A 6ª turma do STJ proferiu decisão nos autos do HC 268.459-SP, por meio da qual inocentou os pais de uma menina pela morte de sua filha de 13 anos por recusa à transfusão de sangue que se fazia necessária. A decisão até então estaria irretocável não fosse a responsabilização – destaca-se, exclusiva – dos médicos por supostamente (i) não ter desrespeitado a vontade do paciente e/ou de seu representante legal em prol da vida e (ii) não utilizar de todos os métodos que estavam à sua disposição para salvar a vida da criança.
Com todo o devido respeito e acatamento, a r. decisão do STJ equivocou-se em diversos aspectos. A começar pela invocação de supostas violações por parte dos médicos do quanto disposto nos arts. 31 e 32 do Código de Ética Médica em vigor em 2009 ("CEM"). Segundo consta da r. decisão, os médicos teriam o dever de (i) desrespeitar o direito do paciente e/ou de seu representante legal em caso de iminente risco de morte e (ii) usar todos os meios disponíveis de diagnósticos e tratamentos ao seu alcance em favor do paciente.
No nosso respeitoso entendimento, a interpretação dada aos artigos do CEM é totalmente equivocada.
Em primeiro lugar, o art. 31 do CEM em momento algum cria um "dever" de o médico desrespeitar a escolha do paciente em caso de iminente risco de morte. Tal dispositivo, a bem da verdade, apenas confere uma faculdade ao médico de desrespeitar a escolha do paciente e/ou de seu representante legal em prol da vida, mas em momento algum cria uma obrigação. Afinal, o que não é "vedado" é "permitido". Confira-se:
"É vedado ao médico:
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte."
Caso o médico queira desrespeitar a vontade do paciente e realizar a transfusão, é certo que o médico está amparado do ponto de vista ético-profissional. Caso queira o médico respeitar a vontade do paciente, também é direito não só do médico, como do próprio paciente, ter sua vontade respeitada.
A interpretação dada pela r. decisão do STJ cria uma obrigação onde não há. Quisesse o Conselho Federal de Medicina estabelecer essa obrigação ética sugerida pela r. decisão do STJ, teria expressamente estabelecido essa obrigação no referido dispositivo, o que não foi feito. E se não há obrigação expressa, não se pode exigir que o médico tenha essa obrigação. Afinal, medidas restritivas de direito exigem interpretação restritiva. Trata-se apenas de uma permissão ao médico desrespeitar a vontade do paciente, não uma obrigação.
Em segundo lugar, em momento algum os médicos deixaram de observar todos os meios e recursos que estavam à sua disposição e ao seu alcance em favor do paciente. A bem da verdade, a transfusão de sangue não era um recurso posto à disposição dos médicos e/ou ao seu alcance, na medida em que os responsáveis legais pelo paciente expressamente não autorizaram a utilização desse recurso. Portanto, em momento algum se tratou de um recurso à disposição do médico, não havendo que se falar em violação do art. 32 do CEM.
Nesse sentido, os médicos não violaram qualquer dever ético-profissional ao respeitar a vontade do paciente e/ou de seu representante legal para que não fosse realizada a transfusão de sangue.
Diferentemente seria se o médico, mesmo ciente de que o paciente era testemunha de jeová, não tivesse condição de obter dele ou de seu responsável legal a autorização para não realizar a transfusão. Nesse caso, o médico deveria, sim, realizar a transfusão, para salvaguardar a vida do paciente. Não foi o caso. Havia determinação expressa dos responsáveis legais da menina para que não fosse realizada a transfusão.
Nesse caso, ao contrário do que constou da r. decisão, o médico deveria ter o direito de respeitar o direito da pessoa de seguir livremente sua religião. O STJ, no entanto, invocou o direito à liberdade de religião para inocentar os pais, mas impôs limites a essa liberdade ao obrigar o médico a desrespeitar a escolha religiosa do paciente. Afinal, com essa decisão, seja por qual motivo for, o médico fará a transfusão de sangue, queira o paciente ou não.
