Migalhas de Peso

Pichou, levou?

A pichação é utilizada para demarcar território por guangues rivais, ou também como forma de protesto. É um sintoma de que a cidade não está bem.

21/2/2017

A Pichação é, do ponto de vista material, 'o ato de escrever ou rabiscar sobre muros, fachadas de edificações, asfalto de ruas ou monumentos, usando tinta em spray aerossol, dificilmente removível, estêncil ou rolo de tinta'1.

A pichação degrada a paisagem visual e não tem valor artísitico. É um ato de vandalismo e é considerada crime ambiental (artigo 65 da lei 9.605/98 - lei dos Crimes Ambientais2). Normalmente, é utilizada para demarcar território por guangues rivais, ou também como forma de protesto.

O número excessivo de pichadores demonstra que algo vai mal na cidade. O pichador transgride com a intenção de mostrar sua fúria, seu lamento, sua indiferença.

Enfim, é um sintoma de que a cidade não está bem. De que há muita gente que não vê o espaço púbico como seu, que se sente excluída e desprezada. O pichador vê a cidade de fora, como um estrangeiro que não foi acolhido. Ele agride o que não percebe como seu e quer aparecer por meio da transgressão.

A pichação é combatida no mundo todo. Engana-se quem pensa que o prefeito João Dória está inovando ao declarar guerra à pichação.

Cidades importantes do Estado de São Paulo, como São Roque e Sorocaba, já vêm, há anos, combatendo a pichação, com aprovação de leis municipais e estabelecimento de pesadas multas aos que forem pegos pichando. E, surpreendentemente – para um País em que as leis são feitas, na maior parte das vezes, para serem descumpridas -, as leis fizeram com que a situação melhorasse.

Aqui, na cidade de São Paulo, a Câmara dos Vereadores aprovou, nesta quarta-feira, lei 'antipicho', com estabelecimento de multa não somente ao infrator que for apanhado pichando, mas também aos estabelecimentos comerciais que venderem spray a menores de idade. O texto de lei aprovado na Câmara é flexível e permite que o pichador fique isento da pena de multa caso aceite assinar um termo de compromisso de reparação da paisagem urbana, em que tem a opção de reparar o bem pichado, ou prestar serviço de zeladoria urbana, ou ainda, aderir a um programa educativo destinado à prática do grafite.

Nesse passo, a lei é correta. Não combate o pichador com truculência, mas acena para sua reconciliação com a cidade.

Se a pichação é sintoma de despertencimento, a lei estende a mão e convida a um processo de aproximação. Claro que – deve-se sempre pensar no velho hábito brasileiro – se a lei for conveniente e eficazmente aplicada, se forem criados órgãos eficientes de fiscalização e execução. São Paulo é uma metrópole e abriga dentro de si muitas cidades. Aplicar uma lei e executar uma política pública sempre são desafios. E dependem nãp apenas do Poder Público, mas sobretudo da população.

Vale lembrar, que pesquisas atestam que a pichação é reprovada pela maioria da população.

Ponto controverso nesta questão é o grafite, que vem gerando protestos de parcela relevante da sociedade.

Grafite é arte de rua. É arte em constante mudança, evolução e permite intervenção.

Diferentemente da pichação, o grafite transforma a paisagem, misturando cores, se insere no cotidiano embelezando a cidade. Expressa um protesto de quem deseja a comunicação e a mudança. A pichação, ao contrário, é expressão de que não há comunicação.

A própria lei 9.605/98 – lei dos Crimes Ambientais, dispõe, no parágrafo 2º. do mesmo artigo 65 (que considera crime a pichação), que 'não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado, mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, no caso de bem público, com autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artísitico nacional'3.

Dúvida alguma existe, portanto, em relação ao grafite ser considerado manifestação artística.

O grafite atualmente tende a ser feito em locais permitidos ou mesmo especialmente destinados à sua realização4.

Na capital de São Paulo, desde a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989-1993), as autorizações aos grafiteiros são feitas de modo informal. Em um programa televisivo, a ex-Prefeita, questionada sobre os Grafites, teria respondido especialmente ao grafitero que lhe fez a pergunta, que toda forma de manifestação artística era liberada. Assim, por essa forma não oficial, o Grafite foi liberado e ganhou força.

