O art. 19 do Código de Ética da OAB dispõe:
"Art. 19. Os advogados integrantes da mesma sociedade profissional, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não podem representar, em juízo ou fora dele, clientes com interesses opostos."
A propriedade industrial se insere em um ramo mais amplo do Direito, denominado propriedade intelectual. Esta, por sua vez, inclui-se tradicionalmente entre os direitos reais, dos quais o mais abrangente é o direito de propriedade, que se exerce sobre bens imateriais.
Essa colocação não é pacífica, pois muitos especialistas do direito autoral o incluem entre os direitos de personalidade, como o direito à imagem e à privacidade, e não entre os direitos reais. Porém, mesmo que se considere que, pelo aspecto patrimonial, o direito de autor também seja uma forma de propriedade sobre o fruto da criação intelectual, subsiste outra vertente dos direitos de autor, os denominados direitos morais de autor, que, sem dúvida, se classificam como direitos de personalidade. Assim são o direito à integridade da obra, o direito de inédito e o direito de ligar o nome à obra ou de tirá-la de circulação, direitos esses que competem ao autor como pessoa e são de caráter inalienável, imprescritível e irrenunciável.
Essa interferência com os direitos de personalidade não se restringe aos direitos de autor, mas ocorre também com os direitos do inventor, seja quanto ao direito de inédito (o inventor não pode ser obrigado a revelar sua invenção), seja quanto ao direito de ter seu nome de criador mencionado na patente.
Mesmo as marcas e o nome comercial ou de empresa, que o Direito trata como uma forma de propriedade, adentram os direitos de personalidade quando formados por nome ou imagem de pessoa, ou por obras artísticas ou seus títulos.
Assim, não podemos encarar a propriedade intelectual exclusivamente sob o ângulo dos direitos reais sobre bens imateriais. Por outro lado, tais bens imateriais são objeto de negócios jurídicos de alienação ou licença de exploração, matéria dos direitos obrigacionais. Nesse ramo do Direito, também se incluem as obrigações decorrentes de atos ilícitos de violação de segredo industrial ou outros atos de concorrência desleal.
Dessa forma, a propriedade intelectual se acha presente nas três categorias dos direitos subjetivos: os direitos reais, os direitos de personalidade e os direitos obrigacionais.
Caso se restrinja, entretanto, apenas à vertente patrimonial desses direitos, a propriedade intelectual irá consistir em direitos reais sobre bens imateriais.
Entre os bens imateriais, sobrelevam os que são fruto da criação intelectual: os direitos de autor e os direitos do inventor, ou do autor de criações industriais, na expressão adotada pela Constituição de 1988.
O reconhecimento legislativo relativo aos direitos sobre as criações intelectuais é fruto da Revolução Francesa, de 1789. No mesmo ano em que foi promulgada a Lei Chapelier, em 1791, que extinguiu os privilégios das corporações de ofícios e consagrou a liberdade de indústria, a Assembleia revolucionária votou leis de proteção aos autores e aos inventores.
Na discussão dos projetos, argumentava-se ser a propriedade sobre o fruto do trabalho intelectual a mais sagrada das propriedades, pois não resultava da ocupação (como a propriedade sobre a terra) e o autor trazia ao mundo uma obra antes inexistente.
Note-se, assim, que essa categoria de bens foi instituída com caráter nitidamente concorrencial, para substituir o sistema fechado das corporações de ofícios.
Os direitos de autor e os direitos do inventor tomaram rumos diversos: os direitos autorais passaram a fazer parte do direito civil, sendo que sua tutela não depende de formalidades de registro ou de pagamento de taxas, e sua duração é longa, independentemente de exploração da obra; os direitos sobre as criações industriais fazem parte do direito comercial, sendo que sua tutela depende da concessão de um título pelo Estado (a patente), estão sujeitos a taxas de manutenção, seu prazo de proteção é mais curto e a lei estabelece sanções para a não exploração, como a licença compulsória e a caducidade por falta de uso. A Lei de Propriedade Industrial brasileira, em vigor desde maio de 1996, estende essas sanções para o caso de uso abusivo das patentes ou abuso de poder econômico.
