Nos contratos de locação firmados entre lojistas e empreendedores de shopping centers, são geralmente previstos dois tipos de aluguel de forma simultânea.
O aluguel mínimo que, segundo Gladson Mamede1, trata-se do valor pago pelo lojista, baseado nos metros quadrados que locou, conforme a localização no empreendimento. É o aluguel que comumente se pratica no mercado imobiliário em geral.
E a figura do "aluguel percentual", também denominado "aluguel de desempenho", que conforme o referido autor, reflete a constituição de um negócio de parceria por meio do qual a administração é remunerada na proporção do sucesso do empreendimento. O percentual é aplicado sobre o faturamento bruto da loja, sendo devido quando exceder o aluguel mínimo e naquilo que o ultrapassar.
Diante disso, torna-se evidente, evidentíssimo, aliás, que um determinado lojista que está obrigado por contrato a pagar o percentual de 5% de seu faturamento bruto, diante da imposição de um valor mínimo, passará a arcar com 20% e até mesmo mais de 30% do faturamento, caso não logre o êxito esperado em sua atividade comercial.
Já o empreendedor de shopping center sempre se encontraria em posição segura e vantajosa, ao não ser impactado pelos dissabores da atividade comercial.
Mas, quando a situação se inverte, o locador automaticamente se sujeita à variação do faturamento da locatária.
Isso é possível juridicamente? Não resultaria em demasiada vantagem ao empreendedor, em detrimento do lojista?
Primeiramente, não se deve negar que a instituição de shopping center se reveste de particularidades no trato do assunto referente ao direito imobiliário e à lei de locações. Decorre do fato de que, como bem ilustra Sylvio Capanema de Souza2:
Na locação comum, o fundo de comércio pertence exclusivamente ao locatário, sendo por ele criado, com seu trabalho diuturno. (...) Nos shopping centers, ao contrário, coexistem dois fundos de comércio, sendo um do locatário e outro do próprio complexo econômico, que funciona como polo de atração de clientela, mercê das facilidades que oferece e da segurança que proporciona, com áreas comuns de estacionamento, lazer, alimentação, etc.
Por isso, verifica-se que a doutrina e jurisprudência majoritária vem considerando que o contrato de locação de shopping center tem natureza atípica, autorizado pelo CC que estabelece, em seu artigo 425, que: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código."
Nessa linha, o STJ, no julgamento do Recurso Especial 178908, afirmou que "os contratos de locação de espaços em shopping center são contratos atípicos, ensejando locação de bens e serviços."
Desse modo, estes contratos se afastam dos modelos previstos na lei, sendo, entretanto, permitidos juridicamente, desde que não contrariem a lei, os bons costumes e os princípios gerais de direito. O contrato atípico pode ser misto quando é resultado do somatório de uma ou mais partes previstas em lei com outros elementos não previstos, que são estipulados pela vontade das partes, conforme suas próprias convicções.
Segundo Gladson Mamede3: "É o que passa com o contrato de locação em shopping center, que combina o contrato de locação, regido por lei própria, com um contrato de prestação de serviço (do administrador para os lojistas), além de outros elementos”.
Nesse diapasão, restou estabelecido no art. 54 da lei do inquilinato que, nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping centers, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação.
Tal posição já foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que “a Lei do Inquilinato aplica-se aos contratos de locação de espaço em shopping center (inteligência dos arts. 1º, 52, §2º, e 54 da Lei 8245/91” (EDCl no REsp 331.365, Min. Hamilton Carvalhido, 3a Seção, DJ 6.8.08).
Assim, a jurisprudência vem se utilizando maciçamente de tais disposições legais para afastar pedidos de declaração de abusividade de cláusulas contratuais, fato que, indubitavelmente, vem dando tranquilidade aos shopping centers para enrijecer os contratos que normalmente são elaborados de forma unilateral, dada a grande diferença entre o poder econômico das partes, o que faz surgir verdadeiras cláusulas de adesão, leoninas, que desequilibram a relação entre empreendedor e lojista.