Na gestão de Gilberto Kassab, prefeito por dois períodos consecutivos (2006-2012), e com o advento da lei Cidade Limpa (lei 14.223/06), a Prefeitura de São Paulo passou a utilizar as medidas padronizadas de tamanhos de placas publicitárias e anúncios de fachadas para disciplinar os grafites espalhados pela cidade, dando permissão a grafites em áreas públicas desde que com autorização conjunta da Comissão de Proteção à Paisagem Urbana e das subprefeituras e, consequentemente, apagando aqueles que não se enquadravam nas medidas aprovadas (a prefeitura de São Paulo oferece espaços para o grafite, desde que a autorização seja expedida pelo proprietário ou pela secretaria responsável).

Já o ex-prefeito Fernando Haddad (2013-2016) autorizou grafites ao longo da Avenida 23 de Maio quase ao final de sua gestão. Haddad ainda autorizou, de modo a criar polêmica, a realização de grafites ao longo das paredes dos "Arcos do Jânio", estrutura de tijolos aparentes tombada como patrimônio histórico e situada sob o viaduto da rua Jandaia, região central da cidade.

O atual prefeito João Dória (2017-2020), tem-se oposto veementemente à pichação e, tem apagado diversos grafites pela cidade, justificando-se ao dizer que haveria pichação sobrepondo-se ao trabalho dos grafiteiros.

Portanto, ainda que a lei de Crimes Ambientais autorize a prática de Grafites, ela condiciona essa prática à prévia autorização expedida pelo proprietário ou pela Secretaria responsável. Ainda, a Prefeitura de São Paulo, oferece espaços para o grafite5.

Mas, a solução encontrada pela Prefeitura não tem desagradado os artistas do spray.

Juiz da Fazenda Pública Estadual concedeu liminar proibindo a Prefeitura de apagar grafites sem autorização prévia do CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo), gerando, de sua feita, descontentamento da atual gestão municipal.

O Conpresp foi criado pela lei 10.032/85, como órgão colegiado de assessoramento cultural ligado à estrutura da Secretaria Municipal de Cultura6. Dentre suas principais atribuições estão deliberar sobre o tombamento de bens móveis e imóveis, bem como fiscalizar o uso apropriado desses bens, arbitrando e aplicando as sanções previstas na forma da legislação em vigor.

Ora, não é demais lembrar que esse órgão municipal, com atribuições definidas em lei, como o tombamento de bens culturais e históricos na cidade de São Paulo, é formado por 9 membros nomeados pelo prefeito Municipal e com mandato de 3 anos. Portanto, é um órgão político, muito embora com funções técnicas da mais alta relevância para a vida da cidade e a preservação de sua expressão histórica e artística.

Assim, esse mesmo órgão que tem por incumbência preservar o patrimônio histórico da cidade, decidiu, contrariando sua própria decisão, favoravelmente ao ex-prefeito Fernando Haddad, autorizando grafites em locais tombados, como as paredes internas dos arcos – patrimônio histórico da cidade de São Paulo, desde 2002.

Agiu certo o magistrado ao criar uma nova condição para a prática ou desfazimento dos grafites?

Agiu certo o Conpresp ao autorizar grafites em imóvel público tombado?

Neste passo, uma reflexão se faz necessária: as autorizações para os grafites ainda que informais e subjetivas, já dependiam de autorização prévia da prefeitura, pois ainda que o grafite seja uma forma de expressão artística no ambiente urbano, o espaço utilizado por esses artistas é, na maioria das vezes, público, e uma das obrigações do poder público é a manutenção desses locais. Por isso a Prefeitura de São Paulo tem colocado à disposição dos artistas algumas áreas próprias para grafitagem.

Não entendo ter agido certo o Conpresp ao autorizar, informalmente, o uso de patrimônio tombado. A decisão não foi técnica. Não pode um órgão dessa magnitude valer-se de posicionamentos subjetivos (ou políticos) para interferir em decisões pré-estabelecidas, ainda mais quando uma de suas atribuições precípuas é formular diretrizes que visem à preservação e à valorização dos bens culturais, bem como, fiscalizar o uso apropriado destes bens.

