1) O estado da arte na legislação e na jurisprudência
Nos termos do art. 49 da LRJ, "estão sujeitos à Recuperação Judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". A partir deste dispositivo, se sujeitam ao regime da Recuperação e, consequentemente, às condições estabelecidas no respectivo Plano, todos os créditos regularmente constituídos até a data em que é apresentado, em juízo, o requerimento de Recuperação Judicial.
Por outro lado, são considerados extraconcursais, para todos os efeitos, os créditos de titularidade "de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio", assim como aqueles decorrentes de adiantamento a contratos de câmbio para exportação (arts. 49, § 3º, e 86, II, ambos da LRJ).
Em consequência, os credores extraconcursais conservam seus créditos e todos os direitos que lhe são inerentes incluindo as suas garantias, não sofrendo novação e tampouco são prejudicados por eventuais deságios e condições de pagamento fixadas no Plano de Recuperação homologado pelo juízo. Em contrapartida, esses credores não interferem nas principais decisões relacionadas à empresa em Recuperação e nada podem opor à alienação de ativos que alterem a sua composição patrimonial, se assim previsto no Plano de Recuperação.
Nessa medida, é de suma importância definir quais os parâmetros para aferir-se a efetiva constituição dos créditos antes do pedido de Recuperação Judicial e se seria indispensável a prolação de sentença judicial reconhecendo o crédito em questão. Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli, em recente obra sobre o tema, sustentam que estão sujeitos à Recuperação Judicial os créditos decorrentes de fatos anteriores ao pedido de Recuperação, independentemente de ter havido o reconhecimento desses créditos por decisão judicial posterior ao pedido de Recuperação. No entanto, reconhecem que a matéria é objeto de divergência jurisprudencial1.
Na jurisprudência brasileira, identificam-se entendimentos em sentidos diversos. Em uma das vertentes, os precedentes reconhecem a inexistência de concursalidade dos créditos decorrentes de sentenças judiciais proferidas após o pedido de Recuperação Judicial2. De outra via, verificam-se decisões que sustentam a natureza concursal de créditos provenientes de sentenças prolatadas contra a empresa devedora após o ingresso da Recuperação, porém se originam de fatos anteriores a tal pedido3.
De toda a sorte, ambas as vertentes jurisprudenciais parecem encontrar um ponto de convergência, qual seja: existindo demandas judiciais que versem sobre quantias ilíquidas porquanto esteja pendente a apuração de crédito a ser definitivamente declarado por meio de sentença judicial, impõe-se o prosseguimento das ações nos respectivos juízos onde tramitam, nos termos do art. 6.º, § 1.º, da LRJ.
A principal diferença reside no fato de que, para aqueles que defendem a concursalidade do crédito em questão, a ação continuará até a respectiva liquidação, para que então seja incluído no Quadro Geral de Credores; ou poderá ser requerida a reserva de crédito consoante autoriza o art. 6º, § 3.º, da LRJ. Ao passo que, para a outra corrente – da extraconcursalidade – a demanda manterá normalmente o seu curso, inclusive na fase de execução para que se busque a satisfação daquele crédito, independentemente do que for definido no Plano de Recuperação (exceto se estiver vigorando decisão do processo de Recuperação que tenha determinado ou prorrogado a sua suspensão).
2) Análise crítica da jurisprudência
Uma breve leitura dos precedentes em referência evidencia que na raiz da divergência jurisprudencial acima citada parece residir a adequada conceituação de "créditos", para os fins que lhe são conferidos pelo art. 49 da LRJ. Tal questão é de suma relevância visto que, a depender do momento de sua constituição, poderá implicar em sua sujeição (ou não) ao processo de Recuperação Judicial.
Quiçá seja necessária a formulação de uma pergunta preliminar que auxilie em oferecer contornos mais nítidos à questão. Afinal, de que maneira ocorre a constituição de um crédito? Se verificarmos o significado da palavra "crédito" que lhe é atribuída pelo Dicionário de Língua Portuguesa, diz-se que é a "confiança ou segurança na verdade de alguma coisa; crença" ou "o que é devido a alguém"; por fim, crédito "em contabilidade, o que representa saldo, por oposição a débito"4.
