Migalhas de Peso

As reformas estruturantes e o contrato social

Nada mais vislumbramos do que o velho e elementar conflito entre trabalho e capital, entre elites sedentas por poder e as massas que lutam por sua sobrevivência e pelo reconhecimento de sua dignidade.

2/6/2017

Introdução

No dramático momento histórico que vivenciamos, marcado por crises econômicas, éticas e político-institucionais, o governo brasileiro vem lançando mão de medidas polêmicas e impopulares que, embora ameacem a tendência de equalização social deflagrada desde a última década, são tidas pelas elites políticas como valiosas apostas para o reequilíbrio das contas públicas em declínio. Advogam por essa tese os partidários do governo e seus correligionários que formam a maioria parlamentar. De outro lado, os movimentos sociais, as associações da sociedade civil, os trabalhadores, os usufrutuários dos serviços públicos, bem como toda a cidadania engajam-se numa dura resistência ao que aparenta ser um dos maiores retrocessos em nível de bem-estar social da história republicana; sem exagero algum, à institucionalização do retrocesso.

Nada mais vislumbramos do que o velho e elementar conflito entre trabalho e capital, entre elites sedentas por poder e as massas que lutam por sua sobrevivência e pelo reconhecimento de sua dignidade. Esse conflito, potencializado pela ascensão da doutrina do neoliberalismo, denuncia uma clara opção ideológica em favor das elites; escancara a corrosão do contrato social legítimo que mantém a sociedade íntegra, próspera, cooperante e produtiva. No limite, as reformas estruturais conduzidas pelo governo brasileiro condenam a maior parcela da sociedade à exclusão, à marginalização e a um estado permanente de mal-estar. Tal circunstância destrói os resquícios de solidariedade social que mantêm um corpo político saudável.

Afinal, o que faria um cidadão entrar em um sistema no qual ele é tiranizado, explorado, e não tem chances de ascender socialmente? Por que motivo, em tais circunstâncias desestimulantes, obedeceria aos deveres derivados das leis, cumpriria obrigações políticas e pagaria impostos? Em suma, por que razão manter-se-ia fiel à

ordem jurídica? Esperamos, no mínimo, refletir sobre essa indagação tão complexa, porém, ao mesmo tempo, tão vital para uma democracia justa.

1. A aniquilação das políticas sociais

Uma lei da física parece aplicar-se continuamente à história política da humanidade: a toda ação corresponde uma reação. As forças políticas sempre aparecem em pares antagônicos, dispostas a travar árduas disputas. A tradição filosófica hegeliana diria que a história funciona segundo uma lógica dialética. Se os períodos pós-Guerra caracterizaram-se por um avanço sem precedentes em matéria de direitos sociais, sobrevém, desde o último quarto do século passado, uma onda de retumbante retrocesso relativamente às conquistas sociais alcançadas em nível mundial. A hegemonia do neoliberalismo emerge justamente como uma reação ao Estado de bem-estar social que imperou na primeira metade do século XX, fortemente influenciado pela doutrina keynesiana, de que são maiores exemplos o New Deal do Presidente Roosevelt, o Relatório Beveridge na Inglaterra, o nacional-socialismo alemão e o modelo adotado pelos países escandinavos – os quais, por sua vez, consistiram em estratégias para superar a crise de 1929.

Nos países centrais do capitalismo global, o governo inglês de Margareth Thatcher (1979-1990) e o governo estadunidense de Ronald Reagan (1981-1989) empenharam-se em executar uma doutrina econômica centrada na ressurreição do capitalismo laissez-faire, em um mais ousado impulso econômico liberalizante composto por medidas como privatizações, austeridade fiscal, desregulamentação do Mercado, livre comércio, abertura ao capital estrangeiro, corte de despesas governamentais e incentivos ao setor privado. Dada a tendência de globalização1 comercial, financeira e cultural que marca nossa época, foi inevitável que a liberalização transcendesse fronteiras nacionais e se espalhasse mundo afora, inclusive nos chamados países subdesenvolvidos. A ditadura chilena de Augusto Pinochet já havia sido pioneira na implantação de um governo neoliberal, antes mesmo da experiência inglesa. A partir do Consenso de Washington de 1989 – no esteio do declínio do socialismo soviético –, medidas neoliberais concebidas por economistas ligados ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional ganharam a adesão do chamado “Terceiro Mundo”, num movimento de progressivo desmanche do setor público ao qual o Brasil se filiou.