Com o mesmo raciocínio, não entendo certa a liminar do Juiz para que o Conpresp interfira e autorize a Prefeitura apagar um Grafite. Basta a consulta ao artista, uma vez que Grafite é arte fugaz, é arte em constante mudança, evolução e permite intervenção.

Assim, na mais do que aparente desordem (criativa ou não) que vive a cidade de São Paulo, retrato e reflexo de diversas mentalidades políticas estabelecidas ao longo dos anos, não deve um órgão municipal, estritamente político, ser o responsável por determinar e autorizar quais os grafites que devem ser mantidos ou apagados, pois se pode incorrer no mesmo erro de outrora, em que autorização extraordinária permitiu intervenção em patrimônio histórico da cidade.

É fato que algo está errado e todos nós, cidadãos da cidade de São Paulo, precisamos começar a lutar contra isso. O início é sempre difícil.

Sugiro que uma política pública relativa às intervenções artísticas seja estabelecida. O prefeito pode e deve convocar, em conjunto com a Câmara Municipal, audiências públicas em vários bairros e regiões da Capital, visando à discussão e ao estabelecimento de diretrizes para as intervenções artísticas. Isso potencializará o uso do espaço público. Fará com que a população participe e se sinta dona dos espaços. Incentivará a criatividade e a inventividade técnica de artistas. A seguir, com base nas discussões, lei municipal virá a ser apresentada, votada e aprovada, com a previsão de revisão periódica. A política pública do ambiente e da cidade e suas manifestação e fruição artísticas não pode permanecer apenas na mão do prefeito, muito menos de um órgão que se faça departamento de uma Secretaria. Deve estar nas mãos e ao alcance do entendimento e da população, gerando liberdade à atividade artística que faça transformar o espaço público, no sentido de a população sentir que pertence à cidade que a acolhe.

Atacar um sintoma de uma cidade em mal-estar é de importância menor do que resolver de uma vez por todas a doença, que é a doença da exclusão, despertencimento.

Vamos grafitar a cidade de democracia e apagar a pichação da indiferença.
_________

1 Wikipedia.

2 Até 2011, com o advento da lei 12.408, grafitar também era considerado crime ambiental.

3 Artigo 65, § 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela lei 12.408/11)

4 Há ainda grafiteiros que consideram a necessidade de autorização contrária ao espírito livre de criação e intervenção no espaço. Mas a maior parte dos que praticam a arte do grafite tende a acatar a necessidade de consultar e obter permissão o Poder Público e dos particulares.

5

www.prefeitura.sp.gov.br - "Os artistas precisam entrar em contato com a Secretaria de Participação e Parceria, que aciona a subprefeitura responsável pela área em que os grafiteiros querem fazer o trabalho para autorizar o uso do espaço".

6 www.prefeitura.sp.gov.br - O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp, foi criado pela lei 10.032/85, como um órgão colegiado de assessoramento cultural ligado à estrutura da Secretaria Municipal de Cultura. Suas atribuições, definidas em lei, e alteradas significativamente pela lei 10.236/86 e pela lei 14.516/07 determinam que:

1. delibere sobre o tombamento de bens móveis e imóveis;
2. defina a área envoltória destes bens e promova a preservação da paisagem, ambientes e espaços ecológicos importantes para a cidade, instituindo áreas de proteção ambiental;
3. formule diretrizes que visem à preservação e à valorização dos bens culturais;
4. comunique o tombamento aos órgãos assemelhados nas outras instâncias de governo e aos cartórios de registro – de imóveis ou de documentos;
5. pleiteie benefícios aos proprietários desses bens;
6. solicite apoio a organizações de fomento para obtenção de recursos e cooperação técnica, visando à revitalização do conjunto protegido, e
7. fiscalize o uso apropriado destes bens, arbitrando e aplicando as sanções previstas na forma da legislação em vigor.

_________

*Roberta de Bragança Freitas Attié é advogada em São Paulo e junto aos Tribunais Superiores. Especialista em Direito Privado, Direito Urbanístico, Arbitragem e Mediação.

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