Mais uma vez, ressalta-se o caráter concorrencial desses bens.
Alguns tipos de criação, como o design, o software, os circuitos integrados e as variedades vegetais, passaram a ser objeto de leis especiais, que lhes conferem um tratamento sui generis e que se preocupam com salvaguardas que impeçam sua exploração de forma abusiva.
O sucesso do sistema de proteção à propriedade industrial, mediante a concessão de um título de exclusividade conferido pelo Estado, fez com que ele se estendesse às marcas por meio do registro. Criou-se, assim, um novo bem imaterial, objeto dessa forma especial de propriedade, embora essa tutela não seja, no caso, conferida em reconhecimento a um ato de criação, mas para o fim de reprimir a concorrência desleal. Esse direito compete ao empresário, não ao autor. Dessa forma, as marcas passaram a integrar o quadro da propriedade intelectual, ao lado dos direitos autorais e dos direitos sobre as criações industriais. Os direitos sobre os sinais distintivos e sobre as criações industriais compõem a propriedade industrial. No mundo moderno, porém, as obras intelectuais são também objeto do tráfico comercial, por meio das indústrias editorial, gráfica, fonográfica e de empresas de comunicações e diversões, sujeitando-se, em consequência, às normas reguladoras da concorrência.
Assim, se os usuários do sistema eram, inicialmente, os autores e os inventores, hoje o usuário principal é a empresa, que exige do Estado e dos organismos internacionais uma proteção mais eficiente para sua propriedade intelectual, que passa a representar valor substancial em seus ativos. Outro usuário moderno do sistema são os institutos de pesquisa e as universidades, que vislumbram obter do sistema rendimentos para custear suas atividades. No Brasil, essas instituições ainda não estão aparelhadas para proteger com eficiência suas criações e até mesmo suas marcas, quando se voltam ao mercado.
É natural que assim seja, pois o caráter nitidamente empresarial e concorrencial desse ramo do Direito parece inadequado ao meio científico e, principalmente, ao ambiente universitário. De agora em diante, um professor universitário que queira divulgar, perante os meios acadêmicos, o resultado de suas pesquisas terá de pensar em solicitar uma patente, antes que um colega, conterrâneo ou estrangeiro, faça-o, em prejuízo de sua instituição. Essa instituição, por sua vez, terá de investir recursos para requerer patentes para as invenções de seus pesquisadores e, principalmente, criar serviços para divulgar internamente o novo espírito mercantilista que adentra as universidades.
Esses recursos são necessários, ainda, para solicitar essas patentes em outros países, se se tratar de uma invenção relevante, caso contrário sua exploração por terceiros nesses países será livre, sem nenhuma compensação pecuniária para o inventor e para a instituição.
Dessa forma, as universidades e os centros de pesquisas, particulares ou públicos, passam também a ser agentes da globalização da economia, mesmo que contra o espírito conservador da tradição universitária.
Em 31 de dezembro de 1994, entrou em vigor, no Brasil, o decreto 1.355, que promulga o chamado acordo TRIPs, instrumento da globalização da propriedade industrial.
A lei brasileira de propriedade industrial – lei 9.279, de 1996 –, incorpora as normas do acordo internacional a que o Brasil aderiu. Todas as formas de propriedade intelectual, incluindo os chamados setores emergentes, passam a receber tutela em forma de propriedade.
Esse novo espírito foi objeto de análise em livro editado em 1994, de autoria de Fred Warshofsky, sob o título The patent wars: the battle to own the world’s technology.
A propriedade intelectual se tornou a nova riqueza das nações, portanto é preciso adaptar-se aos novos tempos.
De um lado, como usuários do sistema, os centros de pesquisas necessitam tomar consciência da competição e organizar-se internamente para esse fim. Do outro lado, estão os órgãos administrativos de concessão de direitos de propriedade intelectual: o INPI e os diversos órgãos descentralizados de registro de direitos de autor.
