Migalhas de Peso

A nova lei migratória e a garantia dosdireitos fundamentais aos imigrantes

A nova lei de Migração, em contrapartida, trata o imigrante como um sujeito de direitos, e não como um forasteiro indesejável.

25/5/2017

Um dos entulhos legislativos do regime militar brasileiro está indo para a lata de lixo da história. No dia 18 de abril de 2017 o plenário do Senado aprovou o projeto que revoga o Estatuto do Estrangeiro [lei 6.815/80] e instaura a nova lei de Migração [Projeto de lei 2.516/15, originário do PLS 688/13]. O texto em si, ainda passível de vetos quando da devida sanção presidencial, já é uma vitória democrática, considerando-se que o Brasil é um país que muito deve aos imigrantes que aqui se fixaram ao longo do tempo.

Esclareça-se que a lei 6815/80, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro, encontra-se defasada da realidade jurídica nacional, contrariando os tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário, bem como os princípios democráticos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988.

Muito embora o novo diploma ainda possa deixar a desejar para alguns movimentos sociais, a primeira mudança positiva já começa no título da lei. Vale lembrar que palavra estrangeiro, em sua origem, significa estranho, a inspirar repulsa e hostilidade. E este é o tratamento dado aos imigrantes pelo vetusto e anacrônico Estatuto do Estrangeiro, de 1980, com base na doutrina da segurança nacional, perante a qual todo imigrante representa uma ameaça à ordem interna.

A nova lei de Migração, em contrapartida, trata o imigrante como um sujeito de direitos, e não como um forasteiro indesejável. Além disso, a legislação migratória finalmente adequa-se à Constituição Federal, que determina tratamento igualitário a brasileiros e às pessoas vindas de fora. Assim sendo, a lei novidadeira institui o repúdio à xenofobia, ao racismo e a outras formas de discriminação, além de garantir o acesso às políticas públicas. No mesmo diapasão, a legislação alçada à sansão presidencial restou compatibilizada com Estatuto de Roma, de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional.

Outro ponto que deve ser destacado é que a nova lei se pauta pelo princípio da não criminalização da migração, o que, na prática, significa garantir a esses estrangeiros o acesso a serviços de educação, saúde, assistência jurídica e seguridade social. Por acréscimo, o texto legal dispõe que o estrangeiro não deva ser deportado ou repatriado se houver razões no país de origem que coloquem sua vida e integridade pessoal em risco.

Outrossim, o imigrante terá direito irrestrito à reunião, desde que para fins pacíficos, e à associação, inclusive sindical. Cotejando-se os dois textos, o antigo e o novo, nesta matéria, aponte-se que lei 6.815/80, ainda vigente, proíbe qualquer tipo de exercício de atividade política e garante o direito de associação somente para fins culturais, religiosos e desportivos. Ademais, a nova lei desburocratiza os procedimentos de regularização migratória. Medida esta que se constitui em inegável avanço, uma vez que é necessário oferecer condições concretas para que os imigrantes obtenham a documentação necessária, e não apenas dificultar a sua obtenção.

Vale consignar, igualmente, que a regularização dos imigrantes se arroga como um dos modos de se combater a exploração de mão de obra barata, e inerentes condições de trabalho degradantes, a que são submetidos boa parte dos mais de 700 mil imigrantes que atualmente vivem no Brasil.

Outro avanço de grande efeito interno diz respeito à previsão de anistia na forma de concessão de residência permanente a imigrantes que tenham entrado no território brasileiro anteriormente a 6 de julho de 2016, independentemente de sua situação migratória, desde que assim requeiram até um ano após o início de vigência da lei. Outra atualização de cunho altamente democrática diz respeito à permissão de se transformar os vistos de visita e cortesia em visto de residência, mediante requerimento e registro, desde que satisfeitos os requisitos previstos em regulamento, algo que até então era vedado na lei que deixará de viger.

A nova lei, também, garante a acolhida humanitária, que passa a ser um princípio da política migratória brasileira. Registre-se que até o momento esse tipo de entrada se dá através da concessão do visto humanitário por meio de resolução normativa, de caráter excepcional, como procederam o Ministério da Justiça e o Ministério de Relações Exteriores, em 2012, para receber haitianos que entravam no Brasil fugindo das consequências do terremoto de 2010, e que, portanto, não se encaixavam no rol de situações que garantem o direito de refúgio. Em 2013, o visto humanitário foi estendido aos imigrantes sírios, possibilitando-lhes entrar no país com pedido de refúgio, também excepcionalmente.

Entretanto, o direito ao voto ainda não está garantido aos imigrantes, pois para isso é necessário modificar não apenas a legislação migratória atual, mas a própria Constituição Federal, que restringe o sufrágio a brasileiros natos e naturalizados e aos portugueses com, no mínimo, três anos de residência ininterrupta no Brasil.

Situação polêmica no seio da sociedade brasileira diz respeito ao fato de que em meio à tendência mundial de combate ao terrorismo e ao narcotráfico, que tem levado inúmeros países a aprovar medidas restritivas e protetivas em suas fronteiras, no Brasil acaba-se de aprovar uma lei que avança na garantia de Direitos Humanos aos imigrantes. Neste ponto, cabe observar que uma legislação migratória restritiva não impede as pessoas de cruzarem as fronteiras e não determina quantas pessoas deixarão de entrar no território, mas quais poderão ser detectadas em situação irregular.

De qualquer forma, não descuidou a nova lei de Migração de aspectos de preservação da soberania nacional, mas agora idealizada em correlação com outros vetores igualmente importantes, como o respeito aos direitos fundamentais dos estrangeiros que adentram o território nacional. Neste particular, anota-se que a lei tipifica como crime a ação de traficantes que promovem a entrada ilegal de estrangeiros em território nacional ou de brasileiros em país estrangeiro, fixando como punição ao tráfico de pessoas a reclusão de dois a cinco anos, além de multa, passível de sofrer agravamento se ocorrer violência. E, ainda, estabelece que a residência poderá ser negada se a pessoa interessada tiver sido expulsa do Brasil anteriormente, se tiver praticado ato de terrorismo ou estiver respondendo a crime passível de extradição, entre outros.

No mais, a nova lei traz como desafio a questão de que vários de seus artigos precisarão ser regulamentados para se tornarem eficazes, cujo prazo será de 180 dias a partir da sua publicação. Isso significa que a partir do momento em que a nova lei de Migração entrar em vigência, ainda demandará outros esforços para que as regulamentações sejam realizadas, o que exigirá novas atitudes proativas em favor do avanço humanitário ditado pela nova legislação e em prol do combate à xenofobia.

Oxalá o novo texto legal sirva de estímulo e exemplo à imperiosa necessidade da qual o mundo parece estar carente: o máximo respeito à dignidade humana e ampla eficácia dos direitos humanos e sociais contemplados em inúmeras normas internacionais.

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*Wagner Rocha D’angelis é advogado, historiógrafo e professor universitário, mestre e doutor em Direito. Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL).


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