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Possível inconstitucionalidade do artigo 10 da lei 9.099/95 - intervenção de terceiros x tempo razoável

Quanto mais harmônica uma jurisdição, mais próxima de uma ideia de fair hearing ou julgamento justo, o que é prelado básico em uma sociedade de confiança (justified trust).

31/1/2017

A vedação à intervenção de terceiros no âmbito do Juizado Especial Cível não tem sintonia com a garantia de um tempo razoável de duração de um processo.

 

Como é sabido, desde a aprovação da Emenda Constitucional 45/04 – Reforma do Poder Judiciário, norma contida no artigo 5º, inciso LXXVIII da CF passou a se orientar no sentido de que todo procedimento judicial ou administrativo deva se desenvolver sob a perspectiva de um tempo razoável de duração.

 

Sob tal perspectiva, tudo aquilo que numa relação jurídica processual leve a uma perda de tempo efetiva, passou a ser considerado uma norma inconstitucional.

 

E assim parece estar a ocorrer com a norma contida no artigo 10 da lei 9.099/95 que veda a situação da intervenção de terceiros no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis.

 

Ora, num primeiro momento pode parecer que a perspectiva de intervenções de terceiro em uma dada relação jurídica processual possa ser algo positivo, afinal, até esse terceiro ser citado (geralmente o é) e apresentar uma resposta, ter-se-á observado a necessidade de se aguardar a passagem do tempo para as partes do Juizado, tornando o feito mais moroso.

 

No entanto, sempre com a maior vênia possível, tem-se que as coisas devem sempre ser observadas sob a projeção de um quadro maior. Ora, o fenômeno da intervenção de terceiros, ao contrário do que se possa supor, implica em um conjunto de institutos processuais que visa, justamente, atingir a celeridade processual, permitindo que um grande número de demandas que possivelmente adviria do julgamento da demanda em que ocorre seja todo resolvido de uma só vez.

 

Com isso, obviamente, o número de processos tende a cair na mesma proporção, beneficiando a todos os usuários do sistema judicial. Se tudo se resolve em uma só demanda, menor o número de demandas para que todos os envolvidos em uma dada situação jurídica complexa consigam a prestação jurisdicional satisfativa.

 

Nesse sentido, ponderam autores como Luiz Guilherme Marinoni, apontando na direção de que não basta se garantir a todos o direito de ação (artigo 5º, inciso XXXV CF), mas deve-se garantir a todos o acesso uma tutela integralmente satisfativa. Aí entra em destaque a garantia do tempo razoável de duração de um processo.

 

Imagine-se um acidente de trânsito. O autor não sabe que o veículo do réu é segurado. O réu, por sua vez, tem contrato de seguro firmado com seguradora que se revela como terceira na lide originária. Ora, viola-se o tempo razoável do réu, ter que fazer com o mesmo seja condenado na ação em questão para, após pagar o prejuízo, intente nova demanda contra a seguradora (correndo o risco de caracterização de uma prescrição de sua pretensão).

 

Duas demandas para resolver um só encadeamento de relações jurídicas? Isso não é pensamento econômico, racional ou razoável. O tempo razoável de duração do processo do réu, em condições como tal, fica totalmente comprometido.

 

Ao contrário, em condições como tal, tem-se que a Súmula 537/STJ não tem sequer exigido que o segurado pague a indenização, bastando que tenha havido a denunciação para que a seguradora pague diretamente ao lesado a indenização devida (e isso em interpretação que deve ser feita em conjunto com a Súmula 529/STJ). Nesse caminho se orientam a tempestividade e a efetividade do sistema.

 

Eis o teor expresso de referida Súmula:

 

Súmula 537 "Em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice" (REsp 925.130).

 

Não se pode, ademais, se esquecer que a lei 9.099/95 não obstante tenha representado um grande e essencial avanço para o julgamento de causas cíveis de menor complexidade, seja, à essa altura, um diploma legislativo com vinte anos de vigência, ou seja, pede releituras para a adequação à nova realidade do país.

 

Quando de sua vigência inicial, o próprio rito sumário proibia intervenção de terceiros, mas, com o passar dos anos, o próprio legislador ordinário voltou atrás e, mesmo em rito sumário, passou a admitir a integração de seguradoras nesse tipo de processos em situação de intervenção de terceiros.

