Neste texto, entretanto, pretendo abordar um aspecto da reforma que tem passado despercebido na maioria dos debates e que pode ter grandes impactos na vida dos trabalhadores e de seus dependentes. Para situar o leitor, informo que as considerações a seguir são feitas com base no texto do substitutivo aprovado pela comissão da Câmara dos Deputados criada para discutir a matéria, que teve como relator o deputado baiano Arthur Maia. Até o momento em que escrevo, a reforma ainda não foi encaminhada para a votação em plenário.
Refiro-me à mudança na fórmula de cálculo do salário de benefício, valor que serve de referência para o cálculo da maior parte dos benefícios previdenciários. Historicamente, os benefícios previdenciários são calculados a partir de uma média dos salários de contribuição do segurado. Por determinação constitucional, os salários de contribuição utilizados no cálculo do salário de benefício são atualizados monetariamente.
O segurado é obrigado a recolher contribuições mensais para a Previdência Social. No caso das pessoas que prestam serviços a empresas, com ou sem vínculo empregatício, a lei atribui à empresa a responsabilidade pelo desconto e posterior recolhimento da contribuição devida pelo segurado à Previdência. A base de cálculo destas contribuições, denominada pela lei de salário de contribuição, corresponde à totalidade das parcelas remuneratórias recebidas pelo trabalhador, limitadas ao teto máximo da Previdência Social, atualmente de R$ 5.531,31.
Na redação original do art. 29 da lei 8.213, de 1991, o salário de benefício consistia na média aritmética simples dos últimos trinta e seis salários de contribuição do segurado, apurados em período não superior a quarenta e oito meses. Esta previsão causava uma distorção óbvia, pois o valor dos benefícios era definido apenas com base na remuneração dos últimos três anos, de modo que não refletia a sua vida contributiva.
A lei 9.876, de 1999, introduziu importantes alterações na legislação previdenciária. No tema ora em discussão, definiu que o salário de benefício passaria a ser calculado com base na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo. Ou seja, se um segurado possui 200 contribuições mensais no momento em que requer o benefício, o seu salário de benefício é calculado com base na média dos 160 (200 x 80%) maiores salários de contribuição. Reforço que todos os salários de contribuição utilizados no cálculo são atualizados monetariamente com base em índice previsto em lei (INPC). Esta sistemática encontra-se em vigor até hoje. Adiciono ainda que somente são considerados neste cálculo os salários de contribuição relativos a competências a partir de julho de 1994 (quando a nossa moeda passou a ser o Real).
O art. 19 do substitutivo aprovado pela comissão da Câmara dos Deputados propõe uma modificação na forma de cálculo desta média, assim dispondo:
Art. 19. Até que lei venha a disciplinar a matéria, as médias previstas no § 2º-A do art. 40 da Constituição e no § 8º-A do art. 201 da Constituição considerarão as remunerações e salários de contribuição, atualizados monetariamente, utilizados como base para contribuições ao regime geral de previdência social ou ao regime de previdência de que trata o art. 40 da Constituição, correspondentes a 100% (cem por cento) de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde a competência do início da contribuição, se posterior àquela competência.
A modificação é simples: ao invés de considerar apenas os 80% maiores, a média utilizada no cálculo do salário de benefício passará a ser feita com todos os salários de contribuição dos segurados. Por trás desta simplicidade, entretanto, há um grande prejuízo aos segurados. Isso porque, neste novo cenário, poucos meses em que o trabalhador venha a ter uma queda na sua remuneração poderão provocar impactos no cálculo do benefício que ele irá receber por toda a sua vida.
Tome-se como exemplo uma situação que me parece bastante comum:
Suponha um segurado empregado que já possuísse 20 meses de contribuição à Previdência, todos eles com base numa remuneração de R$ 3.000,00. Uma vez despedido, ele encontra dificuldade de se recolocar em outro emprego com salário equivalente. Enquanto procura emprego, passa a realizar trabalhos eventuais que lhe rendem R$ 1.000,00 mensais, base que ele utiliza para manter os seus recolhimentos à Previdência. Depois de seis meses nesta situação, ele encontra um novo emprego que lhe paga os mesmos R$ 3.000,00 que o anterior. Quatro meses depois da admissão no segundo emprego, ele necessita de um benefício previdenciário.
Ao requerer o benefício, ele possuía 30 meses de contribuição. Pelas regras atuais, o salário de benefício seria calculado com base nos 24 maiores salários de contribuição (80% do período contributivo), o que lhe permitiria excluir do cálculo os seis meses em que teve uma remuneração abaixo daquela correspondente ao seu padrão de mercado e obter um salário de benefício de R$ 3.000,00. Se implementada a nova regra, o salário de benefício seria calculado com base em todos os salários de contribuição, sendo reduzido a R$ 2.600,00 ((24 x R$3.000,00 + 6 x R$ 1.000,00)/30). Neste exemplo, a redução no salário de benefício decorrente da modificação introduzida pela reforma seria de pouco mais de 14%.
Trata-se de mudança desprovida de justificativa. Não há, na regra atualmente vigente, uma situação de iniqüidade ou de afronta ao equilíbrio financeiro da Seguridade Social. A utilização dos maiores salários, correspondentes a 80% do período contributivo, reflete adequadamente o padrão contributivo do segurado e evita que estas situações de redução significativa da renda durante períodos relativamente curtos tenham os seus efeitos perpetuados na sua vida previdenciária.
Em um cenário econômico instável, onde a taxa de desemprego encontra-se elevada e as dificuldades para se recolocar no mercado são enormes, a mudança no cálculo da média previdenciária pressiona ainda mais o trabalhador. Neste sentido, a Previdência caminha na direção oposta ao seu objetivo de oferecer segurança ao trabalhador nas situações de risco social relevante. É preciso atentar para os efeitos de tal modificação, até mesmo para que ela possa ser objeto de discussão no contexto da reforma previdenciária.
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*Flaviano Lima é administrador de empresas e bacharel em Direito. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil, Professor de Direito Previdenciário em diversas instituições de ensino, autor do livro Direito Previdenciário para Concursos.