O processo judicial como sistema caótico
Adauto Suannes*
1. O Problema
É possível, a partir de um caso desses, tentar diagnosticar o que ocorre no Poder Judiciário brasileiro que produz inaceitáveis demoras como essa? Penso que sim.
2. O Caos
Lembra Ilan Gleiser que “a Teoria do Caos estuda o comportamento de sistemas que apresentam características de previsibilidade e ordem apesar de serem aparentemente aleatórios. Pequenas variações nas condições iniciais têm um grande impacto em suas trajetórias futuras”.1 São os chamados sistemas complexos não-lineares. Depois de dizer que “a Teoria do Caos determinístico é uma forma de se aproximar um pouco mais do desconhecido e chegar cada vez mais perto de entender a realidade de nosso mundo”, Gleiser aduz: “na Teoria do Caos também é possível achar ordem onde aparentemente só há aleatoriedade”.2
“Onde começa o caos a ciência clássica pára”, diz James Gleick.3 “Desde que o mundo teve físicos que investigavam as leis da natureza, sofreu também de um desconhecimento especial sobre a desordem na atmosfera, sobre o mar turbulento, as variações das populações de animais, as oscilações do coração e do cérebro. O lado irregular da natureza, o lado descontínuo e incerto, tem sido enigmas para a ciência, ou, pior: monstruosidades”, diz o mesmo autor4.
A chamada Teoria do Caos surgiu para tentar solucionar problemas aparentemente insolúveis, por isso que fogem às equações euclidianas, que parecem ter presente o conceito platônico da ordem universal, onde a simetria seria o reflexo da sabedoria do criador do mundo.
Pensemos numa partida de golfe. Segundo a regra, o jogador deve desferir um golpe, ou putting, com um taco (há vários tipos de tacos, cabendo ao jogador escolher dentre eles qual o que utilizará em determinada tacada) numa pequena bola plástica, que, sendo arremessada longe, deverá penetrar num buraco, o hole. São dezoito holes distribuídos ao longo de um campo que não é regular e que possui obstáculos de várias ordens, além de a superfície apresentar ondulações, o que dá à bolinha um trajeto raramente retilíneo, quando rola na superfície. Árvores, mato, grama alta, bancos de areia e trechos com água são armadilhas à espera do jogador ao longo de todo o campo. O trajeto a ser percorrido pela bolinha será feito por intermédio de vários impulsos dados pelo jogador, utilizando o taco por ele escolhido, vencendo a partida quem somar menos pontos ao fim do percurso dos dezoito holes.
Não é impossível, embora seja raro, que um jogador consiga colocar a bolinha no buraco com uma só tacada. É o chamado hole-in-one, que faz a felicidade de qualquer golfista, muito embora haja a tradição de, quando isso ocorra, dever ele pagar um drinque a todas as pessoas que estejam no campo! O que o levaria a gastar mais na comemoração do que o que recebeu pela vitória (se vier a vencer!), donde constar dos contratos de seguro (confira as cláusulas do seu) a previsão de que aquele contrato de seguro se aplica também ao caso de ocorrência do desejado e temido hole-in-one.
Visto sob o ponto de vista do hole-in-one, o jogo de golfe é um processo simples e linear: a bola, a partir do ponto A, descreve o trajeto escolhido pelo jogador e atinge imediatamente o ponto B, encerrando-se assim o processo.
Acontece que na maioria das vezes não é isso o que acontece, sendo introduzido no processo aquilo que tecnicamente se denomina variáveis: o vento desviou a bola, que caiu no mato, ou na banca de areia, ou na água, pelo que do ponto A não se chegou ao ponto B, mas ao ponto A1. Essa variável poderá ser também tanto a má escolha do taco, como o modo desajeitado como a bola foi tocada pelo inábil jogador. O fato de o jogador ser inábil, escolher mal o taco ideal para o tipo de jogada adequado a cada situação específica, bem como a irregularidade do piso são variáveis cumuláveis, o que pode elevar o número de tacadas, por força das quais, a relação A/B terá acréscimos que indicaríamos por A1, A2 ... An. Um sistema simples e linear se converte, na maioria das vezes, num sistema complexo não-linear, por força de tantas variáveis que podem combinar-se entre si. É possível a eliminação de algumas dessas variáveis?
Onde entra nisso o processo judicial?