 

Assim o CPC/73 teve sua estruturação alterada, com a redação do artigo 280 do CPC, pelo advento da lei 10.444/02, que passou a admitir intervenções de seguradoras, em tais casos, quando houvesse contrato de seguro (tal como se dá no caso presente), evitando-se mais uma demanda em situações de tão fácil solução. E tal situação não foi alterada pelo advento da lei 13.105/05, o novo CPC, ainda em vacatio legis, que unificou o procedimento comum.

 

Tal expediente, aliás, aumenta as chances de se obter um acordo (o réu tem uma segurança maior sabendo que a seguradora prontamente responderá nos termos da apólice) e aumenta as possibilidades de recebimento por parte do ofendido. Tudo conspira a favor da admissão deste tipo de intervenção em sede de Juizados Especiais Cíveis, não havendo mais justificativa plausível para se compreender a vedação legal como constitucional.

 

Há diretriz constitucional clara no sentido de que, sempre que houver dois entendimentos possíveis acerca de uma mesma questão, deverá prevalecer o que melhor atenda ao tempo razoável em questão. Mesmo antes da referida EC 45/04, o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil e aprovado pelo Decreto Presidencial 678/92, já previa, em seu artigo 8º, a necessidade de se observar um tempo razoável de duração de um processo.

 

A situação se tornou tão premente que o advento da lei 13.105/15, que aprovou o novo CPC, ainda em vacatio legis, de modo expresso, em complemento aos princípios de celeridade e economia do artigo 2º da lei 9.099/95, estabeleceu em seu artigo 4º, a necessidade de observância de um tempo razoável para a prestação jurisdicional satisfativa.

 

Não basta julgar, deve haver satisfatividade, ou seja, deve-se dar, desde logo, ou quanto mais breve possível, o que se obteria ao final do processo, evitando-se que a perda de tempo implique em esvaimento do direito da parte.

 

Como argumento de reforço, observe-se que a norma contida no artigo 1062 do NCPC, de modo expresso, determina que se aplique ao rito dos Juizados Especiais, o incidente de desconsideração de personalidade jurídica.

 

Ora, como sabido, tal incidente, nos termos do novo Código implica em uma das hipóteses de intervenção de terceiros. Isso é clara demonstração no sentido de que o legislador pátrio pretende impor intervenções de terceiro nos ritos do Juizado Especial, notadamente no que se dá em relação ao rito da lei 9.099/95.

 

Assim, não só a denunciação da lide e o incidente de desconsideração, mas todas as formas de intervenção de terceiro devem ser aceitas no rito do Juizado como forma de contribuição para a redução proporcional do número de demandas em curso, bem como para garantir conciliações mais abrangentes que resolvam, desde logo, a responsabilidade de todos aqueles conectados em relações jurídicas que potencialmente poderiam implicar em proliferações de demandas desnecessariamente.

 

Negar tal situação será negar, por exemplo, ao Procon que se arrole como amicus curiae em ação movida por consumidor contra banco no Juizado, o que parece ser contrassenso, até porque evidente sua representatividade adequada para tanto (o amicus curiae é outra forma de intervenção de terceiros no novo CPC).

 

Ora, se o réu já aponta não ser parte legítima para figurar no polo passivo da lide, não parece mais adequado permitir-lhe nomear à autoria o verdadeiro responsável permitindo-se o prosseguimento da mesma demanda contra o mesmo? Tanto isso é adequado que, ao invés de ser considerado intervenção de terceiros pelo legislador pátrio, passou a ser um incidente automático da defesa, nos termos do artigo 338 do novo CPC.

 

Se há vários devedores solidários, por que não se permitir que uns chamem os outros ao processo, garantindo-se que os regressos e sub-rogações sejam todos analisados por um único juízo.

 

Tudo isso contribuiria, inclusive, para que se alcançasse outro princípio da jurisdição, qual seja, o princípio da harmonia da jurisdição, através do qual se impediria a coexistência de decisões judiciais em sentido contrário. Quanto mais harmônica uma jurisdição, mais próxima de uma ideia de fair hearing ou julgamento justo, o que é prelado básico em uma sociedade de confiança (justified trust).

 

Nesses termos em que posta a questão, parece, em que possam pesar doutos entendimentos em sentido contrário, que a interpretação mais consentânea com o texto constitucional se oriente no sentido de que a vedação à intervenção de terceiros no âmbito do Juizado Especial Cível esteja cada vez mais, em falta de sintonia com a garantia de um tempo razoável de duração de um processo, em modelo que revela sua preocupação com a satisfatividade da prestação jurisdicional.

 

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*Júlio César Ballerini Silva é magistrado, professor e coordenador Nacional do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da ESD/Proodem.

 

 

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