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Homicídio qualificado de agentes de segurança, parentes, cônjuges e companheiros: a questão do parentesco natural ou civil

A lacuna surge quando nos deparamos com uma situação de parentesco civil, constitucionalmente equiparado, aí há o problema, há uma inconstitucionalidade por insuficiência da norma ao não incluir o parentesco civil ou simplesmente falar em parentes até o terceiro grau, sem qualificar como civil ou natural.

27/3/2017

Em trabalho antecedente, já foi manifestado no seguinte sentido sobre a questão do parentesco civil em relação à configuração da qualificadora do artigo 121, § 2º., VII, CP, incluída pela lei 13.142/15:

Finalmente também entram no âmbito da norma os “parentes consanguíneos até o terceiro grau”. Destacou-se a palavra consanguíneos, tendo em vista que ela impõe uma limitação que se considera indevida ao rol de pessoas alcançadas pela lei. Tão indevida que chega à inconstitucionalidade por deficiência protetiva, ao menos formalmente (já que já se demonstrou que o dispositivo em comento, na prática, é inútil em face da existência da qualificadora do “motivo torpe”). Explico:

O parentesco consanguíneo é apenas uma das espécies de parentesco no Direito Civil, mais precisamente no Direito de Família. Trata-se daquele existente entre pessoas que têm um ascendente comum ou elementos sanguíneos comuns, sendo também chamado de parentesco biológico ou natural.

Logo de início, o artigo 1593 do Código Civil estabelece que o parentesco é natural (leia-se consanguíneo) ou civil. A Constituição Federal de 1988 não permite discriminações negativas entre os parentescos natural e civil, conforme consta de seu artigo 227, § 6º. , determinação esta que é seguida à risca, como não poderia deixar de ser, pelo artigo 1596 do Código Civil. Em face disso é inafastável a conclusão de que nada justifica a proteção limitada aos parentes consanguíneos, deixando a descoberto o parentesco civil. Exemplificando: se um sujeito mata o filho consanguíneo de um policial (parentesco biológico ou natural), é atingido pela norma sob comento. Mas, se mata o filho adotivo do mesmo policial (parentesco civil), não é alcançado. Não é possível consertar o equívoco legislativo mediante o recurso da analogia porque isso constituiria analogia in mallam partem, vedada no âmbito criminal. Efetivamente houve um grande equívoco do legislador nesse ponto específico. A única consolação em meio a essa barbeiragem legislativa é o fato de que a morte de um filho adotivo de um policial, por exemplo, em represália ou vingança pela atividade deste último, configurará tranquilamente o “motivo torpe” e fará do homicídio um crime qualificado da mesma maneira, tendo em vista o mero simbolismo da norma que veio a lume com a lei 13.142/15 (CABETTE, 2017).

Em sua obra, Rogério Greco, confirma nosso entendimento. No entanto, apresenta posição divergente do autor Francisco Dirceu de Barros, o qual pretende a aplicação a não consanguíneos, afirmando que isso não constituiria analogia in mallam partem, tendo em vista a proibição constitucional de discriminação por nós também citada (GRECO, Volume 2, 2016, p. 49 – 50) e (BARROS, 2015).

Em nosso entendimento o autor (Barros) se equivoca e mistura indevidamente interpretação de normas constitucionais, as quais admitem ampliação, com normas penais gravosas, que não o admitem, especialmente, tendo em vista que o caso pode ser contornado perfeitamente mediante o uso da qualificadora do “motivo torpe”. A proposta de Barros consiste em consertar um erro de inconstitucionalidade por insuficiência com um subsequente erro de inconstitucionalidade por excesso, violando o princípio da legalidade sem qualquer necessidade. Ademais, o autor, Francisco Dirceu de Barros, confunde uma determinação de equiparação normativa (quer dizer meramente jurídica) com uma igualdade ou equiparação de fato, no mundo real. Explico: a CF, o CC, o ECA etc. equiparam, para efeitos legais, e tão somente isso, consanguíneos e adotivos (parentesco natural e legal). Isso é para fins legais, para que não haja discriminação. Mas, isso não quer dizer que não exista mais no mundo real, no mundo dos fatos, no mundo da vida pessoas que são parentes de sangue e outras que são adotivas, cujo parentesco é civil. Isso existe de fato e lei alguma vai mudar isso nunca. O que não pode ser conferido é tratamento discriminatório. Outro caso, por exemplo, o CC diz que embarcações e aeronaves são equiparadas a imóveis. Ora, por causa disso embarcações e aeronaves não se movem mais na vida real? É claro que não. Continuam sendo móveis de fato, apenas não o são de direito. Ou seja, quando o CP fala em "parentesco consanguíneo" não está falando de algo inexistente que acabou ou mesmo poderia acabar por força de lei ou mesmo de uma constituição. A questão não é normativa, é de fato. Existe esse parentesco e o civil. Isso simplesmente existe.

O problema é que no mundo científico e, mais drasticamente ainda, no jurídico, o senso comum, o “mundo da vida” tem sido desprezado em prol de uma ilusão normativa que entorpece a hermenêutica.

“A reificação é a apreensão dos produtos da atividade humana como se fossem algo diferente de produtos humanos, como se fossem fatos da natureza, resultados de leis cósmicas ou manifestações da vontade divina” (BERGER, LUCKMANN, 1990, P. 122).