Ao contrário do que vale a lei do inquilinato para locações comuns, sob o manto do citado art. 54 da lei do inquilinato, os empreendedores passam a gozar de vantagens como cobrança de "luvas", 13º aluguel, reajustes em prazo inferiores a um ano, entre outros.
Os julgados abaixo refletem a posição majoritária dos tribunais brasileiros:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. LOCAÇÃO DE ESPAÇO EM SHOPPING CENTER. CLÁUSULA CONTRATUAL LIMITADORA DO VALOR DA REVISÃO JUDICIAL DO ALUGUEL MENSAL MÍNIMO. RENÚNCIA PARCIAL. VALIDADE. PRESERVAÇÃO DO PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA. 1. Ação declaratória de nulidade de cláusula contratual cumulada com pedido revisional do valor do aluguel mensal mínimo. 2. Recurso especial que veicula a pretensão de que seja reconhecida a validade de cláusula de contrato de locação de imóvel situado em shopping center que estabelece critérios para a revisão judicial do aluguel mensal mínimo. 3. O princípio do pacta sunt servanda, embora temperado pela necessidade de observância da função social do contrato, da probidade e da boa-fé, especialmente no âmbito das relações empresariais, deve prevalecer. 4. A cláusula que institui parâmetros para a revisão judicial do aluguel mínimo visa a estabelecer o equilíbrio econômico do contrato e viabilizar a continuidade da relação negocial firmada, além de derivar da forma organizacional dos shoppings centers, que têm como uma de suas características a intensa cooperação entre os empreendedores e os lojistas. 5. A renúncia parcial ao direito de revisão é compatível com a legislação pertinente, os princípios e as particularidades aplicáveis à complexa modalidade de locação de espaço em shopping center. 6. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1413818 DF 2013/0357088-7, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 14/10/2014, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 21/10/2014) (grifou-se)
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CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RENOVATÓRIA DE LOCAÇÃO EM SHOPPING CENTER. (..) 3 – Existindo expressa previsão contratual e não sobressaindo ilegalidade dos termos pactuados em avença de locação de unidade comercial no tocante à fórmula de cálculo do valor do aluguel mínimo nos casos de renovação do contrato, deve ser prestigiado o princípio da obrigatoriedade do contrato, pacta sunt servanda, não subsistindo a pretensão de declaração de nulidade das cláusulas impugnadas. (...) (TJ-DF - APC: 20100111362058 DF 0045336-09.2010.8.07.0001, Relator: ANGELO CANDUCCI PASSARELI, Data de Julgamento: 15/10/2014, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 20/10/2014 . Pág.: 223) (grifou-se)
Entretanto, a liberdade das partes para estipular o conteúdo do negócio jurídico, ainda que em contratos atípicos de locação em shopping center, não é irrestrita e ilimitada.
Isso porque, com o advento do CC de 2002, o princípio da função social do contrato, passando a ser estabelecido no ordenamento brasileiro, elevou o interesse coletivo em detrimento do individual, tendo sido inserido em evidente sintonia ao disposto no art. 5º, inciso XXIII da CF, que limita o direito de propriedade ao atendimento da função social.
Assim, o tradicional princípio pacta sunt servanda, que trata sobre a obrigatoriedade de exato cumprimento do conteúdo disposto nas relações contratuais, restou enfraquecido diante da limitação da função social do contrato.
Desse modo, fica ao Poder Judiciário concedido o direito de limitar o alcance do art. 54 da lei do inquilinato, visando a nulidade de dispositivos contratuais, e até mesmo de todo o contrato baseado em cláusulas abusivas.
A liberdade de contratação pode ser restringida em especial quando há cláusulas que colocam uma das partes em situação de desvantagem desproporcional e exagerada, ou quaisquer outras que possam ferir o equilíbrio contratual.
Ao examinar o tema da revisão de contratos de shopping Center, consignou o em. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino que “no Direito Empresarial, regido por princípios específicos, como a liberdade de iniciativa, a liberdade de concorrência e a função social da empresa, a presença do princípio da autonomia privada é mais relevante do que em outros setores do Direito Privado.” E segue: “todavia, mesmo no Direito Empresarial, pode haver a necessidade de mitigação do princípio da autonomia privada, especialmente quando houver desigualdade material entre as empresas contratantes." (REsp 1158815/RJ, Resp 2009/0195426-0, 3ª Turma, DJe 17/02/2012).
