Migalhas de Peso

Diferenciação dos preços conforme o meio e prazo de pagamento

É questionável que a MP 764 possa vir a fomentar a economia, conforme preceitua sua exposição de motivos, mas certamente prejudicará o consumidor que deseja adquirir produtos e serviços com uso de meios eletrônicos de pagamento, mais seguros e eficientes.

9/3/2017

Em 27 de dezembro passado, a Presidência da República editou a Medida Provisória 764/16 ("MP 764"), que poderá exercer expressiva influência sobre as relações de consumo, especialmente se for aprovada pelo Legislativo. Seu artigo 1º, que entrou em vigor na data de sua publicação na imprensa oficial, dispõe que "fica autorizada a diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público, em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado".

Conforme divulgado pela Agência Senado em 27/12/16, a MP 764 "faz parte de um pacote de medidas microeconômicas [...] para aumentar a produtividade do país", pois permitiria aos comerciantes cobrarem um preço diferente caso o produto ou serviço "seja pago à vista ou no cartão de crédito ou débito".

Ocorre que o assunto foi veiculado por MP, de efeitos imediatos, que é mecanismo excepcional, reservado constitucionalmente apenas a matérias de urgência e relevância, quando as casas do Congresso Nacional já vinham debatendo o tema com a sociedade brasileira, especialmente no âmbito do projeto de decreto legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo, que tramitou primeiro no Senado Federal, sob n.º 31, de 2013 ("PDS 31/13"), por iniciativa do Senador Roberto Requião (PMDB/PR) e agora tramita na Câmara dos Deputados, sob n.º 1.506, de 2014 ("PDC 1506/14"), onde aguarda na Comissão de Defesa do Consumidor, desde 17/11/16, a votação do parecer elaborado pelo deputado José Carlos Araújo (PR/BA), no qual opina pela rejeição da proposta legislativa.

A Câmara dos Deputados possui ao menos outras duas proposições que objetivam proibir a prática de diferenciação de preços em função do meio ou prazo de pagamento, pela introdução ao Código de Defesa do Consumidor de dispositivos que a tornem abusiva (e proibida), caracterizando-a também como infração à ordem econômica (projetos de lei 1.299, de 1991 – "PLC 1299/91", e 4.327, de 2016 – "PLC 4327/16").

Vale registrar os argumentos apresentados em 17/11/16, no PDC 1506/14, pelo deputado federal relator do parecer contrário à diferenciação de preços: (i) a prática é abusiva; (ii) a proposição seria contrária ao entendimento firmado pelos tribunais brasileiros; (iii) a prática configura vantagem excessiva do fornecedor; (iv) os fornecedores auferem benefícios ao disponibilizar meios mais seguros de pagamento; (v) os consumidores já arcam com as despesas pela utilização do cartão de crédito, por exemplo, sua anuidade; (vi) o uso do meio eletrônico não deve ser discriminado, mas sim incentivado; e (vii) a implementação da medida mostra-se de duvidosa aplicação prática e improvável operacionalização.

Em audiência pública sobre o tema, em 27/5/08, perante o Senado Federal, o Departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos do Banco Central do Brasil apresentou que a prática de diferenciar os preços, em razão do meio ou prazo de pagamento, é abusiva e, além de ser constantemente questionada no Poder Judiciário, é reconhecidamente prejudicial ao consumidor e proibida por diversos órgãos governamentais. Veja-se, por exemplo: Portaria Federal 118, de 11/3/94, do Gabinete do ministro da Fazenda, Nota Técnica 103, de 12/5/04, da Coordenação Geral de Assuntos Jurídicos do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, da extinta Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, e Resolução 34, de 22/5/89, do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor. Entidades de defesa do consumidor, tanto governamentais quanto da sociedade civil, acreditam que há prejuízo na diferenciação de preços ora tratada, conforme nota divulgada em 2/1/17 pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e ProconsBrasil (Associação Brasileira de Procons).

Importa dizer, ademais, que a prática permitida pela MP 764 vem sendo alvo de questionamento no Poder Judiciário, sendo possível apontar, por exemplo, o julgamento no STJ do Recurso Especial 1.133.410/RS pela 3ª Turma, no qual se decidiu que o custo do uso do cartão de crédito deve ser arcado integralmente pelo fornecedor, que recebe vantagens econômicas ao ofertar a facilidade a seus clientes e consumidores (como o aumento de vendas e a redução do risco de inadimplemento), não se admitindo, portanto, a diferenciação do preço do produto ou serviço para pagamentos com cartão, o que revelaria "prática de consumo abusiva" (Informativo STJ 427).

Tendo em vista que a MP 764 não obriga o fornecedor a reduzir os preços nos pagamentos à vista, mas apenas permite essa diferenciação, não se impede o efeito prático provável que será o repasse dos custos marginais do fornecedor ao consumidor que optar pelo uso da tecnologia dos cartões de crédito e débito, e não a oferta de preços promocionais para aquisição de bens e serviços em espécie ou à vista. Foi o que ficou amplamente esclarecido no âmbito do PDS 31/13 e do PDC 1506/14, acima mencionados.

A isso se somam os resultados apurados por especialistas em economia e finanças, como é o caso do estudo realizado pela Moody’s Analytics, especificamente sobre o impacto dos meios eletrônicos de pagamento no crescimento econômico ("The Impact of Electronic Payments on Economic Growth") em setenta países, de diversos níveis de desenvolvimento econômico, entre 2011 e 2015. No estudo, verificou-se que a adoção das novas tecnologias como forma de pagamento trouxe benefícios econômicos inquestionáveis às localidades pesquisadas, dentre os quais se sobressaíram: (i) acréscimo de 296 bilhões de dólares ao PIB dos países pesquisados, equivalentes à criação em média de 2,6 milhões de novos empregos por ano, (ii) redução da informalidade e negócios ilícitos e/ou não declarados, (iii) otimização da cobrança de tributos pelos governos. Sustenta-se além disso, que a expansão de pagamentos eletrônicos poderia ensejar um crescimento econômico, pois cada 1% de expansão do uso dos pagamentos eletrônicos produziria em média um aumento de aproximadamente 104 bilhões de dólares no consumo de bens e serviços, ou aproximadamente um aumento de 0,04% no PIB mundial. Em suma, os estudos da Moody’s Analytics concluem que o incremento do uso dos meios eletrônicos de pagamento poderia contribuir para o crescimento econômico, exatamente o contrário das premissas enunciadas na exposição de motivos da MP 764.

Portanto, no cenário narrado, é questionável que a MP 764 possa vir a fomentar a economia, conforme preceitua sua exposição de motivos, mas certamente prejudicará o consumidor que deseja adquirir produtos e serviços com uso de meios eletrônicos de pagamento, mais seguros e eficientes.

Em vista do exposto, espera-se que a MP 764 seja rejeitada pelo Congresso Nacional, a fim de que a matéria seja amplamente discutida pela sociedade brasileira, levando-se adiante o processo legislativo adequado, com a votação das proposições que já tramitam no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. Com isso, evita-se que o consumidor seja surpreendido por medidas inesperadas e onerado com custos que são responsabilidade do fornecedor, prestigiando-se o avanço das relações de consumo.

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*Sylvio Paes de Barros Jr é sócio de Araújo e Policastro Advogados e equipe Contencioso Cível.

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