Em 27/12/2016 foi publicada a Medida Provisória 764/16 (MP 764), que autorizou a diferenciação de preços de bens e serviços ofertados ao público, em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado. A MP 764 estabeleceu ainda a nulidade de qualquer cláusula contratual que proíba ou restrinja a diferenciação de preços facultada aos fornecedores de bens e de serviços no Brasil.
Historicamente, muito se discutiu sobre a legalidade de instituir preços diferentes para consumidores que adquirem produtos utilizando dinheiro, cheque, cartão de débito ou cartão de crédito como formas de pagamento.
Em que pese o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não conter previsão específica com relação ao tema, por força do artigo 1º, parágrafo único, inciso I da Portaria Federal 118/94, editada pelo Ministério da Fazenda1, os órgãos de defesa do consumidor autuavam os fornecedores que praticavam qualquer tipo de diferenciação de preços em razão do pagamento via cartão, cheque ou dinheiro.
O tema da legalidade da diferenciação do preço de acordo com a forma de pagamento foi enfrentado pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 16/12/1999, quando do julgamento do REsp 229.586/SE. Naquela ocasião, o STJ entendeu que não há que se falar em prática abusiva do fornecedor que, nas vendas com cartões de crédito, vende produtos por preços superiores aos praticados em vendas à vista2.
Aumentando a polêmica acerca do tema, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça (DPDC) expediu a Nota Técnica 103 CGAJ/DPDC/2004, em 12/5/2004, concluindo pela abusividade da cobrança de preços diferenciados para compras feitas com cartão de crédito.
Segundo o entendimento do DPDC, ao se dispor a aceitar cartões de crédito como forma de pagamento, o fornecedor não poderia cobrar qualquer quantia a fim de desestimular o uso do referido meio de pagamento, sob pena de violação da boa-fé (artigo 4º, III, do CDC). Ademais, segundo o DPDC, a cobrança de um preço maior nas compras com cartão de crédito transferiria o ônus da atividade do fornecedor ao consumidor, com o que propiciaria uma vantagem manifestamente excessiva para o fornecedor, o que violaria o artigo 39, V, do CDC.
Tal orientação do DPDC deu suporte a novas autuações realizadas pelos órgãos de defesa do consumidor contra os fornecedores que praticavam qualquer tipo diferenciação de preços para consumidores que adquiriam produtos utilizando dinheiro, cheque, cartão de débito ou cartão de crédito como formas de pagamento.
Tanto essas autuações quanto outros conflitos individuais envolvendo consumidores e fornecedores foram submetidos à apreciação do STJ que, até hoje, não pacificou o entendimento sobre o tema, existindo julgados que reconhecem a legalidade3 da diferenciação de preços conforme a forma de pagamento, e outros julgados que reconhecem a abusividade4 de tal prática.
Em 6/10/2015, a 2ª Turma do STJ, ao julgar o REsp 1.479.039/MG, em acórdão de relatoria do Ministro Humberto Martins, conclui que a "diferenciação entre o pagamento em dinheiro, cheque ou cartão de crédito caracteriza prática abusiva no mercado de consumo, nociva ao equilíbrio contratual" e que tal prática violaria os artigos 39, inciso V e X do CDC5. Esse posicionamento ganhou o respaldo da 1ª Turma do STJ em 18/8/2016, em julgado proferido pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho6.
Dessa forma, pode-se dizer que a jurisprudência recente do STJ (ao menos da 1ª Seção) mostrava uma tendência de reconhecer a ilegalidade da instituição de preços diferentes para consumidores a depender das diferentes formas de pagamento.
Diante desse cenário, a MP 764 veio em boa hora para, enfim, trazer previsão legal específica autorizando a instituição de preços diferentes para consumidores que adquirem produtos utilizando dinheiro, cheque, cartão de débito ou cartão de crédito como formas de pagamento.
Isso porque, é justificável ao comerciante que aceita o pagamento com cartão de crédito cobrar um preço diferenciado pelo produto ou serviço comercializado, pois (i) o comerciante incorre em gastos maiores em virtude da utilização do cartão de crédito pelo consumidor (em razão das taxas administrativas cobradas pela administradora de cartão de crédito); e (ii) nesses casos, o pagamento não é recebido à vista pela comerciante, mas apenas quando há a liquidação da operação pela administradora de cartão de crédito (o que ocorre, média, em cerca de 30 dias). Na prática, ao obrigar o fornecedor a praticar o mesmo preço, independentemente da forma de pagamento, a jurisprudência e os órgãos de defesa do consumidor obrigavam todos os consumidores a suportar os custos incorridos pelo fornecedor nos casos de pagamentos feitos com cartão ou outros meios de pagamento, mesmo aqueles consumidores que optassem por pagar em dinheiro.
Por fim, a edição da MP 764 reduz a insegurança jurídica a que muitos fornecedores estavam submetidos em sua atividade comercial, ao fixar preços diferenciados de acordo com o meio de pagamento escolhido pelo consumidor.
Respeitado o direito à informação do consumidor e bem advertido de que os preços anunciados se aplicam a determinado meio de pagamento, havendo desconto ou majoração do preço caso o consumidor opte por empregar outro meio de pagamento, isso não violaria os dispositivos do CDC e demonstraria transparência e boa-fé do fornecedor.
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1. O MINISTRO DE ESTADO DA FAZENDA, no uso de suas atribuições e tendo em vista o disposto no art. 8º, § 2º, da Medida Provisória nº 434, de 27 de fevereiro de 1994, resolve:
Art. 1º Dispensar a obrigatoriedade da expressão de valores em cruzeiro real nas faturas, duplicatas e carnês emitidos por estabelecimentos industriais, comerciais e de prestação de serviços, representativos de suas vendas a prazo, inclusive para serem liquidados com prazo inferior a trinta dias, observado o seguinte:
(...)
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se também às faturas emitidas por empresas administradoras de cartões de crédito, caso em que: (...) I - não poderá haver diferença de preços entre transações efetuadas com o uso do cartão de crédito e as que são em cheque ou dinheiro.
2. REsp 229.586-SE, 1ª Turma do STJ, Min. Rel. Garcia Vieira, j. 16.12.1999.
3. REsp 827120 / RJ, Segunda Turma do STJ, Ministro Castro Meira, j. 18.5.2006; AgRg no REsp 1178360 / SP, Segunda Turma do STJ, Ministro Humberto Martins, j. 5.8.2010.
4. REsp 1.133.410/RS, Terceira Turma do STJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, j. 16.3.2010.
5. REsp 1.479.039/MG, Segunda Turma do STJ, Ministro Humberto Martins, j. 6.10.2015.
6. REsp 1610813/ES, Primeira Turma do STJ, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, j. 18.8.2016.
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*Pedro Paulo Barradas Barata é advogado sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*André Luiz Marcassa Filho é advogado associado do escritório Pinheiro Neto Advogados.
*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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