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Fundo de pensão estatal brasileiro: uma fundamentação equivocada e inadequada

O que todos sabem é o que já aconteceu ou o que se tornou óbvio. O que a pessoa atenta conhece é o que ainda não tomou forma, o que ainda não ocorreu. Um investidor deve ver e saber sozinho, no sentido de que deve ver o que os outros não vêem e saber o que os outros não sabem.

18/5/2006

 

Fundo de pensão estatal brasileiro: uma fundamentação equivocada e inadequada 

Cláudio Motta de Faria* 

O que todos sabem é o que já aconteceu ou o que se tornou óbvio. O que a pessoa atenta conhece é o que ainda não tomou forma, o que ainda não ocorreu. Um investidor deve ver e saber sozinho, no sentido de que deve ver o que os outros não vêem e saber o que os outros não sabem.

 

Assim, a nosso modesto ver, a idéia que norteia os fundos de pensão é equivocada! Entretanto, a idéia de fundo de pensão estatal brasileiro, além de equivocada, é também inadequada! 

Os fundamentos do poder dos fundos de pensão

 

Os fundos de pensão foram criados com o objetivo de assegurar aos assalariados, depois de aposentados, uma pensão regular e estável. Trata-se, pois, de instituições que centralizam no quadro de regimes privados de previdência de empresas uma forma de poupança, cujas rendas salariais (no sentido amplo) representam a fonte inicial.1

 

Nas mãos dos gestores, a poupança acumulada se transforma em capital. Essa mutação coloca os fundos de pensão na primeira linha das instituições financeiras não bancárias, sendo sua função fazer frutificar esse capital maximizando o rendimento e assegurando-lhe um elevado grau de liquidez. Produz-se uma mudança na natureza econômica da poupança, cuja abrangência social e implicações políticas não podem ser escamoteadas. Os assalariados aposentados deixam de ser “poupadores” e tornam-se, sem que tenham clara consciência disso, partes interessadas neste tipo de instituição, cujo funcionamento repousa na centralização de rendimentos fundados na exploração dos assalariados ativos. Os planos de poupança salariais fazem de seus beneficiários indivíduos fragmentados, cuja personalidade social está cindida: de um lado, a de assalariados; de outro, a de membros auxiliares das camadas rentistas da burguesia. Sobre tal ambivalência, as oligarquias financeiras e políticas dos países capitalistas avançados estão plenamente conscientes, tanto que buscam explorá-la ao máximo.1

 

Correntemente designados pelo nome de “investidores institucionais”*, esses organismos (fundos de pensão, fundos mútuos, seguradoras, bancos que administram sociedades de investimento) fizeram da centralização dos lucros não reinvestidos das empresas e das rendas não consumidas das famílias, especialmente os planos de previdência privados, o trampolim de uma “acumulação financeira”** de grande dimensão. A progressão da acumulação financeira sempre esteve estreitamente atrelada à liberação dos movimentos dos capitais e à interconexão internacional dos mercados dos ativos financeiros – obrigações públicas e privadas, ações e produtos derivados1. 

* Essa expressão, que é utilizada por convenção ao longo deste trabalho, necessita de uma explicação: é a tradução do inglês institutional investor, língua que não oferece, ao contrário do português, a distinção entre investimento e aplicação financeira. O deslize semântico do termo investor leva a crer que esses agentes contribuem para a criação de capacidade produtiva por meio de investimentos nas empresas, enquanto o essencial de suas operações trata da compra e venda de títulos que dão direito ao recebimento de juros e dividendos.

 

** Por acumulação financeira entende-se a centralização em instituições especializadas de lucros industriais não reinvestidos e de rendas não consumidas, as quais têm por encargo valorizá-los sob a forma de aplicação em ativos financeiros – divisas, obrigações e ações –, mantendo-os fora da produção de bens e serviços. 

