O singelo escritório em tons terrosos, um sofá de couro amortecido pelo tempo, uma pequena mesa e muitos, muitos livros. Assim é o escritório do doutor Giovanne, no centro de uma cidade grande. Sem secretária (muito menos estagiário), ele labuta na advocacia para os mais improváveis clientes. Quando vira a folha do calendário, pensa que a primeira semana de dezembro será de visitas.
Não deu outra. A porta de madeira e vidro abre com seu inóspito cliente. Ele, 2016.
– Em que posso lhe ser útil?, pergunta o doutor Giovanne.
– Preciso de um habeas corpus!, diz 2016.
Doutor Giovanne pensa em limpar seus óculos mas acredita que o mais plausível é mesmo verificar os ouvidos: não, ele não havia escutado direito.
– Como?!, indaga o causídico.
– Isso mesmo, um habeas corpus! Estão querendo acabar com meu direito de ir e vir!, reclama o cliente.
– Mas senhor 2016 – diz o paciente doutor Giovanne – o seu direito de ir e vir está mesmo para expirar…
– Por isso mesmo! Quero continuar livre, leve e solto por aí!
– Mas, vamos assim pôr, esta questão de substituição é natural da vida.
– Natural nada! E 68? Até hoje todo mundo diz que ele não terminou!
– Senhor 2016, perdoe-me… mas este é o título do livro do Zuenir Ventura. O ano acabou sim.
– Então quero um mandado de segurança para que escrevam um livro sobre mim.
– Veja bem, mandado de segurança não é para isso...
– Já sei! Então como sou um ano, preciso de um habeas data! (sim, 2016 é insistente)
– Olha, não é o caso também. Me permita dizer, mas não compreendo o que o senhor quer.
– Oras bolas! Mas que pergunta, doutor Giovanne! Eu lhe pago pra quê?! Eu não quero acabar! Quero continuar! Quero ser sempre lembrado. O senhor é meu advogado, o senhor tem que fazer alguma coisa. Entrar na Justiça. É isso: eu quero justiça!
– Mas do que exatamente, senhor 2016?
– E eu lá sei! Aconteceu tanta coisa comigo que nem eu sei! Sei só que escuto o povo dizer “Acaba 2016”, “Já vai tarde 2016” e eu não quero mais ouvir isso. Deve ter algum jeito para que estas calúnias, injúrias e difamações parem! Deve haver algum modo, alguma coisa que os advogados sabem fazer. Advogados sabem fazer tudo!
Doutor Giovanne pensa em silêncio. Em tantos anos de prática, nunca ouvira tantos absurdos juntos. Mas o fato era que ele deveria falar pelo seu cliente, defendê-lo mesmo quando indefensável. Sem isso não haveria justiça. “Mas como, meu Deus, como?”, perguntava-se.
2016 incomodou-se ainda mais com aquela falta de palavras, afinal, dizia a lenda que advogado fala mais que o homem da cobra.
– E então, vai ficar por isso mesmo?, questionou 2016. Vou mesmo acabar? E com a fama de que serei o pior da história?
– Veja bem… Como seu advogado, posso ajuizar uma ação na vara competente.
– ÓTIMO!!!
Doutor Giovanne respirou aliviado. 2016 chegou à sua banca falando em habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e compreendeu "vara competente" sem questionar qual vara.
– Incluirei todos os seus pedidos na inicial. O que é mesmo? Não acabar, não ser conhecido como o pior ano da história, o que mais?
– Ah, sim! Quero também uma placa em minha homenagem em todas as praças da Sé!
– De acordo. Pagaremos as custas do processo e vamos esperar o julgamento do juiz.
– Perfeito! Perfeito! Então não acabarei?
– Eu não disse isso. Falei que esta decisão cabe apenas ao juiz.
– Certo. E quando será isso?!
– Se o senhor que é filho do tempo não sabe, haverei eu de saber?
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*Ivy Farias, 35 anos, é jornalista, estudante de Direito da UMC- Campus Villa-Lobos/Lapa, uma das fundadoras do movimento Mais Mulheres no Direito e gosta de escrever crônicas no fim do ano.