Está em trâmite na Câmara dos Deputados um PL com o seguinte teor:
Assegura aos clérigos o exercício dos atos litúrgicos em estrita conformidade com os respectivos ordenamentos religiosos.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º É livre de interferência do Poder Público a atividade sacerdotal, sendo assegurado aos clérigos o exercício dos atos litúrgicos em estrita conformidade com os respectivos ordenamentos religiosos.
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
A justificativa para tal projeto é que "as religiões estabelecidas têm o direito de conduzir seus ritos, doutrinas e dogmas e seus atos litúrgicos de acordo com os ditames dos respectivos códigos religiosos".
De pronto, tal qual se apresenta, o Projeto me parece 'raso’ e ao mesmo tempo, inócuo.
Explico.
Raso, porque é omisso quanto a abrangência dos citados 'atos litúrgicos'. Ora, é cediço que nos dias atuais e até por conta da liberdade religiosa que gozamos, qualquer cidadão pode se dispor a estabelecer uma igreja, criar uma doutrina e respectivos 'atos litúrgicos'. Em tais condições, é bastante questionável a permissão abrangente das práticas religiosas.
Por si só o conceito constitucional já é bastante amplo; a lei confere o direito ao livre exercício dos cultos religiosos, garantindo a proteção 'na forma da lei' aos locais de culto e suas liturgias. Porém, não há regramento legal específico para todas as questões eclesiásticas. E, s.m.j., o PL em questão, não consegue abranger nada a mais do que a nossa Carta Magna já abrange.
Tal situação aflora discussões relacionadas a este assunto. Religião, por si só, já é um assunto polêmico; buscar legislar sobre seus meandros parece algo impossível. Como estabelecer critérios legais para crenças? Qual o limite da abrangência das crenças no âmbito legal?
Ora, a liberdade religiosa não é apenas um direito, mas um complexo de direitos, compreendendo:
- liberdade de consciência;
- liberdade de crer ou não crer;
- liberdade de culto enquanto manifestação da crença;
- direito à organização religiosa;
- respeito à religião.
A liberdade religiosa mais interna - a da consciência - é inatacável por qualquer poder que seja externo à individualidade do cidadão; é a possibilidade de crer ou não. Ou seja, a liberdade de crença não permite interferência do Estado, vez que é um elemento da própria individualidade. A liberdade de culto é a exteriorização da liberdade de religião que reside interiormente.
Tratamos, portanto, de direitos subjetivos, imateriais, complexos por sua própria natureza, que abrange tanto a liberdade do indivíduo, isoladamente, como a liberdade da Igreja, promotora das práticas religiosas.
Caímos no dilema do alcance deste amplo direito e, consequentemente, do alcance de um projeto de lei como o ora em discussão.
Em nome deste direito, as Igrejas estão imunes a qualquer regramento? Ou se não estão, poderiam estar, como parece pretender o PL ora indicado, ao menos no que tange as liturgias?? Evidente que não e esta é uma questão que a própria evolução da ciência do Direito Eclesiástico tem procurado lapidar.
Via de regra, a mesma liberdade religiosa que permeia as práticas individuais são as que permeiam as sociedades religiosas.
No encontro destes interesses – individuais e coletivos -, podemos divagar nos limites da liberdade, já que carecemos de leis que possam especificar toda a matéria que abrange a esfera das religiões.
Isto porque, a liberdade religiosa é campo fértil para diversas atuações; o que é condenável para uns, é razoável para outros. Afinal, cada um tem a liberdade de crença! Há casos, por exemplo, de religiões que têm como ritual tomar um chá alucinógeno. Num extremo, podemos também citar as seitas que fazem sacrifícios de animais. Poder-se-ia aceitar tais práticas como usufruição da liberdade litúrgica, considerando-se o conceito da liberdade de culto e o texto do dito PL???
Definitivamente, não.
À ausência de lei específica para regulamentar tantas situações intrínsecas das religiões, parece-nos que a liberdade religiosa resulta na fragilidade ou vulnerabilidade do próprio direito que apregoa.
Assim, o que temos como fundamentação e efetiva aplicação da liberdade religiosa, nada mais é (ou deveria ser) do que a observância aos princípios basilares do Direito, como subsídio à vacância de lei.
Vejamos alguns:
- Princípio da igualdade ou isonomia das partes;
- Princípio da legalidade (a lei como base primária para imputação de penalidades);
- Princípio da moralidade;
- Princípio da impessoalidade.
Portanto, não se terá como aceitável práticas litúrgicas que não respeitem os conceitos legais de ordem pública, sendo certo que os casos oriundos das relações que envolvam a liberdade religiosa, deverão, necessariamente, ser avaliados com cautela tal, donde se extraia o melhor da mescla entre o respeito à nossa Constituição, às lei Pátrias e a todos os princípios norteadores do nosso direito.
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*Taís Amorim de Andrade Piccinini é titular do escritório Amorim & Leão Advogados.