A centralização das rendas não reinvestidas na produção e não consumidas (alinhadas em bloco sob a etiqueta muito enganosa de “poupança”) permitiu que essas instituições se tornassem proprietárias-acionistas de um novo tipo de empresa e detivessem, ao mesmo tempo, elevados volumes de títulos da dívida pública, de forma que os governos se tornaram seus “devedores”.1

 

A poupança concentrada é bem de capital:  

O poder da finança revela-se na sua essência como um poder de abstração pelo modo através do qual a atividade produtiva é dominada pelos constrangimentos da valorização do capital. Isso faz o poder abstrato do dinheiro transformar-se num poder efetivo sobre a produção, sobre o investimento e sobre o assalariado. É improvável que um novo compromisso social sólido possa ser construído sobre essa base.2 

A armadilha dos fundos de pensão

 

Os fundos de pensão apenas aparentemente visam garantir o futuro das aposentadorias. Seu verdadeiro objetivo é repartir sempre mais em proveito dos detentores dos ativos financeiros as riquezas que resultam da atividade produtiva, no sentido amplo.3 Em outras palavras, fundo de pensão não é “fim”; é “meio”!

 

O que se escondeu ardilosamente dos cidadãos foi que estes fundos de pensão não garantem a estabilidade e o montante das aposentadorias, já que eles dependem essencialmente do “bom funcionamento dos mercados”, da exploração máxima dos trabalhadores ativos e da captação da riqueza produzida nos países ditos “emergentes”.3 O grande capital financeiro toma, assim, como reféns seus próprios assalariados!

 

Como conseqüência, o valor da aposentadoria que o trabalhador receberá é uma incógnita, já que dependerá do número de anos que trabalhou e dos rendimentos financeiros obtidos pelos fundos de pensão, cuja determinação ao longo do tempo é de difícil previsão, como adiante iremos demonstrar.

 

Tal é a armadilha dos fundos de pensão por capitalização e dos sistemas de poupança salarial. Talvez essa seja a mais importante razão para lutar contra sua expansão à custa dos sistemas de aposentadorias baseados na solidariedade e dos mecanismos de repartição que não passam pelos mercados financeiros.1

 

A revelação da teoria da agência e a negação dos princípios da Cabala

 

O monitoramento das relações entre associados dos fundos de pensão (acionistas) e executivos dos fundos de pensão (gestores) é denominado “problemas de agência”. Segundo a teoria da agência, tais problemas são oriundos da natureza incompleta dos contratos, decorrente da impossibilidade de se escrever um contrato que especifique as ações a serem tomadas pelas partes em qualquer circunstância.4

 

As principais dificuldades no tocante à administração dos fundos de pensão relacionam-se à separação entre propriedade e gestão, assimetria de informação e divergência de objetivos entre o principal (associados dos fundos de pensão) e o agente (executivos dos fundos de pensão), tendo como conseqüência os chamados “problemas de agência”.4

 

Essa assimetria de informações torna a gestão de ativos dos fundos de pensão uma “indústria ineficiente”, pois os donos finais dos ativos (associados dos fundos de pensão) não dispõem de suficiente informação sobre as atrocidades que são cometidas em seus nomes5, tanto que a gestão de ativos é considerada pelos experts o calcanhar-de-aquiles do sistema de fundos de pensão.

 

Corroborando tal assertiva, o mais importante elemento para os rabinos, que garante a possibilidade de transações reais feitas com dinheiros-vida (chaiei nefesh) é o acesso a informações. Desde que ambas as partes envolvidas numa transação real (guesheft) tenham acesso a informações sobre o mercado, sua decisão será pertinente ao mercado, e um dado real para a definição do próprio mercado.6 Completamente diferente, portanto, do atual modo de gestão dos fundos de pensão, em que os verdadeiros "donos do dinheiro" (associados dos fundos de pensão) sequer imaginam os riscos a que estão submetidos.

 

Nesse diapasão, os rabinos entendiam que toda transação real deve implicar total responsabilidade em termos de suas conseqüências, e quanto mais estas fossem repassadas para o indivíduo, e não para instituições, tanto melhor6, o que difere totalmente do modelo adotado pelos fundos de pensão, esta, sim, uma forma muito duvidosa de “poupança” concentrada, acumulada financeiramente.

