No estudo da evolução do Direito encontramos personalidades que, embora muitas vezes sem visibilidade nos livros de História, protagonizaram grandes acontecimentos.
Um deles foi o advogado William Murray, depois magistrado, conhecido como Lord Mansfield1.
Murray nasceu na Escócia, em 1705. Sua trajetória se confunde com o século XVIII, pois morreria em 1793.
Dizem que viajou sozinho, com apenas treze anos de idade, no lombo de um pônei, até chegar a Londres para estudar. Numa época em que não havia curso regular de Direito, passou por Oxford e tornou-se membro da então prestigiosa “ordem” londrina de advogados.
Transitando entre homens de negócios, políticos e a realeza, não perdeu sua sensibilidade para conviver com artistas, sendo muito próximo de Alexander Pope, o poeta mais famoso da época.
Graças a um cérebro organizado e a uma invulgar capacidade de construir relações, alcançou formidável ascensão na advocacia, profissão na qual acumulou uma fortuna. Inicialmente desinteressado por uma carreira política, tornou-se membro da Câmara dos Comuns e logo se sobressaiu como um dos mais articulados parlamentares.
Depois de atuar como Consultor Geral e Procurador Geral, foi alçado à condição de lorde e presidente da Court of King’s Bench (Lord Chief Justice) em 1756, uma das Cortes do Common Law da época, cujas competências se expandiriam extraordinariamente ao longo de trinta e dois anos sob a condução do novo líder. Na nova condição de Lord, Mansfield passou também a fazer parte da Câmara dos Lordes, instância híbrida que funcionava como Corte Suprema e uma das Casas do Parlamento.
De pronto, já no primeiro dia como presidente da Corte de Bench, Lord Mansfield modificou a sistemática de tramitação dos processos, tornando-a mais isonômica entre advogados e encurtando o prazo de sua tramitação, pois segundo ele “justiça atrasada é justiça negada”. Passou a questionar os causídicos (barrister) durante suas sustentações orais (prática que foi copiada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e que um dia há de chegar aos nossos Tribunais Superiores) e mobilizou suas energias para enfrentar os grandes temas que modernizariam o direito anglo-saxão, em especial o direito comercial.
O comércio internacional estava em evolução. Lord Mansfield teve participação decisiva na racionalização de caminhos para que a Inglaterra liderasse o mundo do comércio, da indústria e das finanças.
Deve-se ao juiz Mansfield a essência do conceito da boa-fé nos contratos de seguro, por meio da abertura das informações relevantes sobre o risco a ser suportado (Carter v. Boehm, 1766), o que teve papel decisivo na evolução do comércio marítimo internacional e na expansão do mercado segurador. Em 1747, o então advogado já havia defendido, em nome do livre comércio, o direito de as seguradoras britânicas cobrirem riscos de navios de nações inimigas mesmo em tempos de guerra, tese que na época não prosperou.
Com uma visão clara de que as regras que regem o comércio internacional possuem a vocação da internacionalização, a jurisprudência de Mansfield deu atenção à modernização das notas promissórias e das letras de câmbio, antecipando conceitos da legislação que as disciplinariam décadas depois.
Como jurista, sempre se pautou pelo raciocínio claro e pela linguagem objetiva. Reconheceu a inviolabilidade da relação entre o advogado e o cliente, bem como entre o médico e seu paciente, e passou a admitir em sua Corte a oitiva de experts em conflitos de complexidade técnica.
Em nome do estímulo à criatividade e à produção de bens intangíveis, Mansfield foi um grande defensor da proteção à propriedade intelectual, protagonizando debates históricos sobre patentes e direitos autorais.
Era uma época de eclosão da Revolução Industrial, em que se destacava James Watt, com sua máquina a vapor (patenteada em 1769), precedido por Isaac Newton, com seus novos métodos científicos. A Riqueza das Nações, de Adam Smith, viria em 1776. Tanto a ciência como a economia precisavam da pavimentação jurídica.
Ao inserir em suas petições de advogado e em suas decisões de magistrado os ensinamentos de John Locke sobre a tolerância religiosa, a liberdade política e o liberalismo econômico, Mansfield teve papel relevante no debate sobre a escravidão, tendo adotado posição inovadora no julgamento do caso Somerset (1772), cujo resultado concorreu decisivamente para a abolição da escravidão entre os ingleses.
Mansfield defendia um direito assentado na razão, no bom senso e na moralidade, sem descuidar das consequências que uma decisão judicial poderia produzir. Era a favor da superação de precedente (overruling) sempre que a realidade do caso anterior tivesse sido alterada em razão dos novos tempos, daí ter sido acusado por juristas conservadores da época de subverter o sistema judicial britânico. Na prática, empenhava-se em promover a conciliação da ética de princípios com a ética de resultados, o que nem sempre conseguiu.
O magistrado, ou melhor dizendo, o estadista Mansfield foi um dos artífices da Era Moderna, em sintonia com os ideais iluministas, tendo tido a pretensão de dotar a economia inglesa dos instrumentos jurídicos necessários para o desenvolvimento. Ao ter contribuído decisivamente para a modelagem de uma época, sua estatura intelectual é comparável a juízes do porte de John Marshall nos Estados Unidos.
Talvez seja um dos arquétipos mais acabados de homem público, daqueles que interagem com o seu tempo e, quando necessário, não hesitam em navegar contra a corrente, conferindo à existência individual um sentido de transcendência. Foi um autêntico representante da Idade da Razão, transitando entre o jurídico e o político, com protagonismo inegável para as bases modernas do Common Law e, em especial, do direito comercial.
A coragem de Lord Mansfield na construção de uma jurisprudência antenada com o ambiente econômico faz lembrar alguns momentos marcantes do Judiciário brasileiro, como o reconhecimento da constitucionalidade da lei de arbitragem pelo STF e, nos anos seguintes, a consolidação dessa eficiente forma de resolução de conflitos para o mundo empresarial, graças à moderna jurisprudência do STJ2.
A exemplo de todo grande homem, Mansfield não está imune a críticas. É polêmica sua posição restritiva sobre a liberdade de imprensa. Teve uma visão conservadora sobre a América do Norte, posição que acabaria por precipitar o movimento da emancipação colonial, embora nem por isso deixaria de ser um dos juristas mais citados pela Suprema Corte Americana ao longo desses duzentos e tantos anos.
Sua primeira residência foi queimada e destruída por revoltosos anticatólicos que não aceitavam suas posições em favor da tolerância religiosa3. A segunda casa (Kenwood House), com sua imponente biblioteca que bem representa o ideário e arquitetura de uma época, foi ponto de encontro de magistrados, políticos, advogados, diplomatas, artistas e nobres. Até hoje está aberta à visitação do público, pois os britânicos sabem muito bem que conhecer o passado é importante para construir o futuro.
Lord Mansfield aposentou-se em 1788 e veio a falecer em 1793. Sua biografia e legado são um convite para que advogados e magistrados tenham consciência do protagonismo que podem assumir na superação de dogmas e na modernização das instituições.
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1 “Lord Mansfield - Justice in the Age of Reason”, por Norman Poser. McGill-Queen’s University Press. 2013.
2 Caio Cesar Vieira Rocha e André Garcia Xerez Silva: “O STJ e a Consolidação da Arbitragem”. In “O papel da jurisprudência no STJ”. Coordenação: Isabel Gallotti e outros. Editora RT. 2014.
3 “Gordon Riots” de 1780.
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