O serviço judicial se enquadraria perfeitamente no conceito de sistema linear, pois o que se pretende é que o processo judicial, iniciado num ponto A (o ajuizamento de uma ação, sob a alegação da ocorrência de uma lide ou pretensão resistida, isto é, a invocação e comprovação pelo autor de que, tendo direito a usufruir um bem da vida, essa fruição está sendo impedida por alguém) termine no ponto D (isto é, o reconhecimento pelo Estado de que, tendo o autor razão, possa ele desde já usufruir daquele bem), pressupostos os necessários momentos B (o contraditório) e C (saneamento do processo). É possível, porém, essa linearidade? Em que situações teríamos, no processo judicial, um hole-in-one? Em casos especialíssimos, como quando o juiz concede uma liminar auto-satisfativa: por exemplo, o autor alega que no interior do aeroporto há um pacote abandonado e, diante da suspeita de que seja uma bomba, pede autorização judicial para explodi-lo. Concedida liminarmente e executada a tutela judicial, fomos de A a D sem nos determos nos necessários momentos B e C e sem passar por qualquer desvio, dada a ausência de alguma variável. Isso, contudo, é, evidentemente, a mais absoluta das exceções. No geral, o processo judicial melhor se define como um sistema complexo (composto de inúmeros atos necessários, como citação, produção de provas, decisão e recursos), que nada tem de linear, já que o trajeto de uma etapa a outra admite um sem número de variáveis, como podemos imaginar.
Distribuída a ação (momento A), segue-se necessariamente a citação do réu (momento A1); à concretização desse momento segue-se a apresentação da resposta do réu ou a ocorrência de revelia (momento B); a isso se segue, sempre necessariamente, a audiência de definição do objeto da causa, eventual saneamento do feito e eventual audiência de instrução e julgamento (momento C), a que se seguirá a prolação da sentença (momento D). Fictamente, os dois momentos A e D coincidem, pois a sentença repõe as coisas como deveriam estar no momento do ingresso em Juízo do reclamante (A=D).
Graficamente, para o caso excepcional, da liminar auto-satisfativa, teríamos:
Note-se que as fases B e C foram puladas.
Para um processo normal, assim expressaremos suas fases necessárias, notando-se que os pontos A e D se identificam, pois há aí uma ficção: finge-se que o Estado concede o provimento no mesmo instante em que é ele solicitado, tanto que a compensação pela demora, os irrisórios juros de mora, incidem a partir daí, na ilusão de que isso recomponha o patrimônio do lesado. O processo judicial, aliás, está repleto dessas ficções, como aquela segundo a qual se destina ele à procura da verdade ou que, terminado ele (lustros depois!) acabou-se por fazer justiça. “Tarda mas não falha!” é uma dessas inverdades que vão sendo repetidas de geração em geração, tanto quanto a também repetida e também falsa “o crime não compensa”:
O último momento do processo deveria ser o momento D, mas o cabimento de recurso com efeito suspensivo, como é a regra, protrai esse momento final para mais adiante. Por outro lado, entre cada um desses momentos podem surgir variáveis, que, ou são decorrentes da necessidade de se atingir o momento final sem a existência de dúvidas ou incertezas, ou são decorrentes, como é a regra, do espírito chicaneiro que preside a conduta da parte que, reconhecendo não ter razão, procurará protrair o mais que possa o atingimento do momento D.
Os exemplos disso poderiam multiplicar-se: antes de ser atingido o momento A1, o autor requer a concessão antecipada da tutela, a criar um processo embutido no processo principal A1), pois, concedida ou não a tutela, certamente será interposto recurso pelo perdedor do incidente, recurso que também deverá, em princípio, observar o trajeto A/D, que não se confunde com o trajeto do processo principal.
Atingido o momento B, o réu suscita a incompetência do Juízo, o que novamente criará um processo dentro do processo principal (B1), que também deverá, em princípio, observar novo trajeto A/D, sendo que aqui, como em todos os processos embutidos, sempre haverá a possibilidade de interposição de recursos, criando-se novos processos dentro de cada processo secundário.
Após a audiência e antes de ser proferida a sentença, o autor suscita a falsidade de documento juntado pelo réu quando da audiência, o que suscitará novo processo incidental (C1), que retardará o surgimento do momento D. Novamente, como em todos os processos embutidos, sempre haverá a possibilidade de interposição de recursos, criando-se novos processos dentro de cada processo secundário, todos eles a observarem o mencionado trajeto A/D.