Sob esse prisma, o Judiciário também já entendeu ser permitida a intervenção em contratos de locação em shopping center para fins de reconhecimento da abusividade de cláusulas, como por exemplo:
DIREITO CIVIL. SHOPPING CENTER. INSTALAÇÃO DE LOJA. PROPAGANDA DO EMPREENDIMENTO QUE INDICAVA A PRESENÇA DE TRÊS LOJAS-ÂNCORAS. DESCUMPRIMENTO DESSE COMPROMISSO. PEDIDO DE RESCISÃO DO CONTRATO.
1. Conquanto a relação entre lojistas e administradores de Shopping Center não seja regulada pelo CDC, é possível ao Poder Judiciário reconhecer a abusividade em cláusula inserida no contrato de adesão que regula a locação de espaço no estabelecimento, especialmente na hipótese de cláusula que isente a administradora de responsabilidade pela indenização de danos causados ao lojista.
2. A promessa, feita durante a construção do Shopping Center a potenciais lojistas, de que algumas lojas-âncoras de grande renome seriam instaladas no estabelecimento para incrementar a freqüência de público, consubstancia promessa de fato de terceiro cujo inadimplemento pode justificar a rescisão do contrato de locação, notadamente se tal promessa assumir a condição de causa determinante do contrato e se não estiver comprovada a plena comunicação aos lojistas sobre a desistência de referidas lojas, durante a construção do estabelecimento. (REsp 1259210/RJ, 2011/0061964-0, Min. Massami Uyeda, 3a Turma, DJe 07/08/2012). (grifou-se)
Sobre o assunto, Sylvio Capanema de Souza4, assim se manifestou: "Caberá ao prudente arbítrio do juiz, diante do caso concreto, decidir se a cláusula contratual e de natureza econômica e necessária ao funcionamento do sistema, ou se, ao contrário, traduz vantagem desproporcional, em benefício do empreendedor, quando, então, deverá ser escoimada do contrato”.
Nesse passo, a previsão conjunta dos dois referidos tipos de cláusulas de remuneração de alugueres, por valor mínimo e percentual, deve ser rechaçada pelo poder judiciário, tornando-se nulas de pleno direito, vez que implicam em evidente desequilíbrio entre as partes, impondo ônus excessivo ao locatário.
O aluguel percentual, como já tratado, seria uma forma justa de remuneração vez que é a forma que melhor caracteriza a função do "shopping center". Quanto melhor for o desempenho do lojista, melhor será o retorno para o empreendedor.
Entretanto, a conjunção desse método com o estabelecimento de aluguel mínimo torna-se vantagem exagerada que dispõe o locador, shopping center, decorrendo do fato de que o locatário sempre terá de suportar o valor mínimo definido, mesmo que não tenha obtido êxito em suas atividades.
O lojista assume todos os riscos inerentes à atividade de seu ramo de negócios, ao contrário do empreendedor que não corre nenhum risco e ainda pode lucrar com o insucesso, uma vez que a cada loja devolvida por falência é mais uma loja a ser novamente negociada, ou seja, mais um montante de "luvas" a ser recebido. Basta observar a prática para se chegar à conclusão de que a rotatividade pode se tornar facilmente em fonte real de lucro para alguns empreendimentos.
Dessa forma, muitas vezes compensa financeiramente ao empreendimento aceitar um lojista inexperiente, que não apresenta sinais de sustentabilidade econômica e financeira em seu fundo de comércio, para que o mesmo ingresso no mix de lojas por pouco tempo, pagando o valor das "luvas" e depois tendo que amargar prejuízo, encontrando dificuldade até mesmo para passar o ponto para outro interessado, em face da competição com o próprio shopping center, não restando alternativa a não ser devolver, gratuitamente, aos seus antigos vendedores para que estes possam lucrar novamente negociando o espaço físico em questão.
