1 A advocacia voluntária em nossa história
Ao largo da história brasileira, desde a independência, rica é a contribuição dos advogados não apenas em favor da liberdade política, contra o autoritarismo que marca nossa experiência institucional, mas também em prol da igualdade, atuando em prol de pessoas vítimas da violação de sua dignidade mínima, como os escravos ou os desassistidos de toda sorte, perseguidos pela polícia1 ou por seus empregadores.
O papel desempenhado pelos advogados reque- rendo a liberdade de escravos, driblando os obstáculos da malfadada legislação escravagista, foi significativo, como bem relata Perdigão Malheiros.2
Assim, o disposto no art. 3º do Código de Ética corresponde à tradição da advocacia brasileira, pois incita o advogado a ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garantir a igualdade de todos.
Uma das mais nocivas desigualdades a marcar nosso passado e que continua a tisnar o presente é a impossibilidade de acesso à justiça e de conhecimento dos próprios direitos, ausente qualquer orientação jurídica e inexistente a necessária assistência judiciária, malgrado o esforço desempenhado pela Defensoria Pública, tão incipiente em grande número de Estados.
No passado, destaca-se a atuação dos advoga- dos nas denominadas Ações de Liberdade. O primeiro projeto para compra de alforrias pelos es- cravos foi de Antônio Pereira Rebouças, em 1830, mulato, que, sem condições de cursar Direito em Coimbra, recebeu, como autodidata, autorização para advogar. Este rábula autodenominava-se o Fiador dos Brasileiros e postulou em Ações de Liberdade, ou seja, em processos nos quais se requeria a liberdade de escravos, por via de expediente criado pelos advogados como forma de buscar a concessão de liberdade para cativos utilizando-se dos meandros da lei.
Outro rábula, que dedicou sua vida à defesa graciosa dos escravos, foi Luis Gama, que instituiu o fundo denominado Caixa Emancipadora Luis Gama, para pagamento de alforria e defesa dos escravos, subvencionada pela contribuição de ex-cativos e de homens livres e pela arrecadação obtida na promoção de espetáculos musicais.
Discutiam-se, nestas Ações de Liberdade, as fronteiras legais entre escravidão e liberdade, por vezes sob o ângulo do direito de propriedade, desbravando caminhos em meio ao conjunto de leis escravagistas para romper o cativeiro.
De 1806 a 1888, 300 advogados atuaram em segunda instância nas Ações de Liberdade, pro- movendo perante os tribunais requisições de concessão de liberdade, e por volta de 600 advogados pleitearam em primeira instância ações coletivas ou individuais de liberdade.
Valiam-se os advogados, especialmente, da lei de 1831, editada por força do Tratado de Aberdeen, com a Inglaterra, em 1826, pela qual todo africano que entrasse no Brasil a partir da vigência da lei seria considerado livre. Foi esta a lei que gerou a conhecida expressão: “para inglês ver”, pois ja- mais teve qualquer eficácia, bastando lembrar que após a lei em 1831 até 1850 cerca de 1 milhão de negros entraram no Brasil. Mesmo depois de concedida a liberdade, em face de provas da chegada do escravo ao Brasil após 1831, havia obstáculos a romper na execução da sentença.
Uma das mais nocivas desigualdades é a impossibilidade de acesso à Justiça.
Exemplo de Ação de Liberdade está no pedido ajuizado por Joaquim José Affonso Alves, de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Em defesa da liberdade de um cativo, argumentou este ad- vogado que o escravo acompanhara seu senhor ao Uruguai para buscar gado, entrando então em território livre, do qual retornou depois da data de 7 de novembro de 1831, razão por que devia ser considerado livre.
Por vezes, como lembra Lenine Nequete (1981, p. 223 e ss.), recorriam os advogados ao Direito romano, para justificar o pedido de liberdade, em razão de tratamento indigno do senhor, que em Roma era inadmissível. Uma família do Rio de Janeiro, cujo chefe era funcionário público, tinha duas escravas jovens, que se autorizavam a sair de casa depois das sete horas da noite, em geral proibido, para se prostituírem, de vez que ficaria com o dono o produto do comércio carnal de suas cativas.
O uso imoral do corpo das escravas constituía, segundo o Direito romano, um tratamento indigno, preceito ao qual se recorreu para justificar a propositura da Ação de Liberdade, que o Judiciário brasileiro, no entanto, raramente acolhia. Considerou a maioria das decisões de nossa Justiça que, tal como coisas, as escravas podiam ser usadas como convinha ao seu dono. De outra parte, o fruto da atividade devia, mesmo, ser do dono, como do dono da árvore são as laranjas que nela nascem.
2 A desigualdade hoje
O quadro desolador da desigualdade em nosso país perdura e está hoje principalmente nas grandes cidades. São Paulo é a cidade mais rica e a mais pobre do Brasil. No campo do acesso à justiça e de orientação jurídica aos mais carentes a desigualdade é imensa. O grande número de feitos ajuizados refere-se a pequeno número de partes.