Graficamente, teremos uma figura conhecida como “Floco de Neve de Koch”, construída a partir da inserção sucessiva em cada lado de um triângulo eqüilátero de triângulos eqüiláteros iguais um terço menor do que o anterior.5
Eis o gráfico:
Onde:
A = protocolamento da petição inicial;
B = encerramento do prazo para resposta;
C = definição do objeto da lide, saneamento e tentativa de conciliação;
D = prolação da sentença.
A1 = pedido de tutela antecipada (com os desdobramentos A2, A3, A4 e A5);
B1 = exceção de incompetência (com os desdobramentos B2, B3, B4 e B5);
C1 = incidente de falsidade documental (com os desdobramentos C2, C3, C4 e C5).
Até que o Supremo Tribunal Federal rejeite o recurso de embargos declaratórios interpostos em razão do julgamento do recurso de agravo regimental interposto em razão do indeferimento do agravo de instrumento interposto em razão do indeferimento pelo tribunal local do recurso extraordinário interposto em razão do julgamento dos embargos declaratórios interpostos em razão do julgamento do recurso de agravo de instrumento interposto em razão do julgamento de um processo secundário, quanto tempo terá decorrido? E quantos terão sido esses processos secundários, um dos quais certamente será o Recurso Especial, com seus agravos inumeráveis? Decidido que seja o processo propriamente dito, as possibilidades de interposição de um sem número de recursos é algo conhecido de todos, o que tudo é feito na falsa suposição de que o processo tende a descobrir a verdade e realizar a justiça.
No dizer dos autores, “a Teoria do Caos é o estudo de comportamentos instáveis aperiódicos em sistemas dinâmicos determinísticos não-lineares”6. É inteiramente excepcional a existência de um processo judicial que se possa considerar linear, isto é, que percorra a trajetória A/D sem a incidência de variáveis. A regra é que ele é um sistema dinâmico complexo e não-linear, a ser estudado de acordo com aquilo proposto pelos que se ocupam da Teoria do Caos.
3. Burocratismo
A burocracia, diz qualquer dicionário, compreende um conjunto de atos necessários a que a administração de algum projeto, especialmente na área da administração pública, atinja os fins propostos. Todo processo, como processo que é, exige a superação de fases, sendo as ulteriores dependentes das anteriores. Isso vale especialmente para os processos judiciais. O burocratismo, no entanto, surge quando a ele se adicionam fases desnecessárias, que fazem o processo desviar-se do caminho que, em tese, permitiria atingir o fim proposto em menor tempo. E isso ocorre porque cada nova fase desnecessariamente acrescentada terá um natural desdobramento, pelo qual a fase anterior exige uma fase ulterior coerente com ela, armando-se um processo de tal desnecessária complexidade que os estudiosos a comparam a uma dessas árvores que deitam galhos para todos os lados, de cada qual brotando novos ramos, num processo que se repetirá indefinidamente, em aparente desordem.
Da mesma forma como os cientistas tratam da chamada Teoria do Caos, quer estudando a aparente desordem como atuam os elementos dentro de um processo complexo, acabaram por descobrir que há uma ordem dentro da aparente desordem, penso que se poderia começar a tentar ver qual a ordem interna que preside esse burocratismo, que contamina o processo judicial, e que elementos podem e devem ser eliminados para que a árvore, mantida a comparação, cresça para cima e não para os lados.
Exemplifico: o deputado federal Antonio Carlos de Mendes Thame encarregou-me, tempos atrás, de elaborar um projeto de lei disciplinando a prática dos atos ao longo de um processo judicial, com vistas a dar-lhe maior rapidez. Elaborei então um projeto de lei que, basicamente, dizia o seguinte (não tenho mais comigo o trabalho feito, mas as idéias principais são estas):
Artigo 1º - Compete ao juiz fundamentalmente:
-
a)presidir as audiências;
-
b)proferir decisões nos processos, assim definidas no Código de Processo Civil;
-
c)traçar normas de conduta para os serventuários submetidos a sua autoridade, a serem incrementadas pelo escrivão, sob permanente fiscalização do juiz.
