O jusfilósofo Gustav Radbruch formulou a consagrada "fórmula de Radbruch", também conhecida como a tese fraca do não-positivismo que pode ser assim expressa: o direito havido como "extremamente injusto" não é, e não pode ser considerado direito - decorrendo daí a invalidação da lei.
Entretanto, não é qualquer vício que invalida a lei, mas sim aqueles defeitos extremamente injustos.
Sintetizando, "a lei extremamente injusta não é lei".
A ideia pode ser invocada em relação à análise dos desdobramentos da recente paralisação de atividades dos policiais militares do Estado do Espírito Santo.
A CF veda aos militares o exercício do direito à greve (artigo 142, parágrafo terceiro, inciso IV). Assim, é certo que os militares neste e noutros pontos experimentam uma capitis diminutio em relação aos demais trabalhadores do país.
Contudo, impõe-se que seja analisada a vedação à greve pelos militares de modo sistemático num esforço de ponderação (balancing) de todos os valores e princípios prestigiados pela Constituição.
Nessa toada impõe-se indagar: o status militar artificiosamente imposto a agentes da segurança pública – policiais – retira-lhes a garantia da dignidade como pessoas humanas na acepção assegurada pela constituição?
Mais, uma vez havido o atentado à dignidade – mormente no respeitante ao necessário à subsistência – reclamo mesmo de alimentos, por quanto tempo devem os militares suportar a condição iníqua?
O juramento de defender a sociedade com a própria vida autoriza os governos a submeterem os militares à remuneração indigna em contexto de claro abuso de direito? (técnica de atender reclamos remuneratórios as categorias com poder de pressão – sindicalização e greve - e jogar para as calendas gregas a revisão salarial dos militares).
Eis as respostas óbvias a todas as indagações: o status militar não é supressivo da garantia da dignidade da pessoa humana, o militar não pode e não deve suportar iniquidade remuneratória – afinal lhe é assegurado, como a todos os agentes públicos, a revisão geral anual dos vencimentos e, por fim, o juramento de sacrifício da própria vida não o é, por óbvio, de perecimento por inanição.
Pode-se, portanto, afirmar na linha dworkiniana (Ronald Dworkin 1931-2013) que os militares são titulares do equal concern and respect (igual consideração e respeito), devido a todas as pessoas.
Assim, deve-se ter em conta que não se nega aos militares o manto protetivo do princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1o da CF), afinal, sob a farda há um ser humano com todas as necessidades e vicissitudes próprias dos que vivem em sociedade.
Como corolário da dignidade assegurada a todos os brasileiros está a proteção aos valores sociais do trabalho em todas as suas facetas – proibição do trabalho escravo, justa remuneração, irredutibilidade de vencimentos etc.
A CF reconhece expressamente a greve como direito fundamental, tanto para os trabalhadores em geral (art. 9º), quanto para os servidores públicos civis (art. 37, VI e VII), sendo que estes foram também contemplados com o direito à livre sindicalização. Ao militar, no entanto, continuam proibidas a sindicalização e a greve.
Assim é que, a Constituição, nada obstante negue aos militares o direito à greve – dentre outros direitos da cidadania - cuidou de estabelecer normas protetivas e de necessária compensação, a exemplo da garantia da revisão geral anual dos vencimentos (inciso X do artigo 37 da CF) como instrumento de recomposição de perdas inflacionárias, regime previdenciário que lhes respeite as peculiaridades etc.
Quando os governos deixam de recompor a inflação nos vencimentos dos militares o efeito é a perda do valor material do poder de compra, o que, outra coisa não é, senão redução dos vencimentos com suas nefastas consequências por via transversa.
Ora, os policiais militares do Estado do ES estão com vencimentos sem recomposição das perdas inflacionárias há mais de cinco anos (matéria da Folha de S. Paulo de 12/02/2017), realidade que afeta policiais de outros Estados da federação – inclusive São Paulo.
Nesse passo, ausente o mecanismo de proteção (reposição da inflação), inaplicável a vedação à greve e as consequentes sanções pelo descumprimento da regra, afinal, na advertência de Konrad Hesse, jusfilósofo tedesco: "A necessidade não conhece princípios".
Assim, na melhor exegese, a vedação à greve somente opera nos quadros onde não haja sido aviltada pela omissão do Estado a dignidade da pessoa humana pela via da supressão do mínimo remuneratório - aqui tomado como a garantia contra a redução dos vencimentos em períodos de alta inflacionária.
Nessa linha – caracterizado o grave descumprimento do dever estatal a ferir a dignidade das pessoas que envergam fardas – subtraindo-se o essencial à sobrevivência digna da categoria, o que se tem em face da paralisação não é greve, mas legítimo ato de desobediência civil como expressão de protesto político, feito pacificamente, a se opor à iniquidade estatal.
Sopita no gabinete do ministro Toffoli, desde 2 de outubro de 2014, com pedido de vista o recurso extraordinário com repercussão geral RE 565089 - relator Marco Aurélio - onde se decidirá o direito dos agentes públicos à indenização pelo descumprimento da revisão geral anual dos vencimentos. A tese é do final dos anos 90 do século passado e a demanda onde declarada a repercussão geral foi ajuizada em 2003 (como visto os militares pacientemente suportaram até o limite do razoável).
Houvessem os governos respeitado a contrapartida à vedação ao exercício do direito de greve em relação aos militares, ao menos da revisão geral anual de vencimentos, não teríamos o quadro atual a penalizar a população do Estado do ES.
É extremamente injusta a aplicação da regra da proibição à greve onde existente atentado à dignidade da pessoa humana, daí a pertinência da invocação da fórmula de Radbruch como elemento de ponderação entre os princípios e valores constitucionais postos em conflito.
Onde há um plus de ônus, necessário o plus de bônus. Os policiais militares do ES devem ter seus vencimentos recompostos e favorecidos com anistia em relação aos atos de desobediência civil, uma vez que a paralisação da classe em face de iniquidade remuneratória é legítimo protesto político, jamais greve, porquanto, na exata lição de Radbruch – expressão do jusnaturalismo que desagua no neoconstitucionalismo em voga - a "lei injusta não é lei".
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*Eliezer Pereira Martins sócio fundador do escritório Pereira Martins Advogados Associados. É advogado e professor de pós-graduação em direito.