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Resolução escorreita da ANAC – Visão do usuário do serviço público

ANAC permitiu as companhias aéreas cobrarem pelas bagagens despachadas.

26/12/2016

O Senado Federal aprovou na noite do dia 14 de dezembro do corrente ano um projeto de decreto legislativo que susta parte da resolução 400/16 da Agência Nacional de Aviação Civil que permite as companhias aéreas a cobrar pelas bagagens despachadas.

Os Senadores criticaram a Resolução da ANAC com o argumento de que ela teria sido precipitada e abusiva e que atingiria os direitos do consumidor usuário de transporte aéreo.

Acontece que, no exercício da competência que lhe foi outorgada pelo art. 11, inciso V, da lei 11.182/05, a ANAC não desempenhou sua função como se estivesse diante de uma hipótese de uma relação de consumo pura e simples, eis que tem consciência de que está diante de hipótese de concessão de serviço público.

O foco, sem sombra de dúvidas, foi atender o usuário do serviço público de transporte aéreo.

No que se refere aos serviços públicos, tema este destinado às Companhias Aéreas, prescreve o Código de Defesa do Consumidor nos artigos 6º, inciso X e 22, que as empresas concessionárias devem prestar um serviço público de forma adequada, eficiente, segura e, quanto aos essenciais, de maneira contínua.

Contudo, é preciso deixar bem claro que no tocante ao serviço público de transporte aéreo as regras consumeristas devem ser aplicadas com cautela, observando-se os princípios norteadores do serviço público especializado.

Entendemos que as regras consumeristas devem ser empregadas com certo grau de cuidado diante do serviço público, sendo que no caso do Transporte Aéreo prevalecem as normas específicas do setor aéreo.

Tal questão é velha conhecida do Superior Tribunal de Justiça ao discutir a juridicidade do corte de serviço público concedido ao usuário inadimplente, quando resolveu conflito entre arts. 22 e 42 do CDC e o art. 6º, § 3º da lei 8.987/95 para afastar aquele diploma legal e aplicar a legislação especial dos serviços públicos que admite, com limitações, o corte em razão do inadimplemento.

A realidade é que a natureza jurídica existente entre o usuário do serviço público e a concessionária que presta o serviço público de concessão possui relação específica, informada por princípios próprios, notadamente o da realidade social (CF, art. 3º, I) que, nem de leve, pode ser comparada com a relação consumerista.

Nesse sentido, manifestou-se o Ministro do STF Dias Toffoli, por ocasião do Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.478/AP:

“Não é por outra razão que o art. 175, parágrafo único, inciso II, determina que é a lei que estabelecerá a relação entre usuários, e não o Código de Defesa do Consumiror. Há, no caso, um regramento todo específico e especial e, ainda, uma novidade no nosso ordenamento, que é o órgão regulador do setor”

A lei 11.182/05, ao instituir a Agência Nacional de Aviação Civil, delimitou as normas que regem o Setor Aéreo, bem como atribui à ANAC a titularidade do Poder de Polícia nesta seara, que dispõe de exclusividade para regular, fiscalizar e sancionar as companhias aéreas nas relações mantidas com o Poder Público, com as demais empresas do mercado e com os usuários do serviço público em si.

Preceitua o caput do art. 8º da lei 11.182/05 que cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo-lhe:

“XXXV – reprimir infrações à legilação, inclusive quanto aos direitos dos usuários, e aplicar as sanções cabíveis”.

De acordo com o art. 11º da lei Federal 9.784/99, que regula o processo Administrativo Federal, a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos.

Determinam os incisos I e II do art. 29, da lei 8.987/95 que incumbe ao poder concedente regulamentar o serviço concedido, fiscalizar permanentemente a sua prestação e aplicar as penalidades regulamentares e contratuais.

O que se depreende é que, mesmo que tenha como pano de fundo alguns pontos que também possam ser encaixados no Código de Defesa do Consumidor, as questões decorrentes do complexo sistema de transporte aéreo devem ser apreciados por pessoas com qualificação técnica e devidamente observados com a lei específica do contrato de concessão e em benefício do usuário do serviço público e da coletividade.

Ademais, tenha-se, em mente, de plano, a linha tênue entre o usuário do serviço público e o consumidor.

A noção de consumidor insere-se no quadro de atividades privadas, enquanto que a situação do usuário do serviço público integra um regime jurídico de direito público, caracterizado por um controle intenso que é feito sobre a atividade do prestador de serviço.

O tratamento oferecido ao usuário do serviço público pela Constituição Federal e pela lei é diverso do dispensado ao consumidor: a concessão, no art. 175; a proteção ao consumidor, nos arts. 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V.

A diferenciação do usuário do serviço público e do consumidor é percebida com a análise do fato de que o usuário do serviço público não tem o poder de transigir com seu direito, em decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público.

O professor ANTONIO CARLOS CINTRA DO AMARAL1 leciona que:

“Parece-me que se está incorrendo em um equívoco generalizado quando se afirma que o usuário de serviço público é um consumidor. Considera-se o usuário de serviço público a ele prestado pela concessionária talvez seja possível sob a óptica econômica. Mas sob a óptica jurídica o usuário de serviço público e o consumidor estão em situações jurídicas distintas. Uma coisa é a relação jurídica de serviço público. Outra, a de consumo.
A relação jurídica entre concessionário e usuário não pode ser equiparada à existente entre duas pessoas privadas, que atuam na defesa de seus interesses específicos. O serviço público, cujo exercício é atribuído à concessionária, continua na titularidade e sob a responsabilidade do poder concedente. Perante a relação de consumo, diversamente, o Poder Público atua como “protetor” da parte considerada hipossuficiente, que, em regra, é o consumidor.”