É preciso que o governo federal se conscientize de que o INPI não é mais um simples órgão administrativo de registros cartoriais, mas um instrumento de política econômica nos novos tempos. Um ponto positivo é o fato de o INPI ter aproximado-se funcionalmente do Cade para a repressão do abuso do poder econômico exercido por meio de direitos de propriedade industrial. Mas o INPI necessita de urgente apoio do governo federal para que possa exercer eficientemente sua relevante função social e econômica, a começar pela instalação de sua sede legal em Brasília.
No entanto, a propriedade intelectual não se restringe à propriedade industrial. O Brasil possui um sistema sui generis de registro descentralizado de direitos de autor, com exceção dos direitos autorais sobre programas de computador, que foram delegados ao INPI pelo Conselho Nacional de Direito Autoral.
As demais facetas do direito de autor, como os livros, as obras de belas-artes, o cinema, a arquitetura, acham-se dispersas pelas mais variadas instituições, diferentemente do que ocorre em outros países que possuem um Copyright Office ou uma Dirección Nacional de Derecho de Autor. É fácil imaginar os abusos e as confusões que decorrem desse sistema retrógrado.
A lei 9.279/96, em seu art. 241, de forma mais didática que imperativa, autoriza "o Poder Judiciário [...] a criar juízos especiais para dirimir questões relativas à propriedade intelectual". Embora não se deva abusar da criação de juízos especiais, é certo que o sistema emperrará se, no momento de dar eficácia ao direito, ficarem as partes sujeitas aos riscos e às demoras judiciais.
O Brasil se obrigou, pelo acordo TRIPs, a garantir a eficácia dos direitos de propriedade intelectual, devendo, por isso, modernizar os órgãos administrativos e judiciários envolvidos.
Do lado privado, para completar o tripé, existe a figura do agente da propriedade industrial. Da mesma forma que, por princípio constitucional, o advogado é parte essencial para a aplicação da Justiça, o agente da propriedade industrial é elemento essencial para o funcionamento do sistema de propriedade industrial/intelectual no Brasil.
É inútil o INPI anunciar pela Voz do Brasil (outro resquício do entulho burocrático) que está à disposição dos usuários para atendê-los sem a intermediação do agente da propriedade industrial. Os que experimentaram fazê-lo conhecem as consequências.
O agente é um profissional que representa a parte perante o INPI e que deverá ter conhecimento jurídico e técnico. É uma atividade multidisciplinar, mas que se insere no âmbito da concorrência, que tisna todo o sistema da propriedade intelectual.
É verdade que existem muitos profissionais atuando nessa área sem a qualificação técnico-jurídica necessária. Em minha opinião de advogado e professor de direito, o exercício dessa atividade deveria ser restrito aos advogados, assessorados por peritos engenheiros, quando uma ação tem por objeto uma patente.
Durante a vigência do Código da Propriedade Industrial de 1971, a atividade de representação perante o INPI esteve aberta a todos. À época, essa abertura foi providencial, pois a atividade estava restrita a certos grupos corporativos que, como verdadeiros cartórios, monopolizavam o exercício da profissão.
Outro cunho da Lei de 1971 foi seu enfoque tendenciosamente nacionalista, o que trouxe como efeito a polarização dos usuários do sistema. As empresas estrangeiras se concentraram junto a um pequeno número de escritórios que defendiam seus interesses, muitas vezes legítimos. As empresas nacionais, sem pensar nos desafios da globalização, passaram a se servir de pequenos agentes, escolhidos exclusivamente pelo critério do menor preço (critério esse utilizado pelos órgãos públicos de pesquisas, por meio de concorrência).
Embora o sistema internacional de propriedade industrial tenha adaptado-se aos novos desafios, esse terceiro pé do tripé permanece tão antiquado e conservador como se estivéssemos no início do século passado.