 

Uma força financeira alimentada pela Bolsa

 

O poder financeiro dos investidores institucionais se afirma concretamente a partir dos anos <_st13a_metricconverter productid="80. A" w:st="on">80. A elevação das taxas de juros, o surgimento de um regime de baixa inflação e o desenvolvimento da Bolsa inflam as contribuições acumuladas e aplicadas nos mercados financeiros em títulos da dívida pública e depois, cada vez mais, em ações de empresas. A desregulamentação dos mercados de ativos e a liberalização dos mercados de capitais decuplicaram suas oportunidades de aplicação.1

 

A análise desse capital financeiro expõe uma forma específica de propriedade capitalista: a “finança”, com seu pesado cortejo de conseqüências, está indissociavelmente ligada à valorização patrimonial e à instituição da “liquidez”, que lhe proporcionam uma de suas bases mais fortes.1

 

A fortíssima valorização da Bolsa na década de 1990 inflou de maneira fictícia os haveres desses atores financeiros, cada vez mais fortemente compostos de ações domésticas e internacionais. A política de aplicação dos fundos de pensão orientou-se em direção a ativos cada vez mais arriscados (principalmente ações não cotadas na Bolsa), na medida em que o mercado bursátil oferecia oportunidades de ganhos crescentes.1

 

Prevalece uma lógica econômica em que o dinheiro, entesourado, adquire, em virtude de mecanismos do mercado secundário de títulos e da liquidez, a propriedade “miraculosa” de “gerar filhotes”. O “capitalismo patrimonial” é aquele em que o entesouramento estéril, representado pelo pé-de-meia, cede lugar ao mercado financeiro dotado da capacidade mágica de transformar o dinheiro em um valor que “produz”. Aqui Marx é incontornável:1 

Desde que ele é emprestado ou investido em uma empresa, desde que ele produza uma renda distinta do lucro da empresa, o juro impulsiona [o dinheiro] o seu proprietário, quer dormindo em vigília, seja em sua casa ou em viagem, de dia como de noite. O voto piedoso do entesourador se encontra realizado no capital portador de juros. [Suas “economias”, sua “poupança” adquiriram] a propriedade de criar valor, de proporcionar juros ou de angariar dividendos e valorizações bursáteis) tão naturalmente como a pereira dá peras (O capital, livro 3, cap. XXIV). 

O dinheiro institucional é como as cataratas do Iguaçu nas chuvas de março: um caudal sem fim nem fronteiras. Só que na região institucional é sempre março e nunca pára de chover.

 

A alquimia da centralização financeira

 

Pesquisadores, estudando o comportamento dos investidores institucionais (fundos de pensão, fundos mútuos, seguradoras), destacaram a necessidade que tais investidores têm de referências coletivas (os “compromissos”), assim como o mimetismo que demonstram. Em muitos aspectos, o comportamento gregário dos investidores traduz de modo ingênuo a falta de aplicações rentáveis e seguras. Estas são tão poucas que os investidores institucionais são forçados a se precipitar, todos ou quase todos, ao mesmo tempo. Em alguns casos, a formação de um compromisso tem, inicialmente, uma base racional, situada na produção ou na inovação, como foi, no começo, o caso da onda de investimentos nas tecnologias da informática. Mas os investidores também podem se lançar coletivamente em tentativas para valorizar a diferença entre as possibilidades da economia e as expectativas dos mercados, que surgem da fantasmagoria própria ao dinheiro, que se acredita dotado da capacidade de gerar lucros por si só.1

 

Como exemplo dessa “miragem”, a Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) valorizou estratosféricos 4828,51%, em moeda constante (dólares norte-americanos), no período de 1 de janeiro de <_st13a_metricconverter productid="1991 a" w:st="on">1991 a 8 de maio de 2006. Entretanto, nesse mesmo período a valorização de algumas ações, que compõem o índice BOVESPA foi ainda superior como mostra a Tabela 1.

 

Tabela 1: Valorização de algumas ações da Bovespa - Jan. de <_st13a_metricconverter productid="1991 a" w:st="on">1991 a Jan. de 2006

 

Ação                Valorização(%)  Peso no Índice Bovespa(%)

                                               Jan/Abr/91 - Jan/Abr/06

 

Petrobras Ordinária   26.390,97         0,391        -      2,003

 

Petrobras Preferencial  17.360,93      14,599       -     9,227

 

Vale do Rio Doce Ordinária  23.994,98  -            -     2,188

 

Vale do Rio Doce Preferencial 13.455,25 19,430   -     8,095

 

Fonte: Economatica e Bovespa

 

É de se ressaltar que os títulos “Petrobras Ordinária” e “Vale do Rio Doce Ordinária”, que tiveram sua liquidez sensivelmente ampliada, como expressa o atual peso (Jan./Abr. 2006) dessas ações no Índice Bovespa, respectivamente 2,003% e 2,188%, tiveram valorizações ainda mais expressivas, que os respectivos títulos preferenciais dessas ações.