Com efeito, a expressão crédito contém, em sua própria essência, uma prestação de natureza econômica que deve ser suscetível de avaliação pecuniária5. Reveste-se, pois, de um dos elementos intrínsecos do vínculo obrigacional e temporário que se estabelece entre o credor (sujeito ativo) e o devedor (sujeito passivo)6. Com efeito, tal prestação traduz-se no objeto da relação obrigacional e deve possuir conteúdo patrimonial, além de ser lícita, possível, determinada ou determinável.
Daí ser importante estabelecer de forma mais criteriosa a constituição do crédito, a fim de determinar a sua concursalidade no Processo de Recuperação Judicial. Em algumas situações, não há dúvidas de que um crédito foi constituído independentemente da declaração judicial. É o caso, por exemplo, de um contrato comutativo, com a previsão de pagamento de prestações periódicas em que o inadimplemento de uma parcela não paga dentro do vencimento permitirá que o crédito seja exigível em face do devedor.
Poder-se-ia até admitir a existência de um processo judicial para discutir aspectos da relação contratual controvertida que poderão até mesmo acarretar a anulação do crédito, mas não há dúvidas de que o credor, em tese, poderia se valer das medidas cabíveis contra o devedor por meio da atividade judicial e estatal para buscar a sua satisfação.
Em célebre obra de Orlando Gomes acerca do Direito das Obrigações, o autor sustenta que a simples celebração de um negócio jurídico já seria, em regra, capaz de gerar um crédito, oponível ao devedor somente quando a obrigação, uma vez descumprida, passa a se tornar exigível – ensejando um direito à prestação. Veja-se, a tal respeito, a distinção proposta pelo autor entre crédito e pretensão, confira-se:
"O crédito existe tão logo contraída a obrigação, enquanto a pretensão nasce no momento em que a pretensão se torna exigível, isto é, quando a dívida está vencida. Dirige-se contra a pessoa do devedor, mas a ação executória, a que corresponda, visa a seu patrimônio. A exigência do credor pode ser judicial ou extrajudicial, manifestando como actio quando a pretensão toma aquela via"7.
Com efeito, a opção do legislador foi nitidamente de considerar concursais os créditos constituídos ao tempo da Recuperação (e não os créditos efetivamente exigíveis àquela altura). É o que se verifica pela redação do art. 49 da lei 11.101/05, ao submeter ao aludido regime os créditos constituídos até a data da Recuperação Judicial, ainda que não vencidos. Daí se conclui que determinados créditos, ainda que já constituídos porque decorrentes de relação obrigacional estabelecida à época da Recuperação, a despeito de insuscetíveis de cobrança por meio de ação própria, podem ser incluídos em processo de Recuperação Judicial e permitir que o credor receba o respectivo valor na forma do Plano de Recuperação Judicial, aprovado em Assembleia de credores e homologado em juízo.
Deste modo, entendemos que boa parte dos precedentes citados encontra-se correta, apenas em parte. Se por um lado é inegável o seu acerto ao não impor que o crédito seja exigível para que lhe seja atribuída a concursalidade, por outro a simples preexistência dos fatos ao pedido de Recuperação Judicial, cujo evento é seguido de posterior declaração, por decisão judicial transitada em julgado, de responsabilidade por danos do réu (devedor no processo de Recuperação) não é capaz de tornar concursal o respectivo crédito.
Pense-se, para ilustrar, em hipótese de ação de responsabilidade extracontratual em virtude de acidente de automóvel no qual se apure a responsabilidade do fabricante de veículo que, após o incidente, ingressa com pedido de Recuperação Judicial. Ainda que seja proferida sentença judicial transitada em julgado, posterior ao pedido de Recuperação, que fixe a responsabilidade do Réu (empresa fabricante e recuperanda) por danos materiais, não se poderá qualificar tal crédito como concursal. E isso, precisamente, porque não havia crédito constituído ao tempo da Recuperação. Haveria somente a expectativa de ser reconhecida a responsabilidade do réu com base na ocorrência de um evento supostamente danoso – mas crédito, de fato, não existia.
