No universo daquele que visa prestar concurso público, deve-se estar preparado para tudo, já que, hoje, tudo se normatiza (como digo em aula, o mundo é um lugar perigoso para se viver). Pela tradição do direito civil herdada do Código Civil de 1.916, animais são bens semoventes, parte do patrimônio de seu titular, o que, numa visão fria, longe da concretude, foi mantido pelo Código Civil atual (entendendo-se por patrimônio a noção de Pontes de Miranda de acordo com a qual esse seria um conjunto de posições jurídicas ativas e passivas, atinentes a um dado titular, sendo passíveis de avaliação econômica e consequente expressão monetária). Mas, na prática, inúmeras ações já passam a tramitar nos Tribunais pátrios, envolvendo discussões que levam à necessidade de revisão deste conceito, ao menos em nível de animais de estimação. Isso porque, não raro, tem-se disputado a guarda de animais de estimação em ações de direito de família.
Tais questões se tornam tão frequentes que atingiram a seriedade necessária para envolver a propositura de proposta legislativa. Em primeiro lugar se destaca o Projeto de Lei que tramita pelo Senado Federal de autoria do Senador Antônio Anastasia do PSDB/MG, que visa criar uma categoria diferenciada na parte geral do Código Civil (hoje temos três categorias disciplinadas: das pessoas, dos bens e dos fatos jurídicos). Pelo Projeto que tramita no Senado Federal, os animais seriam destacados dos bens, constituindo categoria própria, diferenciada. Ou seja, está sendo reconhecido que seriam diferentes dos demais bens – afinal, não podem ser tratados com crueldade, em antítese ao jus utendi decorrente da propriedade dos demais bens inanimados. Até aí não há muita novidade, afinal de contas, desde há muito, tem-se entendido que toda propriedade deve atender a um fim social (princípio da socialidade, como antevisto por Miguel Reale).
O Projeto do Senado tem que ser visto com certo cuidado, devendo ser precedido de maior discussão, eis que parece querer fazer voltar aos tempos do direito romano clássico, jus quiritum, como se tem com o caso da biga de Alfenus, em que o praetor peregrino condenou o cavalo pelo acidente de bigas - Digesto de Justiniano.
A verdadeira novidade está em outro Projeto Legislativo que tramita perante a Câmara dos Deputados (PL 1365/15) que vai além disso. Tal Projeto se destina a disciplinar a questão da guarda dos animais em caso de disputa em ações de família. Além de não serem mais bens, ao menos os animais de estimação estariam sujeitos à guarda (até então prerrogativa de filhos menores – erra o legislador ao atribuir o nome de guarda ao instituto dos animais de estimação).
Isso se dá, não porque estejamos concedendo algum privilégio ao animal de estimação, mas, ao revés, estamos protegendo a afetividade que se agrega à personalidade de seu dono - e o texto constitucional, como sabemos, tutela a afetividade como valor do Estado Democrático de Direito - essa, aliás, a base do reconhecimento das uniões estáveis, anaparentais, homoafetivas, parentesco socioafetivo, etc. Então, por que não estabelecer o mesmo critério em relação aos animais de estimação?
Ótima a proposta legislativa que passa a dar contornos claros a esse tipo de questão, cada vez mais frequente em demandas judiciais, não obstante o termo guarda revele falha de técnica legislativa, a questão tem mesmo que ser disciplinada por lei, facilitando a vida dos donos em caso de dissolução de uma entidade familiar, mormente quando há filhos pequenos que agregam afeto ao seu pet. Insisto, no entanto, num ponto que parece estar passando despercebido: Juiz deve estar atento ao fato de que deve existir evidência de afetividade do dono em relação ao animal. E isso porque não se pode admitir que a "guarda" do animal seja disputada por conta de abusos no direito de demandar. E atos abusivos (emulativos) são atos ilícitos (artigo 187 CC). É a teoria dos atos próprios. Não raro a pessoa, numa situação de ruptura de relacionamento, movida por sentimentos como mágoa, tenda buscar a guarda do animal apenas no intuito de atormentar a outra parte. Isso, inclusive, pode levar a situações aflitivas e angustiantes que possam gerar danos morais. Seria interessante se o legislador já cuidasse, também, desse tipo de questão. Fica a dica!
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*Júlio César Ballerini Silva é magistrado, professor e coordenador nacional da pósgraduação em Direito Civil e Processo Civil da ESD/Proordem.