 

De fato, a idéia de um rendimento por muito tempo superior de capitalização é uma forma moderna de cegueira mercantilista, que consiste em pensar que a acumulação de títulos equivale à produção de bens. Qualquer que seja o modo de financiamento das aposentadorias, o consumo dos aposentados se processa sobre os bens e os serviços produzidos no momento desse consumo. Ela não pode, portanto, em nada compensar uma oferta insuficiente resultante de uma proporção reduzida de ativos. A grande mistificação dos fundos de pensão consiste em sugerir o contrário, sob a forma de uma fábula “opondo a formiga precursora da capitalização à cigarra da repartição”.7

 

O caráter fictício do patrimônio financeiro

 

Enfatizando o risco das aplicações financeiras em ações, Warren Buffett, grande investidor norte-americano, observa:  

Por alguma razão, as pessoas extraem suas dicas de observações da evolução dos preços, ao invés de valores. O que não funciona é quando você começa a fazer coisas que você não entende ou porque elas funcionaram a semana passada para alguém. A razão mais idiota, no mundo, para se comprar uma ação, é porque esta ação está se “valorizando”.8

Também nessa linha, o trader britânico Robert Beckman, em sua obra, Powertiming 9, mostra sua visão das “bolsas de valores”:  

A “indústria de ações” bolsas de valores nunca deverá admitir isso, e provavelmente não gostaria de escutar isso. Mas, é um fato e você pode estar certo disto: a “indústria de ações” é como uma conspiração global de massas. Como qualquer conspiração, não é aquilo que parece ser. Se esta for auto-retratada, como esta realmente foi, não há dúvida de que esta deverá deixar de existir. 

Dessa maneira, é imprescindível estar atento à diferença entre preço e valor: “Preço é o que você paga. Valor é o que você obtém!

 

Assim, um "capital" constituído de títulos é uma grande ficção; na medida em que é composto de créditos, ou seja, de promessas sobre a atividade produtiva futura, que são então negociados em um mercado muito específico, o qual fixa um "preço" de acordo com mecanismos e convenções muito especiais.

 

Não há milagre da multiplicação dos pães. A “poupança” não cria nenhuma riqueza como tal. Ela somente é “fértil” enquanto bomba para captar os fluxos de riquezas criadas em outro lugar: no sistema econômico, nacional ou mundial.7

 

Esse caráter fictício do patrimônio financeiro identifica-se com as expressões utilizadas pelas revistas semanais econômicas, como:  

Desde o mês de março de 2000, as famílias americanas viram dois trilhões de dólares desaparecerem do seu patrimônio. Só um patrimônio que nunca existiu, exceto de uma maneira virtual, devido a esta instituição muito específica que é o mercado secundário de títulos, pode "desaparecer" assim (“America’s economy: Slowing down, to what?”, The Economist, 9 /12/ 2000, pág. 97. Ver também, “When wealth is blown away”, Business Week, 26/ 3/ 2001, que fala de um ‘disappearing act’). 

Os riscos de um crack da Bolsa e as peculiaridades demográficas dos grupos de associados

 

O valor dos títulos somente estará assegurado se os operadores conseguirem manter em vigência as convenções que sustentam a alta das cotações, cuja base é sempre, em parte, fictícia. Cedo ou tarde, os elementos que sustentam tais ficções se corroem, e chega o tempo das “correções”. Entra-se, então, na zona das tempestades, aquelas nas quais o pânico pode apoderar-se dos detentores de ações, especialmente dos administradores de carteira, dos quais as responsabilidades são, é evidente, particularmente pesadas. Isso pode desembocar em algumas horas em cracks da bolsa, como aquele de outubro de 1987: o Dow Jones perdeu 22,6% em uma só tarde e teria ido à pique não fosse a injeção maciça de dinheiro novo pelo FED.3

 