Nada obstante, é imprescindível que o crédito seja passível de valoração patrimonial ao tempo da Recuperação – o que se infere pelo próprio conceito de crédito. Do contrário, na hipótese de ali existir um crédito, porém ilíquido, a lei 11.101/05 faculta ao credor prosseguir na sua demanda com vistas à sua liquidação e requerer a reserva de crédito no processo de Recuperação Judicial. Neste caso específico, será permitido ao credor participar e votar na Assembleia de Credores pelo valor correspondente ao crédito objeto da reserva e, uma vez concluída a liquidação, participar do rateio no processo recuperacional (arts. 6º, §§ 1.º e 3º da LRJ).
Como se vê, passados mais de dez anos de entrada em vigor da Lei de Falências e Recuperação Judicial, ainda paira uma indefinição na jurisprudência sobre temas centrais disciplinados pela nova lei, o que não é salutar em um regime jurídico como o brasileiro, no qual é conferida cada vez mais importância aos precedentes e às decisões dos nossos Tribunais, em razão da insegurança jurídica que isso acarreta. No caso específico da LRJ, sabe-se que seu objetivo fundamental foi de proporcionar a recuperação das empresas viáveis, abaladas por crise econômico-financeira que momentaneamente apresentem dificuldades em honrar os compromissos assumidos com seus credores. Nessa linha de raciocínio, é primordial que se estabeleça um critério claro e seguro para delimitar o que são créditos concursais, a fim de que a empresa recuperanda possa se planejar com base no fluxo de caixa e nos ativos que dispõe para soerguer-se ao fim do processo de Recuperação.
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1. AYOUB, Luiz Roberto e CAVALLI, Cássio, A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas, 2.ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2016, p. 37/38.
2. Nessa linha, confira-se: Agravo de Instrumento n.º 0043727-58.2010.8.19.0000, Des. Rel. Adolpho Andrade Mello, 3.ª Câmara Cível, j. em 24.11.2010. Nos seguintes julgados proferidos por outros Tribunais do país verifica-se o mesmo entendimento: TJRS, Recurso Inominado n.º 71002761609, Des. Rel. Ricardo Torres Hermann, 1ª Turma Recursal Cível, j. em 28.10.2010; TJMG, Agravo de Instrumento n.º 1.0647.09.097460-9/001, Des. Rel. Alberto Henrique, 13.ª Câmara Cível, j. em 11.11.2010; e TJSP, Agravo de Instrumento n.º 994.09.300763-0, Des. Rel. Gilberto de Souza Moreira, 7ª Câmara de Direito Privado, j. em 24.04.2010.
3. REsp 1447918/SP, Min. Rel. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 07.04.2016. AgRg no AREsp 153820/SP, Min. Rel. João Otávio Noronha, 3.ª Turma, j. em 10.09.2013. AgRg na RCDESP na MC 17669/SP, Min. Rel. Maria Isabel Galotti, 4ª Turma, j. em 16.06.2011. Agravo de Instrumento n.º 0020737-73.2010.8.19.0000, Des. Rel. Mario dos Santos Paulo, 4.ª Câmara Cível, j. em 20.07.2010.
4. Confira-se: clique aqui.
5. Nessa linha, confira-se: Hironaka, Giselda M. F. Novaes e De Moraes, Renato Duarte Franco, Direito das Obrigações, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 31.
6. Consoante leciona Arnoldo Wald, "em toda obrigação existem um lado positivo – o crédito – e um lado negativo – o débito. O crédito é o direito visto sob o prisma do sujeito ativo da relação jurídica. O débito é o dever jurídico de pagar, que recai sobre o sujeito passivo da relação jurídica. O direito alemão conserva expressões distintas para indicar a relação de débito – Schuldverhältnisse – e os direitos de crédito – Forderungsrechte". Wald, Arnoldo, Obrigações e Contratos, 10ª edição, Revista dos Tribunais, 1992, São Paulo, p. 20.
7. Gomes, Orlando, Obrigações, 10.ª Atualização por Humberto Theodoro Júnior, Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 16.
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