Observe-se as palavras da Ministra Carmen Lúcia, do c. Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento no Pleno da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.478/Amapá, julgada em 01.09.2011:

“O consumidor é aquele que consome; portanto, quem pode pagar pelo consumo paga, quem não pode não usa. O usuário é aquele a quem o Estado, por força da Constituição e das leis, atribui uma situação diferenciada. Daí o meu apego ao que o Ministro Toffoli chamou atenção, o Ministro Fux também, ao fato de que estamos a lidar, aqui, com usuário, aquele que é a ponta a que se chega mediante a prestação do serviço público no sistema de concessão...
De outro lado, a invocação do art. 24, V e VII, da C.F. ao presente caso encontra ainda outro óbice. É que a relação entre o usuário e a prestadora de serviço público possui uma natureza específica, informada por princípios próprios, notadamente o da solidariedade social (art. 3°, I, CF), que não pode simplesmente aproximada da corriqueira relação consumerista, na qual prepondera a ótica individualista, como bem ressaltado pelo voto proferido pelo Ministro Eros Grau no julgamento da Medida Cautelar na Adin n° 3.322/DF, Rel. Min. Cezar Peluzo. Não é por outra razão, aliás, que a sede material específica, na Constituição Federal, para a instituição das balizas infraconstitucionais nesse tema reside no já referido art. 175, parágrafo único, cujo inc. II expressamente reclama a atuação do legislador para a disciplina dos “direitos dos usuários”. Portanto, descabe a referida ilação de que todo serviço federal que faça nascer uma relação jurídica na qual figure, de um lado, o prestador de serviço e, de outro, o usuário seja necessariamente uma relação de consumo, capaz de ser regulada pela legislação estadual”. (grifos nossos)

Nessa linha de raciocínio, determina o parágrafo 3º do artigo 37 da Constituição da República de 1988 que a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente.

Preceitua o art. 27 da Emenda Constitucional 19/1998 que o Congresso Nacional, dentro de 120 (cento e vinte) dias da promulgação desta Emenda, elaborará lei de defesa do usuário de serviços públicos.

Em virtude da omissão do Congresso Nacional, o Governo do Estado de São Paulo, em 20.04.1999, promulgou a Lei 10.294/99 que dispõe sobre proteção e defesa do usuário do serviço público do Estado de São Paulo.

Sobre o tema em questão, o Doutor em direito administrativo pela PUC/SP, CESAR A. GUIMARÃES PEREIRA², manifestou-se no seguinte sentido:

“O primeiro deles já foi examinado e corresponde à disciplina da atuação dos prestadores no exercício da liberdade que eventualmente lhes for conferida pela regulamentação do serviço público. Neste ponto, o CDC atua plenamente, mas com caráter provisório. Aplica-se apenas na ausência das leis a que alude o art. 37, §3º, da Constituição e o art. 27 da EC n 19/1998. Como se disse, isso confirma a distinção entre consumidor e usuário: no momento em que houver a disciplina própria do usuário, será impossível aplicar por qualquer via o CDC. É o que se passa no Estado de São Paulo. Com a edição da Lei Estadual de proteção ao usuário, não há fundamento para a aplicação do CDC. É irrelevante determinar se a proteção própria do usuário é mais ou menos ampla ou abrangente que a oferecida pelo CDC. Trata-se de figuras distintas, que recebem disciplina diversa baseada nas suas especificidades. Se a proteção da lei própria é julgada insuficiente em face da determinação constitucional, isso deve ser argüido – se for o caso – como fundamento para o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. Somente nessa situação – de invalidação da lei própria do usuário – é que se poderia cogitar de um retorno à aplicação (limitada) do CDC.
Desse modo, a disciplina própria do consumidor, contida no CDC, somente é aplicável aos usuários de serviço público (a) nos espaços de liberdade deixados pela regulamentação do serviço público e (b) provisoriamente, enquanto não editadas as leis pertinentes ao serviço público em questão (pelo ente político que titulariza o serviço público em questão (pelo ente político que titulariza o serviço ou, no caso do art. 22, XXVII, da Constituição, pela União).”

Não é necessário se gastar rios de tinta para se inferir que consumidor e usuário de serviço público são figuras distintas, devendo se observar que as Companhias Aéreas são concessionárias de serviço público.

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Como se vê, por qualquer ângulo que se analise a questão, dúvidas não podem pairar no sentido de que a Agência Nacional de Aviação Civil atuou de forma escorreita, monitorando e acompanhando as práticas de mercado e dos agentes do setor regulado, como, aliás, no caso em questão, ocorre no sistema de aviação universal.

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Referências

1 Antonio Carlos Cintra do Amaral, Distinção entre usuário de serviço público e consumidor. Revista Diálogo Jurídico, n.13.

2 Cesar A. Guimarães Pereira, Usuários de Serviços Públicos, São Paulo: Saraiva, p. 218.

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*Márcio Vinícius Costa Pereira é sócio do Villemor Amaral Advogados e responsável pela área de direito do Consumidor e Aeronáutico do escritório.

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