As conseqüências de uma queda dessa amplitude seriam, hoje, completamente, de outra gravidade. Desde março de 1991 o valor nominal – fruto de convenções, na melhor hipótese; na pior, ficção – dos ativos financeiros possuídos pelos particulares, diretamente ou por intermédio de seus fundos de pensão e de investimentos coletivos, incrementou-se em 5.500 bilhões de dólares, ou seja, o equivalente ao montante total de sua poupança pessoal dos vinte e cinco anos precedentes. Um crack, por pouco que seja importante, teria por efeito privar, em alguns dias, milhões – e, mesmo, dezenas de milhões – de aposentados do essencial, se não da totalidade de suas rendas na velhice (segundo as disposições exatas do sistema de pensão privado do qual eles dependam) e de jogá-los na pobreza. As repercussões sobre o consumo privado e, por conseguinte, sobre a produção e o emprego seriam imediatas. Um tal crack teria efeitos irreversíveis durante o tempo de vida de um grande número de membros da classe média. A dez, ou quinze anos da cessação de suas atividades (supondo que conservem seus empregos), os subscritores dos fundos não estariam em condições de reconstruir uma poupança suficiente para assegurar suas aposentadorias.3

 

Os ingredientes imediatos desse crack anunciado, sem que se possa prever nem sua amplitude nem sua data, são constituídos do "mimetismo dos gerentes da poupança coletiva, da auto-alimentação das dinâmicas financeiras e da miopia das antecipações convencionadas". A vulnerabilidade da autonomia dos mercados nasce do fato de a liquidez repousar sobre mecanismos de cotação dos títulos fundados sobre as avaliações subjetivas que as pessoas e os investidores têm do mercado. As avaliações formam-se em condições em que predomina "a racionalidade auto-referencial". O nível das bolsas, que surge da confrontação interna entre participantes do mercado, tem por estes o valor de um consenso, mas forma-se em condições em que "a auto-referenciabilidade das interações faz emergir uma opinião comum pelo jogo único do auto-realização das crenças, não porque é intrinsecamente verdadeira, mas porque todos crêem que é verdadeira".2

 

Por outro lado, o envelhecimento da população pesa contra os fundos de pensão. Com efeito, provoca um aumento sensível da população (o que, explica, em parte, o aumento dos preços das bolsas) e, por conseguinte, do rendimento esperado pelos fundos de pensão. A partir de 2005, esta tendência deverá inverter-se. Chegando sempre mais pessoas à idade de aposentadoria, os contribuintes dos fundos de pensão vão cada vez mais vender os seus títulos para viver, e os preços dos títulos vão reduzir-se progressivamente, tendo em vista o peso destes na capitalização bursátil (cerca da terça parte das ações), tudo isto sem considerar a eventualidade de um crack.7

 

O calcanhar-de-aquiles do sistema: a gestão

 

Embora vários problemas possam ser gerados a partir da instauração dos fundos de pensão, como o já mencionado do surgimento de uma espécie de esquizofrenia, entre ativos e aposentados, a nosso modesto ver, a criação de abundância para alguns e, de escassez para muitos (má gestão) é um dos principais. É regra da lógica que em caso de dúvida é melhor beneficiar-se de uma não-escassez do que da abundância. Se transformamos algo em abundância que gera escassez (má gestão), escassez que fatalmente irá ocorrer nos fundos de pensão estatais brasileiros, estamos criando para nós um duplo trabalho: fazer abundância e ter que repor, por causa dessa abundância, o que se fez escasso.

 

Esse contubérnio entre agentes poderosos, controladores da riqueza alheia, sobrevive à custa da ignorância dos investidores de menor porte, como os associados dos fundos de pensão, que estão obrigados a “comprar” como boas as informações e avaliações de um grupo de administradores dotados de grande influência sobre a “opinião dos mercados”. Eles podem manter, exacerbar ou inverter tendências; podem, até mesmo, inventar “novidades”, manipular preços de ativos e engabelar a clientela.

 

Alguns autores10 sustentam que os “modelos” de corrupção são endógenos às estruturas políticas. Dessa maneira, a corrupção pode ser sistêmica e planejada, ao invés de descentralizada e coincidente. Segundo tais autores, as atividades corruptas devem ser consideradas como atividades “caçadoras de renda” associadas a uma hierarquia predadora. Assim, esses autores consideram a corrupção como sendo um dispositivo sistêmico para o governante extrair “rendas“ da população ao mesmo tempo em que garante a lealdade, que o protege de uma possível insurreição. Essa afirmação está em contraste com a corrente principal da literatura sobre a corrupção, que define a corrupção como um problema de agência, em que os burocratas de um nível mais baixo pervertem as regras.