Conforme aduz Muricy, com a “técnica legislativa” se tem a pretensão “de neutralizar diferenças, pela ênfase na generalidade da norma, e de argumentar em favor de uma racionalidade formal tida por imanente ao fenômeno jurídico”. Assim

“O pano de fundo da existência real, de sua multifariedade, é ignorado, em favor de uma visão reificante do fato ou da norma, visão esta que cristaliza o direito na norma e se inclina a favorecer os aspectos formais do raciocínio, como modo seguro de conhecer o direito, de olho em sua firme aplicação” (MURICY, 2015, p. 20 – 21).

Quando a lei fala no consanguíneo, pretender equiparar ali o civil para fins penais em prejuízo do réu, não é possível. É possível ampliar disposições, com base inclusive nessa questão dos parentescos, casamentos etc. para beneficiar o réu na seara penal. Exemplo: quando, nos crimes contra o patrimônio, se fala que o cônjuge que furta o outro cônjuge não recebe pena, isso é aplicável à união estável e ao casamento homoafetivo. Porque é em benefício do réu. Se fosse para prejuízo, não poderia, apesar da equiparação constitucional.

A alegação de Barros de que não há analogia porque a CF estabelece uma equiparação é fruto de uma tremenda confusão hermenêutica. Trata-se de uma falta completa de compreensão do que é alegado quando se fala em analogia nesse caso. Realmente não há lacuna a princípio, porque exatamente a lei é clara, só se aplica ao parentesco consanguíneo, não há nada, a princípio, a complementar. Os parentescos equiparados pela CF, não se tornaram “coisas” por força normativa. Eles não se amalgamaram e viraram, por natureza, uma coisa só. São fatos reais diversos e a menção do legislador é distintiva (pode até ser indevida, mas existe). A lacuna surge quando nos deparamos com uma situação de parentesco civil, constitucionalmente equiparado, aí há o problema, há uma inconstitucionalidade por insuficiência da norma ao não incluir o parentesco civil ou simplesmente falar em parentes até o terceiro grau, sem qualificar como civil ou natural. Nessa hora é que, ao tentar aplicar a norma gravosa para aquele que matou o filho adotivo, por exemplo, se está fazendo, indevidamente, uma analogia, onde ela não cabe, seja porque a lei é clara, seja porque seria in mallam partem. A constituição não é CP! Barros é que propõe a analogia, afirmando não existir analogia.

A crítica sobre a inconstitucionalidade cabe sim à doutrina e a solução no momento é a aplicação do motivo torpe, até que se conserte a lei.

Outro equívoco é pretender, por meio da doutrina, ampliar o conteúdo de norma penal para atingir algo que ela não menciona, usando uma constatação doutrinária, meramente doutrinária, de inconstitucionalidade para sustentar-se. Ora, somente o STF pode declarar a inconstitucionalidade de normas, seja por excesso, seja, como no caso concreto, por insuficiência protetiva. Até que isso ocorra, não há possibilidade de interpretar a lei contra a sua letra para impor uma qualificadora ao réu, ainda mais sendo fato que há uma norma (motivo torpe) através da qual se contorna toda a situação. Seria o caso de violar o princípio da legalidade sem motivo algum plausível.

Por derradeiro, não é demais apontar uma falha técnica no próprio título do artigo de Barros. O autor denomina as vítimas potenciais dessa qualificadora em discussão de “agentes passivos” (sic). Observe-se que o correto seria “sujeitos passivos”. A expressão “agentes passivos” é autofágica e contraditória. Ora, agente, é aquele que age, e não o que sofre a ação. Portanto, a tese já começa a desmoronar na terminologia inicial do título (BARROS, 2015).

Em suma, é insustentável pretender ampliar o conteúdo da norma penal contida no artigo 121, § 2º., VII, CP para alcançar o parentesco civil. Isso seria sim um exercício de analogia in mallam partem, tendo em vista a referência legal ordinária tão somente aos parentes consanguíneos. Não há dúvida que a discriminação é inconstitucional, mas, por agora, a solução é a aplicação da qualificadora do “motivo torpe”, até que a lei seja devidamente ajustada. Outra pretensa solução é tentar remediar um mal com outro mal; e a própria sabedoria popular já constatou que isso nunca funciona.

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BARROS, Francisco Dirceu. Os agentes passivos do homicídio funcional: Lei 13.142/2015. A controvérsia da terminologia autoridade e filho adotivo como agente passivo do homicídio funcional. Disponível em www.jus.com.br, acesso em 05.08.2015.

BERGER, Peter, LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1990.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Homicídio e lesões corporais de agentes de segurança pública e forças armadas: alterações da Lei 13.142/15. Disponível em www.jus.com.br, acesso em 18.03.2017.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume II. 13ª. ed. Niterói: Impetus, 2016.

MURICY, Marília. Senso Comum e Direito. São Paulo: Atlas, 2015.

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*Eduardo Luiz Santos Cabette é delegado de polícia, mestre em Direito Social, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia, professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal, e Processual Penal Especial na graduação e na pós-graduação do Unisal e membro do grupo de pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do programa de mestrado do Unisal.

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