômico considerado.

No que se refere à multa atinente ao BCB, o art. 7º do diploma limita-se a afirmar que ela “não excederá” o maior valor entre o percentual de 0,5% da receita de serviços e produtos financeiros apurada no ano anterior ao da consumação da infração e a quantia de
R$ 2.000.000.000,00. Já o art. 38, I, da MP 784/17 delega ao regulamento a ser expedido pelo BCB a competência para dispor sobre a gradação da penalidade de multa. Não há no diploma a indicação de quaisquer critérios a serem considerados pelo BCB no que concerne à disciplina da multa que fica sob sua responsabilidade.

Decorre dos princípios da separação dos poderes e da legalidade, entretanto, que nem a tipificação de infrações, nem a cominação de multas ou a estipulação dos respectivos critérios quantitativos, podem ser realizadas sem lei em sentido formal e material. Somente a lei pode criar direitos ou deveres contra o particular, a teor do art. 5º, II, da CF/88.

É dizer: “ao regulamento desasiste incluir no sistema positivo qualquer regra geradora de direito ou obrigação. Nem favor nem restrição que já não se contenham previamente na lei regulamentada podem ser agregados pelo regulamento”. Há “inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada”. Essa “identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege17.

Daí se afirmar que “não tem legitimidade constitucional o regulamento praeter legem”, ainda que se possa conceber, em determinados casos, a utilização do chamado “regulamento delegado ou autorizado intra legem”, editado para disciplinar normas legais dentro de padrões e parâmetros nelas mesmas especificados18. Há, portanto, uma distinção entre a “delegação pura, que a Constituição não permite”, e a “atribuição que a lei comete ao regulamento... justamente para a boa aplicação concreta da lei19.

No caso em exame, a MP 784/17 não define parâmetros mínimos a serem observados pelo BCB na gradação da multa, motivo pelo qual é correto afirmar que se trata de delegação pura, vedada pelo ordenamento jurídico. O que a MP faz é criar um vazio normativo que deverá ser preenchido por norma regulamentar a ser baixada por órgão da administração indireta, o que não pode ser admitido.

Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que “não se poderá considerar válida lei administrativa que preveja multa variável de um valor muito modesto para um extremamente alto, dependendo da gravidade da infração, porque isto significaria, na real verdade, a outorga de uma discricionariedade tão desatada, que a sanção seria determinável pelo administrador, e não pela lei, incorrendo esta em manifesto vício de falta de razoabilidade20. Com efeito, nesse caso haveria apenas “um simulacro de obediência ao princípio da legalidade; não, porém, uma verdadeira obediência a ele. Norma que padecesse deste vício seria nula, por insuficiência de delimitação da sanção21.

É o que ocorre com o art. 7º da MP 784/17, ao estabelecer multas que podem ir de valores ínfimos a quantias que podem atingir a cifra de R$ 2.000.000.000,00, sem indicar parâmetros que norteiem sua aplicação e permitam o seu teste de adequação em concreto. O vício torna-se ainda mais sério quando se verifica que caberá a normas regulamentares dispor sobre a gradação da penalidade. Com isso, terão sido elas, e não a lei, as responsáveis pela criação das hipóteses de incidência das multas e respectivos critérios de dosimetria, ofendendo a legalidade.

Já no que se refere à multa atinente à CVM, o art. 37 da MP 784/17 estabelece que ela “não excederá” o maior valor entre os seguintes: (a) a quantia de R$ 500.000.000,00; (b) o dobro do valor da operação irregular; (c) o triplo da vantagem econômica obtida em decorrência do ilícito; ou (d) 20% do faturamento individual ou consolidado do grupo econômico, obtido no exercício anterior à instauração de processo administrativo sancionador, no caso de pessoa jurídica. Não há nem mesmo previsão que atribua à CVM a tarefa de editar normas regulamentares para dispor sobre a gradação da multa. Isto é, caso a autarquia não as edite por iniciativa própria, o vazio normativo produzido pela MP 784/17 quanto à multa em questão acabará sendo preenchido casuisticamente pelas autoridades fiscalizatórias, o que também afronta a legalidade.

Saliente-se, por fim, que os mesmos vícios que atingem as multas acima tratadas também afetam as multas cominatórias passíveis de aplicação pelo BCB e pela CVM em caso de descumprimento de medidas coercitivas e/ou acautelatórias, previstas, respectivamente, nos arts. 20 e art. 37 da
MP 784/17.

Os vícios acima apontados são incontornáveis e acarretam a completa inconstitucionalidade das multas examinadas. Isso pode comprometer todo o sistema da MP 784/17, pois, como as demais sanções são relativamente dependentes das multas, poderão ter a sua aplicabilidade prejudicada. A inconstitucionalidade das penalidades pecuniárias de que se cuida é evidente.

Conclusão

Diante dos problemas normativos que acometem a MP 784/17, acima expostos, afigura-se de todo recomendável que os agentes econômicos do SFN procurem impedir, pelas vias legais cabíveis, a aprovação da medida perante o Congresso Nacional, ou, quando menos, aperfeiçoar o respectivo texto. A delicadeza do tema justifica que o mesmo seja debatido com serenidade pelos agentes diretamente interessados e pela sociedade em geral, o que, a rigor, só pode ser feito no bojo do processo legislativo ordinário. É preciso tratar da matéria com o máximo cuidado no presente, para que se evitem futuros desastres.

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1. É o que se verifica da Exposição de Motivos do diploma, constante da Mensagem BACEN/MF 00008/17.

2. “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)”.

3. “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”

4. “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

5.Art. 5º (...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

6. “Art. 5º (...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”

7. Ver, nesse sentido, FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Do amálgama entre razoabilidade e proporcionalidade na doutrina e na jurisprudência brasileiras e seu fundamento no devido processo legal substantivo. Barueri, SP: Manole, 2007.

8. Id. Ibid.

9. Ver, por exemplo, ADI-MC 1910, ADI-MC 2551, ADI-MC 2667, dentre inúmeros outros precedentes do STF.

10.O advogado e professor da USP Heleno Torres afirma que, ao tratar de acordo de leniência, a medida provisória viola o artigo 62 da Constituição Federal, que proíbe a edição de MP sobre direito penal, processual penal e processual civil” (Cf. ROVER, Tadeu. Por meio de MP, governo permite que Banco Central faça acordos de leniência.)

11.Art. 21. Compete à União: (...)
VIII - administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;


12. “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...)
VI - sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais;”

13.Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...)”

14. Ver SOUZA, Hamilton Dias de & CARVALHO, Thúlio José Michilini Muniz de. Falta de urgência justifica veto a jabuti previdenciário na MP 664.

15. Id. ibid.

16. Id. ibid.

17. Ver MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. – São Paulo: Malheiros, 2010. PP. 362 e ss.

18. Ver, nesse sentido, RE 290.079/SC, Pleno, Rel. Min. Ilmar Galvão, voto Min. Carlos Velloso, DJ 04/04/2003.

19. Ver, nesse sentido, RE 343.446, Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 04/04/2003.

20. Ver BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 2015. PP. 879 e ss.

21. Id. ibid.

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*Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado atuante em Direito Administrativo e Tributário e fundador de Muniz de Carvalho Advogados.

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