 

A má gestão dos fundos de pensão estatais brasileiros

 

No caso dos fundos de pensão estatais brasileiros, uma visão de curto prazo e voltada, até mesmo, para benefícios pessoais estaria no cerne do que é feito com as reservas técnicas dos fundos. “Qual é o compromisso que o gestor tem com um plano de aposentadoria de 35 anos? Como ele é indicado pelo governo, ele só fica lá quatro anos. Ele não está nem aí, ele quer é botar a mão mesmo”.

 

Esse acesso particularíssimo aos recursos dos fundos de pensão estatais brasileiros se efetua de modo diferenciado, visto que somente algumas pessoas possuem condições, - como conhecimento das pessoas adequadas ou dinheiro, - para encaminharem seus interesses, o que, sem dúvida, contribui para introduzir novas discriminações no interior da sociedade.

 

Estelionatos, tais como os mencionados na CPMI dos Correios, não são a exceção, mas a regra, precisamente porque os fundos de pensão estatais brasileiros não foram criados para assegurar uma aposentadoria aos contribuintes, mas para, como diziam seus promotores, “fortalecer o mercado de capitais”. É o mesmo que dizer: encher os bolsos dos sanguessugas financeiros. Dessa maneira, como tudo que é aceito sem questionamento, vira rotina.

 

Enquanto o dano total é enorme, normalmente, o fragmento do dano que cada um dos associados dos fundos de pensão sofre é relativamente pequeno para justificar o custo (econômico, psicológico, de perda de tempo, etc.) de uma ação individual. Além disso, o “poder” (econômico, de informação, de organização) da contraparte é, em grande medida, usualmente muito maior do que o dos associados dos fundos de pensão.

 

Assim, a cada ano, alarga-se a brecha entre o que se deve pagar aos aposentados e pensionistas e o valor dos investimentos dos fundos de pensão.

 

Não obstante, como esses efeitos “a menor” só serão percebidos diretamente em futuro estimado em dez anos, dadas às peculiaridades demográficas dos grupos de associados, a elasticidade pode ser “absorvida” pelos atuais dirigentes. Nessa estratégia de “passar o mico para frente”, só naquele momento é que irão efetivamente faltar recursos para pagar as aposentadorias.

 

Como conseqüência das observações mencionadas, existe o risco de que os associados que investiram nos fundos de pensão estatais receberem pouco ou nada depois de se aposentarem, pois o regime de fundos de pensão demonstrou ser um regime de confisco salarial em benefício de “determinado” capital financeiro.

 

Portanto, a política de o trabalhador financiar com seu salário corrente sua velhice significa uma queda no seu salário. A erosão ou diminuição da aposentadoria proveniente dos fundos de pensão se consubstancia, portanto, como uma redução (confisco) do salário equivalente ao montante reduzido.

 

O direito à aposentadoria tem sido uma das expectativas mais legítimas no campo do trabalho. Os titulares do salário contratual, ou poupança obrigatória, acumulada em fundos de pensão criam um direito social a uma renda de aposentadoria, significando que a sociedade como um todo tem a responsabilidade de suportar tal clamor.

 

Assim, qualquer reforma do sistema de fundos de pensão deveria partir da idéia da profunda assimetria de informação existente entre os executivos dos fundos de pensão (e seus “parceiros”, do mercado financeiro) e os poupadores individuais (associados dos fundos de pensão), que são os verdadeiros proprietários dos fundos.

 

As conseqüências da globalização nos países emergentes

 

A liberalização e a desregulamentação ocorridas no último quarto de século não suprimiram os sistemas financeiros nacionais; apenas os integraram, de maneira “imperfeita” ou “incompleta”, em um conjunto que tem muitas particularidades. Mesmo para os grandes países industrializados a liberalização externa e interna de seus sistemas financeiros e a desintermediação foram fonte de graves problemas. O Japão é um exemplo notório. Para os países ditos “emergentes”, os problemas foram infinitamente mais graves.1

 

A integração no regime de mundialização financeira “incompleta e imperfeita” dos países cujos sistemas estavam antes fechados e cujos dirigentes são, ao mesmo tempo, pouco instruídos nas sutilezas da finança de mercado e hábeis nos métodos da corrupção política, teve como resultado a criação de sistemas financeiros muito frágeis.1

 

Conclusão

 

O sistema de previdência de um país é produto da própria sociedade e expressa uma série de especificidades, sobretudo no que diz respeito à relação entre o Estado e a sociedade, às relações profissionais, à organização da economia e à noção de justiça e de igualdade.