Portanto, na sistemática que prevalece atualmente, o risco do empreendedor é passado integralmente ao lojista, que é sempre visto como o "incompetente", sendo que o empreendedor nenhum risco corre.
Assim, tal cláusula que impacta diretamente no valor do aluguel mensal é capaz de conferir vantagem desproporcional ao locatário em relação ao locador, fazendo-o não contribuir com o ônus do insucesso, ao tempo em que garante auferir o bônus da atividade econômica favorável.
Seria o mesmo que designar ao lojista um sócio que só participa dos lucros, sendo certo que inexiste relação contratual equilibrada diante de tal premissa.
Ademais, em alguns casos o próprio aluguel mínimo sofre aumentos progressivos, muitas vezes em prazos inferiores a um ano, enquanto a curva de vendas não consegue acompanhar, situação que vai se revelando ao lojista como fator de inviabilização da locação com o passar do tempo.
Os defensores dos shoppings centers, que estão sempre atentos e conectados aos gabinetes parlamentares, a fim de monitorar os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, possivelmente defenderiam que tal medida colocaria em risco a atividade do empreendimento, deixando-o em situação de vulnerabilidade diante da possibilidade de omissão por parte do lojista, que poderia sonegar parcelas de sua receita bruta com vistas a pagar valores menores a título de aluguel.
Contudo, para fins de mensuração do valor da parcela variável do aluguel, os contratos jamais deixam de prever a possibilidade do locador proceder auditoria nas instalações, assim como fiscalização da movimentação econômica da loja, certificando-se de que para todas as vendas efetuadas seja emitida nota fiscal, mediante o correto registro diretamente no caixa.
De acordo com Mamede5, a fidelidade dessa participação é garantida por uma obrigação acessória, correspondente à submissão do lojista à auditoria de sua contabilidade e de suas atividades, permitindo exame de caixas registradoras, recibos, talões, notas fiscais, livro de registro de estoque ou venda de mercadorias, ou, também, a qualquer outra forma de controle, diretamente, ou através de terceiros contratados.
Dessa forma, veja-se que se contrato de locação em shopping center apresenta cláusulas de fiscalização do faturamento bruto dos lojistas, garantindo, assim, a veracidade das informações que servirão de base para o cálculo do aluguel percentual do imóvel, não subsistem motivos para continuar conferindo tratamento desigual às partes.
Deixando de coexistir a figura do aluguel mínimo de forma concomitante ao aluguel percentual, os empreendimentos, como não poderia deixar de ser, passariam a ser mais responsáveis e criteriosos com as marcas que ingressariam em seu pool comercial, evitando-se que verdadeiras aventuras comerciais sejam levadas adiante, somente com o intuito de movimentar a venda de "luvas".
Ainda que não se tenha uma legislação específica sobre esse tema que se reveste de natureza complexa, diante do exposto, resta evidente que cláusulas que estipulam, conjuntamente, a cobrança de aluguel mínimo e percentual, configuram desequilíbrio entre as partes, e que, diante do princípio da função social que relativiza a vontade das partes manifestada por meio da assinatura de contrato, o aluguel mínimo deve ser considerado inválido diante da existência de cláusula que remunera pelo desempenho.
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1. MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial. – 7. Ed. – São Paulo: Atlas, 2013.
2. Souza, Sylvio Capanema de. Da Locação do Imóvel Urbano, Rio de Janeiro, Forense, 2001, nº 257, p. 361-362.
3. MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: empresa e atuação empresarial. 2 Ed. volume 1. São Paulo: Atlas, 2012.
4. Souza, Sylvio Capanema de. Da Locação do Imóvel Urbano, Rio de Janeiro, Forense, 2001, nº 257, p. 361-362.
5. MAMEDE, Gladston. Manual de direito empresarial. – 7. Ed. – São Paulo: Atlas, 2013, p. 265.
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*Thiago Boaventura é Consultor-Técnico Legislativo da Câmara Legislativa do DF. Sócio do escritório Boaventura, Coelho, Lyra & Jungmann Advogados Associados. Especialista em direito imobiliário e empresarial e sócio-cotista de sociedade empresária varejista.