No mundo da periferia das grandes cidades há ausência do Estado e ausência de formas de consecução dos direitos fundamentais. A especulação imobiliária, a falta de registro de propriedade ou de posse do terreno, as construções irregulares e loteamentos clandestinos, sem arruamento, calçamento, guia e sarjeta, água e esgoto, vêm a ser o panorama dos bairros distantes do centro das grandes cidades.
Famílias conduzidas pelas mães, mulheres abandonadas por seus companheiros, que com heroísmo tornam-se as únicas responsáveis pelos filhos, caracterizam cada vez mais a população da periferia. Neste universo de desorganização social,3 o Estado passou a ser substituído pela ação da vindicta priva- da, por uma justiça feita com as próprias mãos por razões de somenos, em uma banalização da vida, denunciada pelo grande número de chacinas.
Não há cidadania onde inexiste Justiça e consciência dos próprios direitos, bem como modo de se vir a saber dos próprios direitos e de ter acesso a pretendê-los obter pela correta intermediação do Estado.
A falta de assistência jurídica e a ausência do Poder Judiciário, que deve ter, além de proximidade física com a população, disponibilidade para o atendimento das pessoas humildes, faz, da Declaração de Direitos do art. 5º da Constituição, mais um sinal do reino da não efetividade, um horizonte distante, usufruído no plano da realidade apenas pela classe dos que fizeram a Constituição, e não por todos que, idealmente, seriam os seus destinatários.
É este o quadro de desorganização social favorecedor da acentuação do desrespeito aos direitos individuais das pessoas mais modestas. A Defensoria Pública não tem estrutura para sozinha enfrentar este déficit, nem mesmo o convênio entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Defensoria preenche o acesso à justiça, pois a orientação jurídica, bem como o ajuizamento de ações, seja junto ao Juízo Comum, seja nos órgãos de mediação e conciliação, não são atendidos.
Por outro lado, há o direito das vítimas, em especial atingidas em sua integridade sexual, bem como o direito de entidades assistenciais que auxiliam o próximo, mas com problemas tributários, trabalhistas, cíveis, que não são objeto de assistência por parte da Defensoria Pública.
3 O Instituto Pro Bono
Dentro dessa realidade, um grupo de advogados criou o Instituto Pro Bono, cujos mentores principais foram Oscar Vilhena e Marcos Fuchs. Vim a presidir por dez anos o Conselho Consultivo da entidade. Criado em 11 de agosto de 2001, constitui o Instituto Pro Bono uma organização sem fins lucrativos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), que tem por missão contribuir para a ampliação do acesso à Justiça por meio do estímulo à prática da advocacia pro bono, da assessoria jurídica gratuita, da difusão do conhecimento jurídico e da conscientização dos profissionais do Direito acerca da função social da advocacia.
Em decisão de maio de 2002, o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB considerou que constituía infração ética a advocacia pro bono, pois viria a ser uma forma de captação de clientela. Assim, em uma apreciação distorcida, transformou-se a generosidade em atividade antiética.
Iniciou-se um trabalho de esclarecimento da OAB-SP sobre o que vinha a ser a advocacia pro bono, tendo o Conselho baixado resolução, em agosto de 2002, proibindo a advocacia pro bono em favor de pessoas físicas, admitindo-a apenas a entidades assistenciais sem fins lucrativos. A proibição talvez se explique para impedir que a advocacia voluntária, por parte de advogados já afirmados profissionalmente, fosse concorrer ou prejudicar os quase 50 mil advogados inscritos no convênio com a Defensoria Pública.
Infelizmente, há pobres para todos, em conhecida expressão do ministro Celso de Mello, e nem um exército de advogados voluntários cobriria a de- manda de necessitados de assistência advocatícia.
Na linha adotada pela resolução, o Instituto Pro Bono passou a dar assistência jurídica a entidades do terceiro setor, sem fins lucrativos, de recursos escassos, que prestavam assistência aos necessitados, desde pessoas portadoras de deficiência a comunidades indígenas.
O Instituto Pro Bono realizou e realiza também mutirões em comunidades pobres quando, então, advogados e estudantes voluntários visitam bairros carentes da cidade de São Paulo, levando orientação jurídica aos cidadãos para promover e compartilhar conhecimentos da área jurídica, contribuindo para a democratização da informação ao conscientizar as pessoas sobre seus direitos e deveres. No mesmo sentido, faz-se a entrega de Cartilhas Pro Bono para facilitar a compreensão de questões relacionadas ao Direito.
O Instituto Pro Bono realiza também mutirões em comunidades pobres levando orientação jurídica.
Por falta de colaboração dos órgãos públicos, foi encerrada a assistência dada às vítimas de violência sexual prestada pela Casa da Mulher anexa à Escola Paulista de Medicina. Ali, auxiliava-se a mulher vítima de estupro ou de violência no lar com assistência jurídica providenciada pelo Instituto Pro Bono, especialmente acompanhando inquéritos policiais contra os violadores que acusam as vítimas de serem prostitutas, ferindo-as novamente por meio de palavras.