A anuência ao “consenso” neoliberal coloca em xeque parcela expressiva dos direitos trabalhistas e sindicais e do sistema de seguridade social, habitação, assistência, saúde e educação públicas usufruído pela população das classes sociais subalternas. Não por acaso, destaca-se, dentre seus elementos capitais, a desregulamentação – na verdade, um eufemismo para o afrouxamento, ou mesmo a supressão das leis trabalhistas, de seguridade, de distribuição de renda e de regulação econômica. Constatamos que a desregulação dos mercados e a internacionalização do capital trouxe como resultado uma maior concentração de riqueza e de poderio econômico. O próprio FMI, mentor da cartilha neoliberal imposta às economias periféricas, admitiu que os programas de austeridade outrora preconizados geram “efeitos nocivos de longo prazo”.2

Chegamos ao século XXI ainda imbuídos do desafio de equacionar, de um lado, estabilidade e crescimento econômico e, de outro, justiça social e uma equânime distribuição material. No Brasil, a década de 1990 simbolizou o auge da retração do setor público, atravessado por diversas iniciativas de privatização e pela abertura ao capital internacional. Após o interregno de mais de uma década de reabilitação de políticas redistributivas, assistimos mais uma vez à explosão dos discursos de flexibilização dos direitos trabalhistas e de desmantelamento do sistema previdenciário.

As reformas estruturantes com que o atual governo brasileiro pretende sedimentar a ideologia neoliberal atacam sobretudo três frentes essenciais ao Estado social de direito: os gastos com serviço público, as leis trabalhistas e a Previdência Social. Essas reformas retratam, contudo, graves ofensas constitucionais aos objetivos e princípios fundamentais da República – em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao princípio da primazia e intangibilidade dos direitos fundamentais, ao princípio da redução das desigualdades sociais e ao princípio da proibição do retrocesso social.3 4 Revertem-se, no fim das contas, em um sério atentado contra o pacto social no qual está escorada a forma republicana de governo – como se deduz das canônicas lições de Rousseau acerca do contrato social que funda o corpo político.


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1 A globalização é reflexo da intensificação dos fluxos comerciais e financeiros, bem como dos contratos e trocas entre empresas e pessoas em diferentes partes do mundo.

2 Em estudo assinado por três economistas vinculados à Instituição, lê-se: "Em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura". Mostram ainda que, de 150 economias emergentes que tiveram, desde a década de 1980, forte aumento dos fluxos de capital, 20% caiu em crise financeira. Disponível em: Clique aqui

3 As normas de direitos sociais se desdobram em direitos a prestações por parte do Estado (dimensão positiva) e ao mesmo tempo proíbem que o Estado interfira de modo a tornar mais precárias as garantias sociais existenciais (dimensão negativa). Nem o Estado nem terceiros podem atentar contra posições jurídicas albergadas pelo âmbito de proteção desses direitos. É a seguinte a formulação do princípio da proibição de retrocesso em matéria de direitos sociais, ou simplesmente princípio do não retrocesso: “quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo” (In: CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 338-339). A vedação do retrocesso social tem sido comumente entendida como limite material implícito que impede a supressão, por via de emendas constitucionais ou leis infraconstitucionais, dos direitos prestacionais que já alcançaram um grau de densidade normativa robusto e adequado, a não ser que tal supressão seja precedida de uma prestação alternativa que impeça eventual prejuízo ao direito em tela, uma vez que a revogação de normas que disciplinam direitos fundamentais sociais devem ser acompanhadas de medidas compensatórias de eventuais perdas.

4 Princípios extraídos da leitura combinada dos arts. 1º, 3º e 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.
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*Antonio Oneildo Ferreira é advogado e diretor-tesoureiro do Conselho Federal da OAB.

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