Migalhas de Peso

O interesse social no CDC

A mecanização que sobreveio à Revolução Industrial maximizou a produção, ampliou o mercado, aumentou os lucros do produtor, massificou o consumo e fez crescer a competição de preços, ao tempo em que diminuiu o espaço econômico para os economicamente fracos. Henry Ford foi o pai desse modelo de aperfeiçoamento e gerenciamento da produção. A nova situação amplia a fragilidade do consumidor e elastece a fortaleza do fornecedor.

15/5/2006

 

O interesse social no CDC

 

Antonio Pessoa Cardoso*

 

A mecanização que sobreveio à Revolução Industrial maximizou a produção, ampliou o mercado, aumentou os lucros do produtor, massificou o consumo e fez crescer a competição de preços, ao tempo em que diminuiu o espaço econômico para os economicamente fracos. Henry Ford foi o pai desse modelo de aperfeiçoamento e gerenciamento da produção. A nova situação amplia a fragilidade do consumidor e elastece a fortaleza do fornecedor.

 

A Constituição cidadã, pela primeira vez na história constitucionalista brasileira, dispõe sobre o consumidor, oferecendo mecanismos para diminuir as desigualdades de tratamento no relacionamento com o fornecedor. É responsável pelo aparecimento de uma lei moderna em condições de atender ao novo panorama mundial: O CDC tornou-se a mais democrática e a mais significativa lei ordinária, na busca do equilíbrio social dos interesses de classes antagônicas.

 

A Lei 8.078/90 (clique aqui), elaborada em função de exigência constitucional, artigo 48 ADCT, transformou-se num monumento no mundo jurídico. O direito do consumidor foi elevado à categoria de constitucional, além de incluído na ordem pública e econômica do Estado, inciso V, artigo 170 da Constituição.

 

Há ainda resistências dos julgadores na aplicação dos dispositivos da lei consumerista, assim como existem dificuldades na aceitação da função sociológica do contrato, apesar de a Constituição desmistificar o conceito tradicional, fundamentalmente no reparo da fraqueza do consumidor, inciso XXXII, artigo 5º, inciso V, artigo 170. O Ministro Marco Aurélio de Mello foi muito feliz quando disse que “... o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual”.

 

O Código de Defesa do Consumidor presta-se para atender ao caminho traçado pela Carta Magna em vários momentos: quando em busca da paz social dispensa tratamento desigual aos desiguais, quando considera suas normas de ordem pública e de interesse social, quando enumera os direitos básicos, quando coloca o Estado na dianteira para proteção do consumidor e quando reconhece o desequilíbrio entre as partes na celebração de um contrato.

 

Esta interferência do Estado é denominada de “publicização do direito privado”, que aparece, porque as novas relações já não ocorrem entre indivíduos, mas entre estes e poderosas empresas. E esses setores econômicos se fortalecem de tal forma que reduzem o alcance das instituições judiciais. E mais: transformam o consumidor num cão dócil e receptivo ao marketing que promovem para venda do produto.

 

A padronização do contrato substituiu a negociação pela adesão às suas cláusulas; significou maior segurança, economia e agilidade para os fornecedores, mas implicou na limitação à liberdade de escolha, da soberania do consumidor, que se vê enganado pelo consumo forçado. A partir dessas mudanças o consumidor adere ou desiste do contrato e, portanto, adquire ou não o produto ou serviço, segundo as exigências do mais forte na relação consumerista. Na expressão de Calmon de Passos “entoamos hosanas à liberdade, mas temos correntes nos pés”.

 

O interesse do consumidor é amplo e espalha-se por todo tipo de atividade de interesse de toda a sociedade: saúde, alimentação, habitação, transportes, segurança, sistema bancário, etc. A parcela de pessoas da comunidade que se sujeita a isto é vulnerável ao mercado e ao capital, daí porque necessária nova interpretação às regras clássicas e tradicionais do direito privado.

 

As substanciais alterações na ordem econômica provocam a necessidade de algum mecanismo para proteger o mais fraco no relacionamento do mercado.