É importante destacar que, embora invocado na decisão como fundamento, o direito à vida nada mais é do que um direito do cidadão, não um dever. É garantido constitucionalmente seu direito de viver, assim como é garantido seu direito de escolher e seguir livremente sua religião. Se o paciente não quer viver em função de uma orientação religiosa, não pode ser lhe imposto a vida como uma obrigação, tampouco responsabilizar alguém por uma escolha única e tão somente do paciente e/ou de quem tem legalmente poderes para decidir por ele.
Como se pode ver, trata-se de uma clara intervenção do Estado na liberdade do cidadão que, ao final e ao cabo, viola a garantia fundamental de liberdade religiosa das testemunhas de jeová.
Apenas a título de exemplo, é importante mencionar a ortotanásia como uma situação de respeito e observância à vontade do paciente e/ou de seu responsável legal, sem que haja responsabilidade do médico. Nesse caso, o paciente escolhe não ser submetido a métodos e/ou recursos para manutenção forçada de sua vida (distanásia), em casos irrecuperáveis, ainda que estejam cientificamente disponíveis aos médicos e ainda que haja risco iminente de morte. Nesse caso, o médico deve observar a vontade do paciente, ainda que tal conduta leve-o à morte. Não pode ser diferente no caso das transfusões de sangue de testemunhas de jeová.
Responsabilizar o médico por essa situação serve apenas para se achar um culpado para um fato que não há culpado. Nem os pais são culpados, nem o paciente, tampouco o médico, que simplesmente observou uma garantia fundamental do cidadão e respeitou todas as normas éticas a ele aplicadas.
Trata-se de uma crença que deveria ser respeitada tanto pelos médicos, como principalmente pelos Tribunais pátrios, o que implicaria necessariamente em isenção total de responsabilidade do médico. Nada obstante, enquanto o primeiro demonstra respeito pelo direito da pessoa, o segundo não só desrespeita como cria um intransponível obstáculo à observância da liberdade religiosa pelos médicos.
Além disso, não se pode olvidar que o CEM sequer tem força de lei para caracterizar ato ilícito a ensejar a responsabilidade civil ou criminal do médico. Uma violação pelo médico do CEM deveria gerar apenas responsabilidade profissional perante o Conselho Regional de Medicina em que o médico está inscrito, mas não a responsabilidade civil, salvo quando a violação do CEM gerasse também uma violação da lei. Seria o caso, por exemplo, de quem age com culpa e causa dano a outrem, o que viola concomitantemente o art. 1º, Cap. III, do CEM, e o art. 186 do CC.
Nesse caso, sequer há culpa, quanto mais dolo, do médico a ensejar responsabilidade civil ou criminal, na medida em que agiu segundo a vontade do paciente ou de quem poderia por ele declará-la. Em outras palavras, não houve por parte do médico negligência, imprudência, imperícia, tampouco vontade intencional de levar o paciente à morte, a ensejar a responsabilidade civil e/ou criminal do profissional.
Destaca-se que não se trata de um caso em que o paciente não tem condições técnicas e/ou psicológicas de avaliar sobre a transfusão de sangue, situação em que a perícia do médico exigir-lhe-ia que ele adotasse o procedimento. As testemunhas de jeová conhecem muito bem o que ocorre com a transfusão e a sua necessidade, bem como os riscos de não realizá-la, uma vez que isso é debatido intensamente na própria igreja.
Pelo exposto, em nossa modesta opinião, ainda que tenha aparentemente tentado garantir a liberdade de religião às testemunhas de jeová, a decisão do STJ, a bem da verdade, violou o direito fundamental garantido a todos os cidadãos de seguir livremente sua religião, uma vez que tal decisão obriga o médico a ignorar a liberdade de escolha do paciente e promover a transfusão de sangue independentemente de suas convicções religiosas. E tudo isso com base em interpretações totalmente equivocadas do CEM.
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