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Concessões dos aeroportos: atacando a questão imobiliária

Diante da situação financeira precária em que se encontram as operadoras, o governo viu por bem abrir caminho para que novos grupos assumam os serviços e injetem dinheiro novo no sistema.

19/4/2017

Muito tem sido comentado na imprensa a respeito da MP 752, editada pelo governo Temer em novembro do ano passado e que cria a possibilidade de relicitação dos aeroportos concedidos à iniciativa privada nas rodadas de privatizações realizadas em 2012 e 2013.

Diante da situação financeira precária em que se encontram as operadoras - premidas pela obrigação de pagar outorgas bilionárias e fazer investimentos vultosos, enquanto vêm suas receitas minguar em virtude da crise econômica - o governo viu por bem abrir caminho para que novos grupos assumam os serviços e injetem dinheiro novo no sistema.

Nada menos do que 90 emendas foram apresentadas por parlamentares à MP 752 (que ainda está pendente de aprovação pelo Congresso), as quais visam regular questões diversas como o direito a indenização das atuais concessionárias, o perfil dos potenciais candidatos a assumir as concessões, multas por descumprimentos contratuais, etc. Poucas emendas, porém, parecem endereçar os reais problemas que permeiam esses projetos desde o nascedouro, e que, se não tratados adequadamente, voltarão a assombrar as operadoras, sejam elas quem forem.

É o caso da recente emenda apresentada pelo deputado Luiz Lauro Filho (PSB-SP), que procura equiparar as três concessões de 2012 (Guarulhos, Viracopos e Brasília) às duas de 2013 (Galeão e Confins) no que diz respeito ao direito do concessionário de fechar contratos nas áreas comerciais e de desenvolvimento imobiliário que ultrapassem o período da concessão do aeroporto. De fato, caso seja regulada adequadamente, essa matéria poderá dotar as operadoras de munição para atrair mais e melhores parceiros para o desenvolvimento comercial e imobiliário das áreas dos aeroportos e adjacências.

Contudo, outro ponto igualmente relevante tem sido negligenciado pelo Governo e por Suas Excelências até o momento. Trata-se da forma nada técnica (e muitas vezes equivocada) com que o governo trata da transmissão das áreas dos aeroportos às atuais operadoras.

A que título a concessionária recebe os imóveis do complexo aeroportuário? Qual a natureza jurídica da posse que ela exerce sobre tais imóveis? Essas são questões essenciais não apenas para a própria concessionária, mas para quem quer que com ela contrate o desenvolvimento ou o financiamento de empreendimentos comerciais e imobiliários nas áreas integrantes da concessão. Sim por que, se o direito da concessionária sobre os imóveis for frágil, igualmente frágil será o direito do locatário ou financiador do empreendimento erigido em tais imóveis, o que pode por em risco a própria viabilidade do empreendimento.

Ao tratar do tema, os contratos de concessão limitam-se a estabelecer que as áreas da concessão serão transferidas ao concessionário mediante a celebração de termo de aceitação e de permissão de uso. É sabido que o regime jurídico da permissão de uso é o mais frágil dentre todos os regimes existentes no direito administrativo. Ao regrar a permissão de uso de imóveis da União, a lei 9.636/98 estabelece que ela se caracteriza pela "utilização, a título precário, de áreas de domínio da União para a realização de eventos de curta duração, de natureza recreativa, esportiva, cultural, religiosa ou educacional...".

Nota-se, portanto, que o instituto da permissão de uso é totalmente incompatível com a concessão de serviços aeroportuários, que nada tem de precária e muito menos pode ser caracterizada como evento de curta duração. Os contratos de concessão dos aeroportos são celebrados por 20 anos, sujeitos a renovação. A posse das áreas dos aeroportos é elemento essencial à prestação dos serviços e, justamente por isso, deve ser assegurada durante todo o prazo da concessão.

Em vista disso, conclui-se que o termo "permissão de uso" foi empregado nos contratos de concessão dos aeroportos de forma absolutamente casuísta, sem nenhum rigor técnico, razão pela qual deve ser desconsiderado em qualquer análise mais aprofundada do tema.

Na ausência de regramento específico nos contratos de concessão, deve se aplicar aos bens imóveis utilizados na prestação dos serviços o mesmo regime jurídico atribuído aos demais bens e direitos objeto da concessão. Nesse caso, o regime adotado seria o da concessão de uso.

Segundo a doutrina, a concessão de uso é contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo sua destinação específica. O que caracteriza a concessão de uso e a distingue dos demais institutos assemelhados – autorização e permissão de uso - é o caráter contratual e estável da outorga do uso do bem público ao particular, para que o utilize com exclusividade e nas condições convencionadas com a Administração.

Embora seja mais forte do que a permissão de uso, a concessão de uso continua sendo um direito de natureza contratual/obrigacional, com as limitações que lhe são próprias. Ela não confere ao seu titular os benefícios inerentes aos direitos reais – como a oponibilidade erga omnes (ou seja, contra todos), o direito de sequela (que enseja a persecução do bem), a exclusividade, e a proteção por ação real (que prevalece contra qualquer que detenha o bem). De fato, o exercício do direito real independe da colaboração de terceiros, faz-se de per si, diretamente na relação entre o sujeito e a coisa, ao contrário dos direitos contratuais.

Não há dúvidas de que a outorga de direitos reais sobre as áreas dos aeroportos traria benefícios significativos às operadoras. Ela possibilitaria, por exemplo, que as operadoras desenvolvessem empreendimentos de vulto, como hotéis, shopping centers, edifícios garagem e centros logísticos por meio de fundos imobiliários. As regras atuais da CVM exigem que esses fundos invistam exclusivamente em direitos reais sobre imóveis, o que gera dúvidas quanto à viabilidade da sua utilização no contexto dos atuais contratos de concessão. Da mesma forma, as operadoras poderiam outorgar garantias reais imobiliárias aos financiadores, barateando ou muitas vezes viabilizando a captação de recursos para tais projetos.

A prerrogativa da União de outorgar direitos reais sobre imóveis a entes privados é prevista na legislação brasileira desde 1967, no mínimo. O decreto-lei 271/67, ainda em vigor, instituiu a concessão de direito real de uso de terrenos públicos, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de regularização fundiária, urbanização, industrialização, edificação... ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas.

Mais recentemente, a lei 9.636, de 1998, com alterações introduzidas pela lei 11.481, em 2007, estabeleceu que imóveis da União poderão ser cedidos, a critério do Poder Executivo, sob o regime da concessão de direito real de uso resolúvel de que trata o decreto-lei 271, a pessoas físicas ou jurídicas, em se tratando de interesse público ou social ou de aproveitamento econômico de interesse nacional.

Se por um lado a concessão de direito real de uso traz benefícios significativos às operadoras, por outro ela não acarreta nenhum ônus adicional ao Poder Público. O instituto está expressamente previsto na legislação em vigor e se adequa à perfeição às concessões dos aeroportos, que inquestionavelmente são matéria de interesse público e social, de suma importância para o desenvolvimento do país.

Se o Governo e o Congresso fizerem cada qual a sua parte, dotando as concessões com as ferramentas e instrumentos adequados, os agentes de mercado farão a sua parte. Basta foco e bom senso. Certamente não são necessárias 90 emendas para tanto.

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*Eduardo Herszkowicz é sócio do escritório Souza Cescon Advogados.

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