Artigo 2º - Compete fundamentalmente ao escrivão, obrigatoriamente formado em Direito:
-
a) cumprir e fazer cumprir as determinações do juiz a que esteja subordinado;
-
b) lançar nos autos e nas petições despachos ordenatórios, assim definidos no Código de Processo Civil, os quais serão por ele assinados;
-
c) fazer a conclusão dos autos quando seja o caso de ali dever ser proferida alguma decisão;
-
d) delegar aos seus funcionários as atribuições constantes dos incisos supra, de acordo com o organograma do cartório, estabelecido pelo juiz.
Parágrafo único – Juiz e escrivão exercerão sobre seus subordinados correição permanente, com vistas ao aprimoramento da prestação do serviço judicial, para eventual correção de desvios e eventual punição de infrações cometidas, quando disso for o caso.
Tal projeto de lei, sendo submetido à apreciação da Associação dos Advogados do Estado de São Paulo, recebeu um cáustico parecer contrário a sua aprovação, fazendo o relator constar de seu trabalho uma desnecessária observação: “só faltou ao projeto mandar chamar o escrivão de Excelência.” Era, pelo menos, o desconhecimento daquilo que se vê na prática: em muitos fóruns, o cartório é que lança nos autos despachos e até decisões, que serão assinados pelo juiz. A perda de tempo nesse ir e vir é evidente, criando-se um looping desnecessário, uma retro-alimentação do caos.
Assim, um elemento secundário (“dar poder” ao escrivão) prejudicou a aprovação da lei. Ignorou-se que uma das mais importantes variáveis que comprometem a regularidade do sistema do processo judicial, já em si naturalmente complexo, pelos inúmeros atos necessários que exige, é precisamente a desnecessária concentração de “poder” nas mãos do juiz (talvez exatamente para que não estejamos valorizando indevidamente o escrivão, como deixou anotado o infeliz parecer da AASP).
4. Um caso concreto
Ilustro isso com um exemplo concreto: nos autos do processo nº 583.00.2000.642.737-8, em trâmite perante a 14ª. Vara Cível do foro central da comarca da Capital do Estado, ocorreu um desses vitandos loopings a que me referi acima e que vale a pena relatar, para bem compreender o que foi exposto. Em data de 17 de abril os autores despacharam uma petição com o juiz, solicitando que fosse cumprido despacho anterior, no qual havia sido determinada a expedição de mandado de execução. O juiz ali lançou uma determinação condicional “sim, em termos”. Como a petição dizia respeito ao cumprimento de uma decisão anterior, caberia ao cartório simplesmente dar cumprimento à tal decisão, sem desvio de rumo, pois a condição a que estava sujeito o pedido (“se o pedido estiver em termos de ser atendido”) existia: era um despacho anterior que já determinara a expedição do agora reclamado mandado de execução. Acontece que em data de 12 de abril o réu havia protocolado uma petição solicitando o prazo de 5 (cinco) dias para apresentar determinados documentos, petição essa que, a nosso entender, não necessitaria de decisão alguma. O juiz lançou um dispensável despacho: “J. cls.”. Ocorre que, passado um mês, nem os autos haviam ido à conclusão nem o executado havia cumprido a promessa feita, no sentido de juntar os documentos em 5 dias!
E criou-se um desvio de rota absurdo: os autos agora foram finalmente à conclusão, sob o argumento de que assim fora determinado pelo juiz, o que, em realidade, se dera há mais de um mês, para que ele agora apreciasse um pedido que já estaria prejudicado pela própria conduta anti-ética (o réu já foi punido por tal conduta, mas não se emendou) do executado, em lugar de dar o cartório cumprimento à determinação de que se expedisse mandado de execução. É evidente que, conhecendo, como conhece, o volume de autos existentes no cartório, sabia o juiz que o prazo de 5 dias decorreria muito antes de o cartório dar cumprimento à desnecessária determinação de conclusão dos autos, o que de fato veio a acontecer. Indo os autos à conclusão, após decorrido prazo superior a seis vezes o prazo que havia sido solicitado, conceder ou não conceder agora o tal prazo não teria efeito prático algum, dado o vencimento, de há muito, do prazo que fora solicitado. A menos que se agravasse ainda mais o absurdo: o prazo de 5 dias, se concedido, só começaria a ser contado quando o requerente viesse a ser intimado!
Eis, porém, o incrível despacho proferido:
D O E - 19/5/2006 - Varas Cíveis Centrais - 14ª Vara Cível 583.00.2000.642737-8/000000-000 - nº ordem 2634/2000 - Procedimento Ordinário (em geral) – M. A. M. E OUTRO X N. C. S/A - Fls. 502 - Fls. 499: Defiro o prazo de quinze dias, impreterivelmente. Decorrido, sem manifestação, ficará convalidado o despacho de fls. 500 e deferida a expedição do mandado para citação em execução.
Tendo sido pedido o prazo de 5 dias, no dia 12 de abril, no dia 19 de maio não é concedido o prazo solicitado, mas o triplo dele! Como explicar algo tão estapafúrdio assim? Premia-se, com isso, o infrator, que ganha tempo e retarda o cumprimento de suas obrigações, pois não cabe mais recurso algum da decisão definitiva proferida naqueles autos. Edward Lorenz, que se demorou no estudo do que chamou “efeito borboleta”, isto é, a capacidade de um incidente irrelevante dar a um processo um encaminhamento absurdo, certamente exclamaria: Simples mariposas provocando vendavais!
Curiosamente, o Brasil tem algo a ver com o nome daquele estudo, ainda que por mera casualidade. A conferência pioneira, proferida pelo matemático Edward Lorenz e que cuida do tema, se intitulou “Predicability: does the Flap of a Butterfly’s Wings in Brazil set off a Tornado in Texas?”7, apresentada na Sociedade Americana para o Progresso da Ciência, em Washington, em 29 de dezembro de 1979, cerca de apenas meio quarto de século passado.8 A Teoria do Caos pretende exatamente limpar os processos complexos desses desvios de rotas, que, no limite, leva a um retardamento absurdo.
No caso acima referido, não é a falta de funcionários nem o número inadequado de computadores que estão a causar esse inaceitável retardamento no cumprimento do julgado. É o burocratismo, com sua desnecessária multiplicação de atos no processo, que deixa de servir a quem demonstrou ter razão, para beneficiar aquele que comprovadamente não tem razão. Ou seja, faz-se exatamente o contrário daquilo a que o processo judicial se destina. E isso não se deve ao número insatisfatório de funcionários no cartório nem ao número insatisfatório de instrumentos de trabalho, mas à ocorrência de variáveis, de processos secundários que não têm razão de ser.
Isso, certamente, não ocorreria se se dispensasse essa desnecessária concentração de prática de atos não decisórios nas mãos do juiz e se houvesse a adequada fiscalização dos agentes do sistema complexo que se chama processo judicial, que, visto de perto, é algo extremamente simples, pois, apresentada a defesa do réu, ocorre a limitação do campo de discussão (os romanos falavam em litiscontestatio para designar esse momento solene) , cabendo ao juiz não permitir que essa simplicidade fique prejudicada pelo “caos” que uma das partes, por espírito chicaneiro ou por despreparo de seu procurador, tente introduzir no processo. Além disso, o combate ao burocratismo é fundamental para que se consiga essa simplificação. E isso pode ser conseguido, desde que haja disposição da magistratura para tanto, mesmo sem alteração legislativa, bastando que a Corregedoria de Justiça, com seu poder de normatização dos serviços cartorários, assim determine.
5. Conclusão
Repetindo: está dito no Código de Processo Civil que, sendo apresentada a resposta do réu, estabelecem-se os limites das questões a serem decididas. Cabe assim ao juiz, é o Código quem o diz mas muitos juízes não o ouvem, explicitar o objeto da controvérsia e, portanto, definir quais os meios de prova cabíveis.
Ainda segundo aquele projeto, definidas que sejam as provas a serem produzidas, isto se dará por três formas, talvez cumulativas: juntada de documentos, perícia e tomada de depoimentos. Dessas, somente a última há de ser feita pelo juiz, pois a juntada de documentos e a realização da perícia não necessitam de sua presença, bastando a fiscalização por parte do escrivão, que, à sua vez, estará sempre sendo fiscalizado pelo juiz.
Designada (pelo escrivão) a audiência, surge agora o segundo momento em que o juiz é reclamado. Tendo em mãos os elementos de prova até ali produzidos (sob a fiscalização do escrivão) e havendo colhido os depoimentos, duas serão suas atitudes possíveis: ou decide desde logo o feito, ou converte o julgamento em diligência para complementação da prova, quando disso seja o caso (a experiência mostra que tal situação é absolutamente excepcional).
Sendo isso assim, como se justificar que os autos de um processo tenham de ir tão amiúde à conclusão, como é de nossa cultura burocracista?
Além disso, a irracional recorribilidade de toda e qualquer decisão sempre foi vista como um incentivo à chicana, pois o direito ao duplo grau de jurisdição não pode levar ao evidente abuso do direito de recorrer. A simples diminuição do número de recursos, como agora se pretende, não basta, sendo necessária a introdução da chamada “sucumbência incidental”: sempre que o juiz decidir um incidente, responsabiliza processualmente o perdedor do incidente, carregando-lhe não só as custas como honorários advocatícios relativos a tal incidente. Com isso, eliminaríamos muitas das variáveis que tanto retardam o julgamento final.
Última observação: quando um médico causa dano a um paciente, ele vem a ser condenado, com a invocação do genérico “falta dos cuidados necessários” com que se houve ele, o que caracteriza error in procedendo. Quando, porém, são os juizes que assim atuam, cometendo também errores in procedendo, que lhes acontece? Veja-se, por exemplo, o que (não) ocorre quando da concessão a alguém de habeas corpus por parte do tribunal sob o fundamento de haver o juiz agido com abuso de poder. Muito embora o abuso de poder caracterize, em princípio, crime previsto em lei específica, que rege a conduta das autoridades públicas, jamais algum tribunal remeteu cópia dos autos ao Ministério Público para apreciação de eventual ocorrência de tal crime, presumindo-se, juris et de jure, que não houve por parte do juiz “má fé”.
O mesmo ocorre quando o tribunal anula o feito pela ocorrência de error in procedendo. Qual a diferença entre o erro médico, que causa dano a um paciente, e o erro judicial, que causa dano a número inimaginável de pessoas, dada a necessária repetição de atos processuais, com gasto de tempo que poderia ter sido evitado com um pouco mais de diligência por parte do juiz (aquilo mesmo que ele exige do médico), tempo esse que poderia estar a ser empregado na apreciação de outro processo?
Em todas as “radiografias” feitas a respeito do “estrangulamento dos serviços forenses” jamais notei um levantamento a respeito do número de idas e vindas desnecessárias dos autos ao gabinete do juiz, como se isso fosse a coisa mais natural na tramitação da causa. Qual a média dessas remessas até que sobrevenha a sentença? Não sabemos. Quais dessas idas eram efetivamente indispensáveis? Ignoramos.
Se a Corregedoria Geral da Justiça, como longa manus do Conselho Superior da Magistratura, exercer sobre o magistrado sua autoridade, providenciando sua punição quando crie desnecessários incidentes processuais ou dê margem à anulação do feito (error in procedendo), e desde que o juiz faça o mesmo em relação ao escrivão, o tempo de tramitação de um processo tenderá a cair. Resta saber se os juízes têm interesse nisso, pois a cultura do “digam” está intimamente ligada ao propósito de protrair o momento crucial de ter de decidir a causa. Reduzido, porém, em seus afazeres, graças às incumbências específicas que se venham a dar ao escrivão, o juiz terá, obviamente, mais tempo para dedicar ao estudo e fiscalização de cada processo, evitando que a sua complexidade o transforme em uma “renda de Koch”, isto é, o que ocorre com um dos lados de um triângulo eqüilátero depois de sucessivas introduções de novos triângulos eqüiláteros iguais e um terço menor do que o anterior.
Aliás, para finalizar, deixo-lhe uma pergunta: se você fosse mostrar graficamente os incidentes ocorridos na tramitação do processo movido pelo Ministério Público contra o ex-prefeito de São Paulo, iniciado em 1970 e encerrado em 2006, qual destas duas figuras você escolheria para isso?
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1Ian Gleiser, Caos e Complexidade, Editora Campus, 2002. p. 20
2Ian Gleiser, ob. cit., p. 23
3James Gleick, Caos – A Criação de uma Nova Ciência, Editora Campus, 16ª edição, p. 3
4Ob. cit., p. 5
5Sobre sua origem, Gleick, ob. cit., p. 94
6Gleiser, Id., ib.
7“Previsibilidade: pode o bater de asas de uma borboleta produzir um tornado no Texas?”
8James Gleick, ob. cit., p. 29
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*Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família)
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