Obviamente, mesmo que se modernize o INPI, que se centralize o registro de direitos autorais e o Poder Judiciário crie juizados especiais, o sistema não pode funcionar se a representação das partes perante o INPI não tiver caráter concorrencial. Necessita-se, nessa área, de uma Lei Chapelier, que acabe com as corporações de ofícios.
A regra necessária a ser instituída é que um agente de propriedade industrial não possa atender empresas concorrentes. Parece óbvio, mas não é assim.
O Ato Normativo INPI 142, de 25 de agosto de 1998, que instituiu o Código de Conduta Profissional do Agente da Propriedade Industrial1, estabelece em seu item 9:
O Agente da Propriedade Industrial ou os agentes integrantes da mesma sociedade profissional de Agentes da Propriedade Industrial, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não devem representar junto ao INPI, em um processo específico, simultaneamente, clientes em conflito de interesse.
Quando a Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial (Abapi) preparou o anteprojeto do Código de Conduta, não havia o trecho acima grifado. O texto rezava que "o Agente [...] ou os Agentes [...] não devem representar junto ao INPI clientes em conflito de interesses".
Inexplicavelmente, no Ato Normativo foi acrescentado: "em um processo específico, simultaneamente". Esse acréscimo tornou absolutamente inócua a proibição da representação em conflito de interesses.
Ao que consta, não houve nenhum protesto da Abapi contra esse acréscimo.
A propósito, lembro-me de um comentário do velho professor Canuto Mendes de Almeida, que era ministro do governo Getúlio Vargas quando da edição do Código da Propriedade Industrial de 1945. Ele me disse: "Veja na parte que cuida da procuração de estrangeiro que houve uma troca de palavras no corredor do Catete". Examinando o texto do decreto-lei 7.903/45, encontrei o art. 214, que estabelecia o seguinte: "a pessoa domiciliada no estrangeiro, para depositar marca ou patente, deverá, desde logo, constituir procurador hábil, domiciliado no país, que a represente perante o Departamento Nacional da Propriedade Industrial".
O parágrafo único desse artigo, no entanto, saiu com a seguinte redação: "O mandato, que poderá conter poderes para receber primeiras citações, será arquivado no Departamento, na forma do disposto no artigo precedente".
Evidentemente, trocou-se deverá por poderá, isso foi devidamente corrigido nas leis subsequentes, pois o texto daquele parágrafo tal como foi publicado tornou-se, também, absolutamente inócuo.
A concentração de representação de partes em conflito de interesses não prejudica somente as partes representadas, que, normalmente, até desconhecem o fato, porque os órgãos de classe tentam coibir o disclosure, sob a alegação de que o envio de comunicações ao mercado é falta de ética, o que é muito cômodo para manter o status quo. Essa concentração, na verdade, inibe o desenvolvimento de agentes de propriedade industrial concorrentes que atendam a partes que competem no mercado.
Em suma, impede o desenvolvimento do setor de serviços, que constitui um elemento essencial para que todo o sistema de propriedade industrial brasileiro funcione.
Nem se diga que essa é uma questão que deve ser resolvida no mercado, mediante a competição entre as empresas de serviços concorrentes. A concentração da atividade em poucas mãos, mediante o artifício de atendimento em conflito de interesses, fere as normas da concorrência e impede que o sistema deslanche para a modernidade.
O INPI em sua resolução 4/2013 dispôs em seu art. 9º:
"Art. 9º O agente da propriedade industrial ou os agentes integrantes da mesma sociedade profissional de agentes da propriedade industrial, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não devem representar junto ao INPI, em um processo específico, simultaneamente, clientes em conflito de interesse."
Já a ABAPI em seu Código de Ética de 2013 preferiu omitir-se acerca do tema.
Finalmente, o art. 5º do Código de Ética da ASPI dispôs corretamente:
"Artigo 5º - Constitui infração a este Código os seguintes procedimentos:
[...]
(ii) atender clientes em conflito de interesses; e"
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*Newton Silveira é advogado, mestre em Direito Civil, doutor em Direito Comercial e professor senior na pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados.