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Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no NCPC

Visto que a pessoa jurídica é criada para que seus fundadores não respondam com seus bens pessoais, os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade.

9/2/2017

O presente artigo tem por objeto o estudo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sob a ótica do NCPC, levando-se em consideração o fato de que o antigo CPC não fazia qualquer alusão sobre o tema, sendo a matéria tão somente discutida até então pela via jurisprudencial e doutrinária.

Conceito de Pessoa Jurídica

De início, cabe conceituar pessoa jurídica para posteriormente fazer o debate sobre seus requisitos, conforme os ensinamentos do professor Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme1: "pela definição do dicionário Houaiss pessoa jurídica é uma 'entidade ou associação legalmente reconhecida e autorizada a funcionar', ou seja, um sujeito de direitos e obrigações a quem a lei concedeu personalidade jurídica".

Em suma, a personalidade jurídica é a aptidão para adquirir direitos e deveres na ordem civil.

Portanto, a pessoa jurídica é criada para que seus fundadores, num primeiro momento, não respondam com seus bens pessoais, pelas obrigações sociais, isto quer dizer que, em regra, os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, uma vez que esta possui personalidade distinta da de seus membros.

Dos requisitos para a Desconsideração da Pessoa Jurídica no CC

Visto que a pessoa jurídica é constituída para adquirir direitos e obrigações, e mais, que seu patrimônio responderá pelas obrigações sociais, há, porém, em algumas hipóteses a possibilidade a extensão das obrigações assumidas pela pessoa jurídica aos bens particulares dos administradores ou dos sócios por meio da desconsideração da personalidade jurídica.

Pois bem, se tratando de uma questão civil, adota-se a teoria maior, nos termos do artigo 50 do CC, para que haja a desconsideração da personalidade jurídica deve haver abuso da personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, in verbis:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Com efeito, leciona professor Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme2 a necessidade de ter havido abuso da personalidade, por meio de fraude, in verbis:

A despersonalização da pessoa jurídica, também denominada de teoria da desconsideração ou penetração, tem por finalidade impedir que os sócios, administradores, gerentes e/ou representantes legais, acobertados pela independência pessoal e patrimonial entre pessoa jurídica e os entes que a compunham, pratiquem abusos, atividades escusas e fraudulentas. Assim, o instituto está previsto nos arts. 50 do CC e 28 da lei 8.078/90, facultando ao juiz desconsiderar a autonomia jurídica da sociedade para adentrar o patrimônio dos sócios em casos comprovados de fraude que causem prejuízos ou danos a terceiros.

Desta feita, a medida é excepcional, somente poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica, para alcançar o patrimônio dos sócios, desde que um dos requisitos mencionados — desvio de finalidade ou confusão patrimonial — estejam devidamente comprovados, mediante interpretação restrita, ou ao menos não ampliativa, tudo em obediência à norma expressa e ao devido processo legal.

Nesse sentido, o Enunciado 146 da II Jornada de Direito Civil do CNJ3 estabelece que "nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50".

A jurisprudência do STJ firmou o entendimento de que a desconsideração da personalidade jurídica prevista no artigo 50 do CC trata-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Assim, a interpretação que melhor se coaduna com esse dispositivo legal é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial4.

Dos requisitos para a Desconsideração da Pessoa Jurídica no CDC

Os requisitos civilistas de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, nos termos da teoria maior, não se aplicam na relação de consumo, pois referido ramo do direito possui regramento específico.

Destarte, havendo relação de consumo para que haja a desconsideração da personalidade jurídica basta existir abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, outras hipóteses são a ocorrência da falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração, com fulcro no art. 28, CDC:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Percebe-se que os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica em causas que envolvam relação de consumo são abrangentes, não há necessidade de fraude.

Outrossim poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, de acordo com o art. 28, § 5º, do CDC, que incorpora a teoria menor.

Nesse passo, existindo relação de consumo incide a teoria menor prevista no § 5.º do art. 28 do CDC, que dispensa a comprovação de desvio de finalidade e da confusão patrimonial, bastando que a personalidade da pessoa jurídica caracterize óbice ao ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor5.

Do Procedimento Adotado pelo NCPC

Explicados os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, tanto no âmbito civil, quanto no consumerista, importa destacar o procedimento estabelecido pelo NCPC para sua efetivação.

Pois bem, antes do novo diploma não havia regramento próprio para a declaração da desconsideração da personalidade jurídica, de forma que a doutrina se dividia entre aqueles que entendiam em respeito ao devido processo legal ser necessário o ajuizamento de ação incidental com o exercício do contraditório e da ampla defesa em face dos sócios e aqueles que não foram parte no processo originário.

E outros que entendiam que bastava uma decisão fundamentada nos próprios autos do processo dispensando-se também a citação dos sócios, em desfavor de quem foi superada a pessoa jurídica, bastando a defesa apresentada a posteriori, mediante embargos, impugnação ao cumprimento de sentença ou exceção de pré-executividade, conforme o caso, posição que vinha sendo aceita pelos Tribunais.

Nessa senda, a jurisprudência do STJ pacificou o entendimento de que a aplicação da teoria da disregard doctrine dispensava a propositura de ação autônoma: REsp n.º 418.385/SP, rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 19.6.2007; REsp n.º 1.034.536/MG, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 5.2.2009; AgRg no Agravo em Recurso Especial n.º 9.925/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 8.11.2011; REsp n.º 1.096.604/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 2.8.2012; e AgRg no Recurso Especial n.º 1.182.385/RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 6.11.2014.

Consoante assentado no julgamento do REsp n.º 1.096.604, o contraditório ficava diferido: "... sob pena de tornar-se infrutuosa a desconsideração da personalidade jurídica, afigura-se bastante quando, no âmbito do direito material, forem detectados os pressupostos autorizadores da medida a intimação superveniente da penhora ...". Ainda, o REsp n.º 1.182.620, do C. STJ sublinhou que, "garantido o direito ao contraditório, ainda que diferido, não há falar em nulidade de decisão que desconsidera a personalidade jurídica”.

Entrementes, o novel CPC corrigiu referida injustiça jurisprudencial criando o Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica estabelecido nos arts. 133, e seguintes do NCPC, como uma forma de intervenção de terceiros, tratando-se de litisconsórcio passivo facultativo (FPPC, Enunciado 125).

Outra possibilidade criada pelo NCPC é a desconsideração inversa da personalidade jurídica, isto é, a pessoa jurídica passa a responder por obrigações que não são originárias suas, mas de seus sócios ou administrador, em outras palavras, o patrimônio da pessoa jurídica servirá para cumprir a obrigação do sócio devedor.

Referida hipótese já era admitida pela jurisprudência, pois visava combater a utilização indevida do ente societário pelos sócios, o que poderia ocorrer nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica.

Pois bem, são legitimados a requerer o incidente as partes envolvidas no processo e o Ministério Público, somente quando lhe couber intervir no processo, não podendo ser instaurado de ofício pelo juiz, ressalvado o processo trabalhista, cujo juiz tem poderes para iniciar a execução de ofício.

Como explicado nos tópicos acima o pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei, ou seja, a teoria maior em se tratando de CC e a teoria menor em se tratando de CDC, há outras hipóteses em leis especificas, como lei do Meio Ambiente, lei Antitruste e lei Anticorrupção, desta forma, o requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos supracitados de acordo com a lei de regência.

O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial, sendo que sua instauração suspende o processo.

Igualmente, por expressa disposição legal, com supedâneo no art. 1.062, NCPC, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplicar-se-á ao processo de competência dos juizados especiais.

A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) aprovou o Enunciado 53 em que entende ser inaplicável o incidente nas execuções fiscais, cujo texto in literis "redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 133 do CPC/2015", posição que vem sendo adotada pela jurisprudência.

No âmbito da justiça do trabalho, por força do art. 15, do NCPC, que prevê a aplicação das normas processuais civis de forma supletiva e subsidiariamente junto à justiça laboral, sobretudo em razão da IN 39/16, do TST, em específico o art. 6°, in verbis: "aplica-se ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no CPC (arts. 133 a 137), assegurada a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução (CLT, art. 878)".

Ainda, no processo do trabalho, da decisão que resolve o incidente de desconsideração da personalidade jurídica na fase de execução cabe agravo de petição, dispensado o preparo (Enunciado nº 126, FPPC).

No processo falimentar, segundo o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), nos termos do enunciado 247, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é aplicável.

Será dispensável a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida logo na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica, não havendo suspensão. Nesse caso incumbe ao sócio ou a pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a própria desconsideração, mas também os demais pontos do processo (Enunciado nº 248, FPPC).

De outro lado, quando não requerida a desconsideração da personalidade jurídica na inicial ocorrerá a suspensão do processo. Não nos parece adequada a prática de suspensão de todo o processo para o debate apenas da desconsideração adotada pelo NCPC, vez que eventual execução, por exemplo, poderia continuar tramitando em busca de outros bens do devedor originário.

De todo modo, instaurado o incidente, o sócio será citado para, no prazo de 15 dias úteis, manifestar-se e requerer as provas cabíveis, no caso de desconsideração inversa em ação movida contra sócio será citada a pessoa jurídica.

Posteriormente, concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, atacável por Agravo de Instrumento (art. 1.015, IV, do NCPC), e se a decisão for proferida pelo relator, quando o incidente for instaurado originariamente perante o tribunal (art. 932, VI, NCPC), caberá agravo interno (art. 1.021, do NCPC).

O professor José Miguel Garcia Medina6 ensina que "o pedido (feito na petição inicial, por exemplo) seja resolvido na sentença, caberá apenas apelação – ainda que a sentença tenha dois ou mais capítulos distintos". Ainda, acrescenta, trazendo a luz decisão do STJ, que a "decisão que julga procedente ou improcedente o pedido de desconsideração, por fazer 'juízo sobre a existência ou a inexistência ou o modo de ser da relação de direito material objeto da demanda', é considerada de decisão de mérito, sujeita a ação rescisória".

Caso haja constrição judicial de bens, por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte o sócio, será possível a oposição de Embargos de Terceiro, nos termos do art. 674, § 2º, III, NCPC.

Ademais, acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente, a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar (art. 792, § 3º, NCPC), nessa senda, o ENFAM aprovou o Enunciado 52, cujo texto estabelece que a "citação a que se refere o art. 792, § 3º, do CPC/15 (fraude à execução) é a do executado originário, e não aquela prevista para o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 135 do CPC/2015)".

Por fim, como efeito do acolhimento do pedido de desconsideração passarão a estar sujeitos à execução os bens do responsável (sócio ou administrador), de acordo com o art. 790, NCPC, não estando limitado a cota social.

___________________

1. Guilherme, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Código Civil Comentado. Série Descomplicada. São Paulo: Rideel. 2013. p. 66.
2. Guilherme, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Código Civil Comentado. Série Descomplicada. São Paulo: Rideel. 2013. p. 71.
3. Jornada de Direito Civil
4. AgRg no AREsp 794.237/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/03/2016, DJe 22/03/2016.
5. STJ, 3.ª T., REsp n.º 279.273-SP, rel. p. o ac. Min. Nancy Andrighi, j. 4.12.03.
6. Medina, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribuanis. 2015. p. 140.

___________________

 

*Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme é sócio do escritório Almeida Guilherme Advogados Associados, mestre e doutor pela PUC-SP e professor.

 

*Gabriel Barreira Bressan é associado do escritório Almeida Guilherme Advogados Associados e mestre pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

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