 

A criação de fundos de pensão privados requer aprimorada capacidade de regulação por parte dos governos. Se eles são incompetentes ou corruptos, esse será um problema também em caso de regimes privados, figura jurídica adotada pelos fundos de pensão estatais brasileiros, tornando-os não recomendáveis.

 

A escolha entre os sistemas de repartição ou capitalização não deveria ser aleatória à realidade do país. É fundamental avaliar a confiabilidade do sistema de previdência privada (fundos de pensão), pois se trata de investimento no longo prazo. Qual é a base de confiança no país? É a  do mercado financeiro? Dever-se-ia optar pela capitalização. Ou seria o Estado? Logo, a repartição.

 

As crises econômicas do leste asiático e outras regiões têm demonstrado como as dificuldades macroeconômicas podem ser exacerbadas pela falha sistemática da governança corporativa oriunda de sistemas legais e reguladores fracos, padrões de contabilidade e de auditoria incoerentes, práticas bancárias pobres e mercados de capitais não regulados, supervisão ineficaz de conselhos de direção empresariais e pouco caso aos direitos de acionistas minoritários.

 

Um dos problemas decorrentes das observações acima mencionadas é o tipo de alocação do capital, “que os fundos de pensão estatais não fazem mais do que exacerbar”.

 

As seguintes afirmações, extraídas de um best seller sobre investimentos em bolsas de valores, permitem-nos uma reflexão ulterior: 

Não há sentido em aumentar os preços das ações a um nível muito alto se você não pode induzir o público a tirar as ações de sua mão mais tarde.

 

Na realidade, o único momento em que um vendedor pode ganhar dinheiro grande vendendo uma ação é quando a ação está alta demais. E você pode apostar seu último centavo na certeza de que os grandes acionistas não vão proclamar este fato para o mundo. 

A autoria dessas duas afirmações é atribuída ao famoso especulador norte-americano Jesse Livermore, que escreveu por meio de pseudônimo o livro Reminiscências de um Especulador Financeiro11. Entretanto, o desafio comentado por esse autor de induzir o público a tirar as ações de sua mão mais tarde parece-nos que foi “habilmente” contornado, por meio do “jeitinho” brasileiro.

 

Referimo-nos aos momentos de tomada de decisão e escolha das ações a serem adquiridas pelos fundos de pensão estatais brasileiros, os chamados “investimentos políticos”, ou “compras combinadas”. Em outras palavras, má gestão, que ocorre ao tempo em que os fundos de pensão estatais adquirem enormes lotes de ações nas proximidades de seus preços máximos, como pudemos comprovar pelo estudo de alguns casos, descritos em outro trabalho.

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Bibliografia

  

1A finança mundializada : raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências / François Chesnais (org.); São Paulo : Boitempo, 2005.

 

2La théorie du régime d’accumulation financiarisé : contenu, portée et interrogations / François Chesnais; Forum de la régulation, Paris, 11-12 octobre 2001.

 

3Os aposentados tomados como reféns pelo capital financeiro, por François Chesnais, in Le Monde Diplomatique, abril 1997 – Tradução de Daguzan Cardoso Dias, outrora disponível no site de Internet www.atuario.com.br. 

 

4O sistema de previdência privado no país e impacto das práticas de governança corporativa : O papel dos fundos de pensão / Joaquim Rubens Fontes Filho;   Trabalho selecionado para o 24º Encontro Anual da ANPAD – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração. Florianópolis (SC), setembro/2000.

 

5Shareholder value and corporate governance: some tricky questions / Michel Aglietta; Economy and Society Volume 29 Number I February 2000: 146-159.

 

6A Cabala do Dinheiro / Bonder, Nilton – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

 

7L’instauration des fonds de pension / Frank Michel; Le Monde Diplomatique – avril 1997.

 

8Warren Buffett speaks : wit and wisdom from the world’s greatest investor / Janet Lowe : John Wiley & Sons, 1997.

 

9Powertiming / Robert C. Beckman; Chicago, Illinois: Probus Publishing Company, 1992.

 

10Institutionalized Corruption and The Kleptocratic State / Charap, Joshua e other (1999) : IMF Working Paper, WP 99/91.

 

11Reminiscências de um Especulador Financeiro / Edwin Lefèvre: - São Paulo - Makron Books.

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(*) Engenheiro





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