 

A função social do contrato está assegurada também pela lei civil, artigos 421, 422, 478 e 479, além do artigo 5º da Introdução; houve significativo progresso em relação à lei civil anterior, porque ao julgador foi concedida maior liberdade para dirimir o conflito, sem se atrelar aos princípios do direito privado clássico: autonomia da vontade e pacta sunt servanda. O magistrado deve se sustentar mais na função social do contrato do que mesmo na vontade das partes, expediente ratificado também pelo Código Civil, artigo 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

 

O Estado-Juiz é convocado para equilibrar a força do produtor com a fraqueza do cidadão comum. Não há liberdade ilimitada para celebração de contrato e o ponto vulnerável situa-se exatamente no respeito à ordem pública e aos bons costumes. São normas imperativas, que, diferentemente das normas dispositivas, aplicam-se de forma categórica com o objetivo de preservar os interesses maiores da sociedade. A tutela dos interesses do consumidor é mais ampla do que de outros segmentos da sociedade, a exemplo da relação empregatícia, do comércio, etc. O relacionamento fornecedor/consumidor se amplia para atingir o empregado, o comerciante e outras categorias.  

 

Não se aplica o disposto no artigo 302 CPC às demandas relacionadas com relações de consumo, vez que o consumidor não está obrigado a impugnar todas as alegações do fornecedor, mas matéria que deve ser aplicada pelo magistrado. Igual situação, evidentemente acontece com a revelia. Mesmo que a parte não alega, na peça inicial de uma demanda ou em sua contestação, cabe ao julgador conhecer e julgar, porque a matéria é de ordem pública e de interesse social. Ademais, a colisão das disposições do CPC com o CDC faz prevalecer a lei protecionista.

 

Exemplo dessa situação está na declaração impositiva de nulidade de cláusula contratual que elege foro de domicílio diverso de onde reside o réu. O fundamento situa-se no impedimento de acesso do consumidor ao Judiciário, dificultando o exercício de sua defesa, e deixando-o em desvantagem exagerada na relação contratual, inciso VIII, artigo 6º, inciso IV e parágrafo 1º inciso III artigo 51 CDC. Imagine-se o cidadão que compra uma moto na cidade de Feira de Santana (Bahia), através de contrato de leasing; cláusula do contrato de adesão prevê solução de eventual litígio na comarca de São Paulo. É nula a cláusula e cabe ao magistrado declarar, independentemente de pedido da parte. Tratamento semelhante acontece com a redução da multa de mora, resultado do inadimplemento da obrigação contratual; pode ser revista de ofício a qualquer tempo e sob qualquer jurisdição. A antecipação de tutela, em demandas amparadas pelo CDC, deve ser concedida pelo juiz, na fase inicial, ou pelo relator, na etapa recursal, independentemente de provocação da parte, artigos 84 CDC e 461 CPC; indispensável a relevância do fundamento e o receio de ineficácia do provimento final; não se está amparando o direito de uma das partes, mas preservando a atividade estatal no exercício de um poder que lhe é conferido constitucionalmente. A inversão do ônus da prova, a desconsideração da personalidade jurídica, mesmo que não haja requerimento, deve ser declarada pelo julgador.            

 

O magistrado, seja na primeira ou na segunda instância, não está impedido de decidir questão sob o fundamento de preclusão; é que a matéria de ordem pública e interesse social não são atingidas por esta figura jurídica. No segundo grau também devem ser reexaminados eventuais decisões monocráticas, mesmo sem pronunciamento da parte, desde que amparadas pela lei consumerista. Outra matéria que exige definição de ofício é a da prescrição ou decadência. A qualquer momento, por ser matéria de ordem pública e de interesse social, deve o juiz declarar a prescrição ou decadência do direito.

 

Enfim, a nova corrente instrumental do processo social, político e jurídico impõe a substituição do juiz passivo e expectador do caminhar do processo pelo magistrado ativo que não permite que a negligência da defesa cause danos à parte mais fraca da relação processual.

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* Juiz em Salvador






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