4 Ocupação feliz
A vocação do advogado revela-se, por inteiro, ao graciosamente dedicar-se com afinco à defesa de direito de pessoa carente. É conhecida a lição de Ortega y Gasset de que somos o projeto irrenunciável de nós mesmos. Destaco nesta frase a assertiva de sermos um projeto e projeto a ser definido por cada qual, que tem de dedicar-se a viver, cumprindo a intransferível responsabilidade de preencher sua existência.
A vida nos é dada como um pacote vazio, que nos cabe ir recheando. O trabalho é um dever a ser efetuado, muitas vezes, com sacrifício, em busca de rendimento que garanta o sustento e a formação de uma poupança. Pode ser árduo, até preocupante e por vezes insípido. Assim é a advocacia, no cumprimento de prazos, na assunção do problema do cliente como seu a ser enfrentado em face da parte contrária, do juiz, do escrivão, da Administração Pública com sua burocracia.
São tarefas que se assume profissionalmente, ou seja, no cumprimento forçoso de um dever que ao mesmo tempo vem a ser instrumento de sustento.
Como diz Ortega y Gasset (1968, p. 30), a maior parte da existência se preenche por ocupações forçadas, no entanto, há ocupações felizes, que não constituem prazer, mas sim o fazer liberrimamente, com pura complacência e não em busca de rendimento.
Assim, ao atender a uma entidade beneficente, à vítima de uma violência sexual, a um acusado da prática de crime sem meios de se defender, o advogado vocacionado para a luta pela justiça não alcança apenas um prazer, mas a felicidade, visto fazer porque gosta e para satisfazer aos ideais postos como fins do seu projeto de vida, na irrenunciável e intransferível missão de dar sentido à existência.
Esse o perfil do advogado vocacionado, que se faz, no concreto agir, um promotor da justiça social para dar aos mais carentes a efetividade do seu direito, saindo da mera proclamação de princípios, para atualizar, tornar presente importante contribuição ao fim do direito, conforme dita o art. 3º do Código de Ética: ser um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas.
Portanto, é para se comemorar o disposto no novo Código de Ética, desfazendo a contradição de se confundir a mais elevada realização vocacional do advogado com falta ética.
Assim, dispõe o art. 30 o seguinte:
"Art. 30 - No exercício da advocacia pro bono, e ao atuar como defensor nomeado, conveniado ou dativo, o advogado empregará o zelo e a dedicação habituais, de forma que a parte por ele assistida se sinta amparada e confie no seu patrocínio.
§ 1º - Considera-se advocacia pro bono a prestação gratuita, eventual e voluntária de serviços jurídicos em favor de instituições sociais sem fins econômicos e aos seus assistidos, sempre que os beneficiários não dispuserem de recursos para a contratação de profissional.
§ 2º - A advocacia pro bono pode ser exercida em favor de pessoas naturais que, igualmente, não dispuserem de recursos para, sem prejuízo do próprio sustento, contratar advogado.
§ 3º - A advocacia pro bono não pode ser uti- lizada para fins político-partidários ou eleitorais, nem beneficiar instituições que visem a tais objetivos, ou como instrumento de publicidade para captação de clientela."
O reconhecimento ético da advocacia pro bono restaura a tradição do papel do advogado na história brasileira. Sem a dedicação de advogados no segundo império não teríamos tido escravos libertos da escravidão por obra da justiça, nem pobres defendidos de acusações contra as quais não se poderiam antepor por falta de meios para contratação de defensor e de condições para busca de provas de sua inocência.
Se na escravatura lutaram os advogados pela liberdade dos escravos, se nas ditaduras pugnaram em favor dos presos políticos, deve-se, também, hoje, batalhar pela efetividade do valor da solidariedade, a partir da assunção de responsabilidade social, que cumpre a todos, mas muito especialmente aos advogados, nas tarefas de conscientizar as pessoas acerca de seus direitos, de ajudar quem precisa da e de justiça em sua vida modestíssima, e de socorrer entidades de auxílio ao próximo.
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1 Para a Comissão de Direitos Humanos da ONU a tortura é prática generalizada contra parcelas mais pobres da população. Em seu Relatório sobre a tortura no Brasil, o relator especial das Nações Unidas Nigel Rodley conclui que “a lei de tortura é virtualmente ignorada” e detalha, então, numerosos casos de tortura, com horríveis condições das prisões, além da falta de esforço das autoridades para lidar com o problema (Sumário Executivo preparado pelo Centro de Justiça Global. Disponível em: <www.global.org.br>).
2 MALHEIROS, Augusto Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. v. 1. Seção 126. Disponível em: <https://www.ebooksbrasil.org/ eLibris/malheiros1.html#25>.
3 Em São Paulo, a maior e mais rica cidade do país, há centenas de milhares de barracos, com mais de 2 mil loteamentos irregulares.
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Bibliografia
NEQUETE, Lenine. As relações entre senhor e escravo no século XIX: o caso da escrava Honorata. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, nº 53, jul. 1981.
ORTEGA Y GASSET, José. La caza y los toros. 2. ed.
Madrid: Revista do Ocidente, 1968.
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*O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, Ano XXXVI, de abril de 2016, nº 129.
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